Análises

O ouro da Capivara no regime de Guaribas

A 130 quilômetros de Guaribas, a cidade mais pobre do país, a Serra da Capivara é um exemplo de boas soluções que o poder público só sabe atrapalhar.

Lena Lavinas ·
10 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Guaribas. Lembra? Justo ali, no limiar entre o que foi a Serra do Mar e a floresta amazônica, onde há mais ou menos 10.000 anos começa a desertificação que dá lugar à caatinga, processo esse ainda em curso e sem perspectiva de reversão, como revela o assoreamento do Rio Piauí, de nascentes bem próximas. De rio intermitente na época da estiagem, é hoje, a montante, leite seco que acolhe em vários trechos os lixões das cidades e vilarejos que foram ribeirinhos, expressão quase única de que progresso e integração nacional passaram em alguma medida por ali. Lá foi lançado o Programa Fome Zero no day after da assunção do novo governo popular do Brasil. Eleita cidade mais miserável do país, município detentor do pior IDH, fim de linha de uma vicinal que parece indicar que não existe além.

Guaribas. A meros 130 km do Parque Nacional Serra da Capivara. A única estrada que leva a Guaribas passa por São Raimundo Nonato, município que abriga grande parte do Parque. Entre as duas sedes de município, um caminho 1/3 de terra batida e 2/3 do que se poderia denominar em pavimentação. Redenção do Gurguéia fica logo adiante, mas como não se chega a lugar nenhum de Guaribas, muito menos a Redenção, só dando uma grande volta, cruzando justamente São Raimundo Nonato, em direção ao norte.

Custa crer que dois lugares, a anos-luz de distância um do outro, sejam vizinhos, a sudeste do estado mais destituído da federação. O Parque são 130.000 km2 de magia, sofisticação, beleza e valorização da terra brasilis. Mocós, onças pintadas, porcos do mato, carcarás, casacas de couro, can-cans, e uma flora, cujos cheiros e cores persistem, indiferentes à seca. A umidade relativa do ar não ultrapassa 5% nessa época do ano. Chuvas, agora, só para dezembro. O tapete de folhas mostra que a estiagem já está bem avançada. Mas ainda resta uma penugem rala acinzentada nos galhos que aviva ainda mais o contraste forte com o azul sem névoas do céu.

Obra de um conjunto de mulheres incansáveis, obsessivas, determinadas, competentes e, sobretudo, vitoriosas. Têm sido pilotadas por Niède Guidon, arqueóloga da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, que, ao solicitar do Itamaraty autorização para se mudar de Paris para o Piauí, no início da década passada, ouviu do correspondente que deveria haver um equívoco na direção, provavelmente invertida. Erro dele. A rota era essa mesma, Paris- Piauí, e não vice-versa. O governo francês apoiou e foi sem dúvida o primeiro grande impulsionador do Parque, antes mesmo da sua existência legal.

Difícil é acreditar que tenha sido possível nos últimos 25 anos criar, manter e expandir internamente as áreas de visitação no Parque Nacional Serra da Capivara, já que o ambiente ainda é hostil. Falta apreço, por parte da administração pública, por Parques Nacionais. O semi-árido atrai investimentos pouco diversificados, além de pontuais e esparsos, os custos são elevadíssimos, o capital social e humano na região, altamente deficientes. Mas isso está mudando, graças aos efeitos trickle-down que a evolução do Parque provoca.

Em 1979, ao fim da era militar, foi assinado o decreto de criação do Parque, com base em um plano de manejo aprovado em 1988. Para lutar contra o corte ilegal e criminoso de madeira, criou-se em 1986 a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM). Em 1991, o Parque era incluído pela UNESCO na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade (só não adentrou ainda a lista do Patrimônio Natural porque ações que sancionam tal critério não foram ainda realizadas). Enrique Iglesias, então presidente do BID, garantiu em 1996, via doações, recursos suficientes para a guinada que permitiria instaurar uma política de conservação e proteção ambientais associada a uma lógica de desenvolvimento econômico e social. Ilustração exemplar, a criação de uma cerâmica, inicialmente projeto da administração do Parque e hoje propriedade de uma ex-supervisora do MacDonald para o Nordeste.

Com tantos barros e areias, parecia surpreendente inexistir tradição na arte ceramista. Uma colaboração com uma ONG italiana, Terra Nova, viabilizou os primeiros estudos. Contratou-se um especialista italiano que identificou 62 tipos de barro na região. Em 1996, foi apontado aquele que deveria ser usado preferencialmente. Em simultâneo, foram convidados designers, como Shoich Yamada (SP), para formular um conceito. Hoje, a pequena fábrica de cerâmicas do Parque exporta para a Itália, tem linha própria à venda na Tok&Stock de São Paulo, além de ter ampliado suas instalações produtivas para atender à demanda crescente por um produto exclusivo de formas contemporânea e padrão crescentemente globalizado. Criou-se ao mesmo tempo demanda e tradição. Marcos Sá Correa quando escreveu “Um México para copiar” ignorava, como todos nós, que um pouco da grande tradição ceramista surgira literalmente do desejo no meio do semi-árido nordestino, a partir da capacidade visionária e empresarial de um grupo de acadêmicas apaixonadas.

A esses projetos somam-se outros, de quem vê o turismo como âncora para o catching-up definitivo. Por exemplo, a criação intensiva de carneirinhos pelados viria consolidar a boa cozinha regional, ainda carente de iguarias. Têm sabor e podem ganhar requinte à mesa. A idéia parece mais promissora do que a de fabricar presunto cru de bode para exportação. Gente do Sul com faro de onça pensa no negócio. A engorda do frango caipira tão apreciado é outra possibilidade para gerar valor agregado ao setor.

De utopia, o Parque tornou-se um empreendimento bem sucedido cuja expansão tem sido reiteradamente represada pelos contínuos adiamentos na construção do aeroporto internacional. O decreto foi aprovado em 1996 e a licitação, em 1997. Uma primeira parcela de 5 milhões de reais (em tempos de paridade cambial) foi remetida na gestão FHC, porém nunca chegou a São Raimundo. A estrada continua sendo a única via de acesso a ligar São Raimundo Nonato a Petrolina. As valas que perfuram o asfalto proíbem, no entanto, uma circulação regular e condenam novos projetos turísticos, já traçados e com financiamento garantido, como a criação de pousadas e grandes complexos turísticos. A Fundação comprometeu todo o capital disponível no seu fundo para elaborar estudos de viabilidade e a compra de terras (10.000 ha) para o empreendimento. Rumores existem, no entanto, de que a construção do aeroporto teria sido preterida pela criação de um Memorial do Fome Zero, em Guaribas.

Hoje, o Parque constitui-se no maior empregador da região: 227 empregos, com salários mensais variando entre R$ 400,00 e R$ 1.350,00. Todos são contratados e não funcionários públicos. O Ibama assegura um financiamento mínimo anual, mas aloca apenas um funcionário seu ao Parque. Os guias, selecionados, têm todos diploma universitário e são profundos conhecedores da região. Emprega-se gente da região. Ali se trabalha de domingo a domingo. Dedicação total. Assim foi possível reduzir a ação predadora de caçadores, maniçobeiros e colhedores de mel e transmutá-los em agentes preservacionistas. Muitos deles trabalham para o Parque. Quem ali morava foi indenizado e agora vive nas vilas limítrofes, como a do Mocó, em moradias simples. Favelas, não há.

Para quem gosta de Parques nacionais há do que se emocionar na Capivara. Nada é amador. Tudo é absoluta e rigorosamente cuidado, até mesmo os degraus feitos de seixos rolados. O extraordinário acervo de pinturas rupestres é valorizado por trilhas cuja manutenção e traçado são comparáveis a tudo que há de melhor nos parques do Primeiro Mundo. Caminhos flechados, informação constante sobre a flora e a fauna, sítios arqueológicos impecáveis, com passarelas funcionais e bem desenhadas. Impera a discrição. Vale à pena conferir visitando o anfiteatro: despojado, linhas perfeitas, incorporado à paisagem. Local de inúmeras atividades artísticas e concertos a céu aberto nos meses sem chuvas. Foi concebido pela arquiteta Elizabete Buco, também artífice dos percursos que fazem a travessia do sopé da cuesta, dos boqueirões e do topo dos chapadões. Cruzar os canyons e chegar ao fim da Trilha do Alto da Pedra Furada para descortinar, de cima, a grande planície da Capivara é simplesmente deslumbrante. “Forte”, diria o Rafael, dos mais argutos guias do Parque.

Para vencer desníveis de mais de 100 metros ao longo do desfiladeiro, escadas de ferro seladas à rocha facilitam o acesso e a incrementam a variedade das trilhas. Há um museu. Apesar de modesto, é bastante didático e completo. Foi atualizado em 2004 para incorporar as novas descobertas acerca das hipóteses sobre a chegada dos seres humanos à América, já que a versão dominante sobre a rota de Bherings foi infirmada por estudiosos norte-americanos.

A despeito de tantas coroas de frade a espantar o olho gordo, o Parque e a Fundação vivem momentos difíceis. Os recursos derivados das 14.000 entradas anuais são destinados ao IBAMA que repassa à FUMDHAM uma verba anual regular, muito superior à arrecadação. Mas isso é insuficiente não só para manutenção, mas igualmente para abertura de novos sítios de visitação, como os da Serra Branca, uma das cinco que integram o Parque, e se situa á noroeste. Na fase atual, o que está acessível é ainda uma fração bem pequena da mais extensa área viva de floresta branca do mundo.

As mulheres gestoras do Parque, à frente da FUMDHAM, têm uma proposta que consistiria em criar um consórcio regrupando cinco estatais de modo a assegurar um financiamento regular mensal de R$ 400 mil. A conjuntura política por enquanto impede que patrocinadores como Petrobrás, Correios e outras entidades afins renovem seus convênios para manutenção do Parque. Por isso mesmo, os contratos terceirizados relativos aos 227 empregados estão suspensos desde 1° de agosto. Aqui, o dinheiro acabou. Niède Guidon já comunicou oficialmente aos contratados da FUMDHAM a situação, bem como solicitou aos Ministérios do Meio Ambiente e da Cultura que designem funcionários para assumir a responsabilidade de manter, proteger e conservar o Parque e seus sítios arqueológicos (mais de 400).

Outra pendência grave é a criação do Corredor Ecológico que deve instituir uma área de preservação ambiental entre a Capivara e o Parque Nacional da Serra das Confusões, a oeste. Assim, estar-se-iam garantindo condições para conservação da diversidade biológica da caatinga. A Ministra do Meio Ambiente aprovou por decreto a criação do Corredor Ecológico, denominado Mosaico de Unidades de Conservação, em 11 de março de 2005. Contudo, uma disputa legal opõe o corredor ao INCRA, à frente de um projeto de colonização na mesma área tombada.

Mais uma vez é necessário mobilizar esforços para evitar retrocessos e mais degradação. Ambiental, cultural, moral. Por força das circunstância, deve finalmente vai sair do papel a Associação de Amigos do Parque Nacional Serra da Capivara. Para juntar-se a esse projeto, entre com contato com Rosa no email: [email protected]. O sertãozão do Brasil e sua gente agradecem. Quem da Capivara vive pretende continuar sendo exemplo para deixar Guaribas no passado.

  • Lena Lavinas

    Lena Lavinas é professora do Instituto de Economia da UFRJ.

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