Desde que foi descoberto pelos europeus em 1502, o Rio sempre seduziu pela forma. As montanhas eram as primeiras coisas que os navegantes avistavam ao se aproximar do litoral. Viam a Pedra da Gávea, o Pico da Tijuca, o Pão de Açúcar ao entrar na baía de Guanabara. A partir de 1808, com a chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, contudo, os morros começaram a ser admirados com olhos mais sensíveis. Assim que os portos foram abertos às nações amigas, e as primeiras missões artísticas começaram a desembarcar no Brasil, nossas montanhas passaram a ter valor maior do que sua mera estratégica posição defensiva. Pintores e visitantes com senso estético refinado imediatamente tomaram nota da beleza incomparável da geografia montanhosa carioca. Desde logo a descreveram em palavras. A princípio a desenharam com a perspectiva de quem as vê por baixo, achatado pela sua magnitude e imponência. Aos poucos foram galgando seus cumes, em busca de diferentes e inusitados ângulos.
Alugava-se montaria e mula cargueira, organizava-se um apetitoso farnel, contratava-se um guia para trepar ao poderoso Corcovado. Em princípios do Século XIX era passeio para dia inteiro. Programa obrigatório, diga-se de passagem. Lá de cima, descortinava-se uma vista de tirar a respiração.
Acompanhando a Família Real, desembarcou no Rio um grupo seleto de nobres europeus que tinham o hábito, até então aqui inexistente, de excursionar. Flanavam a pé ou a cavalo pela Vista Chinesa, pelas Paineiras, pelo Alto da Tijuca; iam à longínqua Serra dos Órgãos em busca de paisagens deslumbrantes, que posteriormente registravam em livros. A partir de 1874, quando o Barão d’Escragnolle assumiu a direção da Floresta da Tijuca, abriu-se ao cidadão comum uma nova e extensa gama de opções de trilhas e mirantes, de onde é possível capturar e conquistar ainda novas e belas perspectivas do Rio de Janeiro. Escragnolle era muito ligado aos movimentos culturais europeus que, por essa época, pregavam a volta à natureza e a necessidade de se ter grandes parques florestais junto às cidades populosas. Segundo o Visconde de Taunay, Escragnolle foi um dos maiores caçadores de vistas de seu tempo: “Dotado do mais elevado senso estético, com que paixão procurava melhorar a viação naquelas alcantiladas paragens e descobrir pontos de onde se descortinavam grandiosas perspectivas”¹.
Data da época em que administrou a Floresta da Tijuca a sinalização das trilhas que levam aos principais Picos do Maciço: a Pedra do Conde, o Bico do Papagaio, o Morro da Cocanha e o próprio Pico da Tijuca.
Na entrada do século XX, caminhar vira moda no Rio de Janeiro. Até o romancista e ministro da Justiça José de Alencar adere entusiasticamente ao montanhismo. Os cariocas gastam os domingos a passear em trilhas. Mesmo os visitantes mais ilustres como o Rei Alberto da Bélgica e o escritor anglo-indiano Rudyard Kipling são levados em excursões aos picos da Tijuca. Píncaros, outrora tidos como inatingíveis, eram finalmente vencidos. No Rio, o Dedo de Deus, na Serra dos Órgãos, tido como inescalável por um grupo de alpinistas europeus, é conquistado em 1912. Logo os jornais começam a publicar os relatos desses intrépidos rapazes que a cada final de semana chegam ao topo de um novo pico carioca.
Paralelamente, também na virada do século XIX para o XX, os valores olímpicos defendidos pelo Barão de Coubertin começaram a chegar ao Brasil. Primeiro, aportou no país o remo que, impulsionado por intelectuais brasileiros antenados nos movimentos socioculturais europeus, passa a frequentar as páginas dos jornais cariocas a partir de 1875. As instituições de remo apropriam-se do discurso Coubertiniano e incorporam ao ideário das agremiações de remadores a função de centros de educação física.
O entusiasmo dos literatos, entre os quais Arthur de Azevedo e Raul Pompéia, contribui para que a alta sociedade aceite melhor a introdução nos seus hábitos de uma atividade física, até então vista pela alta sociedade como algo restrito aos escravos e às classes operárias. Tratava-se, também, de aproximar o Brasil dos costumes de “países mais civilizados”. Olavo Bilac sempre que possível, comparava a saúde dos jovens remadores ao estado decrépito da geração de seus pais.
Em 1902, com a fundação do Fluminense Football Club, chega ao Rio o esporte que depois viria a ser identificado como a paixão nacional. Com o futebol, as atividades físicas quebram definitivamente os últimos preconceitos e passam a ser vistas por toda a sociedade como saudáveis e benéficas.
Em outra vertente, a histórico-cultural, recordemos que o Tratado de Tordesilhas, primeiro documento definidor do Brasil, atribuía ao país menos da metade do nosso tamanho atual. O resto foi desbravado em longas excursões a pé empreendidas por bandeirantes, que foram se entranhando no território, abrindo trilhas e se localizando pelos monumentos naturais da terra. Em princípios do século XX, a jovem República, dando continuidade aos esforços do Império para valorizar valores genuinamente brasileiros, tentava resgatar os grandes feitos de gente nascida em nossa terra, dando nomes indígenas a cidades, discutindo a adoção da língua tupi, realçando atos de coragem e incentivando a publicação de romances nativistas, a exemplo de “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto. Esse movimento incentivava fortemente o resgate do bandeirantismo como uma epopeia nacional e, portanto tratava o excursionismo como atividade cívica formadora do caráter brasileiro.
Por fim, a conjuntura nacional acontece ao mesmo tempo em que, no hemisfério norte, nasce o excursionismo organizado. A partir da segunda metade do século XIX, começaram a ser fundados clubes de montanhismo na Europa e Estados Unidos a exemplo dos clubes alpinos italiano e suíço (1863), do Appalachian Mountain Club (1876) e do Green Mountain Club (1910).
Como resultado desse caldo histórico social, em novembro de 1919 os sócios do Tiro do Sindicato dos Empregados do Comércio, cuja atividade principal eram longas marchas, uniram-se aos pedestrianistas do Centro Athlético Sampaio para juntos fundarem o Centro Excursionista Brasileiro, pioneiro entre todas as agremiações montanhistas do Brasil.
Em 1 de novembro de 2019, o Centro Excursionista Brasileiro completou seu centenário. É momento único na história do Montanhismo no Brasil e merece ser comemorado por todos que de alguma forma estão ligados à conservação da natureza. Ao longo de seus cem anos de vida, o CEB, como é carinhosamente conhecido, sempre foi pioneiro e inovador. Mais do que ter sido o primeiro clube excursionista do Brasil e muito além de ser responsável pela conquista do maior número de cumes de nosso país e pelo desbravamento das principais trilhas do país, o CEB conseguiu juntar – e manter juntas – as tribos de caminhantes e escaladores (que ingressariam em suas fileiras a partir do final da década de 1920).
Mas o Clube, não é apenas esporte. Na área da conservação, o CEB manteve ao longo de sua história as funções de formador de lideranças e de impulsionador de políticas públicas. Na década de 1930, foi peça importante na criação da política de conservação do Brasil, inclusive, posteriormente, adquirindo terras para doá-las ao Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Mais tarde forneceu de seus quadros os primeiros montanhistas a serem, no plano regional, Presidente do IEF, então órgão gestor de Unidades de Conservação do estado do Rio de Janeiro e, no plano nacional, Diretor do ICMBio. Além disso, o CEB foi fundamental na formação da Federação Fluminense, bem como da Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada.
Foi, também, por meio de seu presidente, a entidade montanhista que mais contribuiu para a fundação da Trilha Transcarioca, primeira trilha de longo curso do Brasil. Mais do que isso, o CEB é a viga mestra de liderança na formação da Rede Brasileira de Trilhas e Conectividade, que tem por principal objetivo utilizar a ferramenta trilhas de longo curso para impulsionar a criação de corredores de biodiversidade entre todas as Unidades de Conservação do Brasil. Em seu primeiro ano de vida a REDE já ganhou o Prêmio Nacional de Turismo. O quadro de sócios do Centro Excursionista Brasileiro forneceu seu primeiro presidente e dois diretores nacionais.
Tudo isso só foi possível porque, desde sua fundação, o CEB sempre se manteve na vanguarda do montanhismo nacional, sabendo se modernizar, trazendo para o Brasil os grandes avanços do movimento montanhista mundo afora, catalisando as diferentes correntes esportivas, culturais, sociais, históricas e da política conservacionista do país, tornando-se assim a principal casa brasileira de referência para todos aqueles que amam as montanhas.
Que o CEB tenha longa vida. A natureza agradece.
*Sócio Honorário do CEB (com muito orgulho).
Bibliografia:
¹. in Atala, Fuad; Bandeira, Carlos Manes; Coimbra Filho, Adelmar e Martins, Henrique F. Floresta da Tijuca. Rio de Janeiro: Centro de Conservação da Natureza, 1966, p.48.
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Belíssimo texto!!! Viva o CEB! Viva a história da Conservação da natureza e das atividades ao ar livre no Brasil!!!