Visitei no Chile, perto de Valdivia, ou melhor, na desembocadura do rio Valdivia no Pacífico, um Santuário de Vida Silvestre que surgiu como conseqüência do maior terremoto até hoje registrado na história e de uma enorme tsunami. Achei o fato suficientemente curioso e atual a ponto de comentá-lo nesta coluna.
Valdivia é uma bela cidade situada entre duas cordilheiras: a dos Andes e a da Costa, com uma população de 130.000 habitantes e localiza-se a 810 quilômetros ao sul de Santiago. Em 22 de maio de 1960, a região sofreu um desastre natural de proporções monumentais, quando, após o terremoto, foi arrasada por ondas que, dizem, alcançaram 30 metros de altura. Quase nada da obra humana ficou em pé. O que não foi derrubado pelo terremoto foi arrastado pelo maremoto. Inúmeras vidas humanas foram perdidas, embora, felizmente, a grande maioria foi salva porque se afastou da costa.
O fenômeno sísmico afundou em 3 metros a cidade e também afundou as zonas agrícolas do vale. A onda gigante, ao se retirar pelo leito do rio, completou o dano, criando um imenso lago com um a dois metros de profundidade, alterando o curso do rio principal e de seus afluentes locais, os rios Cruces e Chorocamallo, que agora alimentam o lago. Com o tempo, o lago foi sendo colonizado por plantas aquáticas, em especial a totora e, claro, por numerosas espécies de aves, entre outros animais.
Assim, em 27 de agosto de 1981, duas décadas depois do desastre, o local foi convertido em Santuário de Vida Silvestre Rio Cruces, com 4.877 hectares. Embora todos do local o chamem de Rio Cruces, seu nome oficial é Santuário Carlos Anwantder. O Santuário é reconhecido como sítio da Convenção Ramsar para proteção de zonas úmidas de importância internacional e é visita obrigatória para todos que fazem passeios em barcos de turismo pelos arredores de Valdivia, principalmente para quem vai visitar a baía de Corral e a fortificação espanhola da Costa da Niebla e, enfim, parafraseando Euclides da Cunha: é um paraíso.
No Santuário do Rio Cruces ocorrem 139 espécies de aves, dentre elas o famoso cisne-de-pescoço-negro (espécie ameaçada de extinção) e mamíferos como o lobos-marinhos, que, estranhamente, chegam para se alimentar de restos de um mercado de peixes em Valdivia, pelo rio do mesmo nome, em águas que normalmente não são as suas: as doces. A história dos lobos-marinhos merece ser contada brevemente. Dizem, por lá, que um lobo macho, que chamaram de Benjamim, aportou em Valdivia e se instalou. Após algum tempo, lhe arrumaram uma fêmea e, hoje, toda a enorme família de lobos-marinhos vive no rio Valdivia, mais precisamente no mercado de peixes e com toda a pachorra do mundo. É outra prova viva de como as ações humanas interferem na natureza pois, até onde conheço, esta deve ser a única família de lobos-marinhos cujo endereço é o de um rio.
No entanto, o que mais chama atenção é o fato que, de um desastre natural de enormes proporções, surgiu uma área protegida, que é importante pela biodiversidade que abriga e também muito importante para o turismo de uma região já tão privilegiada pela beleza, graças a sua localização geográfica. Um Santuário que teve início pela força da natureza há 45 anos e que hoje precisa ser protegido para a conservação de seus recursos naturais.
Evidentemente, o Santuário está sofrendo grandes impactos ambientais devido à poluição, ao uso indiscriminado de herbicidas, resíduos industriais e outros. Segundo noticia e afiança a própria imprensa local, professores da Universidade Austral informam a redução populacional dos cisnes-de-pescoço-negro como conseqüência desta poluição.
Interessante mesmo é conhecer uma área protegida que resultou de um recente desastre da natureza e que começa a ser destruída por ações humanas, como costuma acontecer em tantas unidades de conservação no Brasil e no mundo.
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