Análises

O loteamento das florestas públicas do Brasil

Projeto de Lei que libera exploração de florestas públicas é uma vergonha para o país. Querem lotear a Amazônia para madeireiros, traficantes e multinacionais.

Sulema Mendes de Budin ·
30 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Estão finalizando a legalização de mais um leilão do patrimônio público deste país. Meio ambiente à parte, quando se trata de Amazônia há que se considerar o valor econômico da floresta em minérios radioativos, em petróleo, em ouro, em reservas estratégicas de água, além da biodiversidade que os brasileiros não conhecem, mas os laboratórios internacionais já têm classificada e retiram sem o conhecimento (ou com a conivência) das nossas autoridades. E, acima de tudo, está se colocando em risco a própria soberania.

“Manejo sustentável” é a teoria que entusiasmou inclusive algumas ONGs de porte, como Greenpeace e o WWF, a apoiarem o Projeto de Lei, desde o início das discussões de gabinete e dos debates acadêmicos, em Congressos e Seminários dos quais a grande maioria dos verdadeiros titulares das florestas públicas – os cidadãos do povo – sequer teve notícias, que dirá participação. Em menos de seis meses, desde que foi encaminhado ao Congresso em fevereiro por iniciativa do Poder Executivo, o Projeto de Lei nº 4776/2005, que prevê a concessão de áreas da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica, do Cerrado e da Caatinga para exploração pela iniciativa privada, foi aprovado em surdina por uma Comissão Especial designada pela Câmara e colocado em pauta com recomendação de “urgência”, sem que houvesse uma única discussão ampla e séria com a sociedade civil brasileira. Estamos falando de algo similar ao que foi feito com a telefonia, com os serviços de energia elétrica, impropriamente designado como “privatização”.

A questão não mereceu a atenção da grande imprensa. Nem uma nota de pé de página interna dos jornais e revistas, nem meio segundo de noticiário das emissoras de televisão levaram a notícia para o público, antes mesmo que estourassem os escândalos. Apenas as publicações especializadas em meio ambiente abordaram a matéria em seus sites na Internet. Meio ambiente não é notícia. Só será quando narcotraficantes usarem empresas fantasmas para ganharem as licitações e passarem a usar suas “concessões” como roteiro ou para o refino de drogas, empresas estrangeiras se instalarem para explorar os recursos principalmente da Amazônia, por trás de fachadas de empresas nacionais. Fora as daqui mesmo que terão a legalidade da lei a favor dos seus interesses para a exploração dos recursos da floresta.

A entrevista do Procurador da República Mário Lúcio Avelar, que liderou a investigação da Operação Curupira, ao jornal O Globo (05/06) passou despercebida, apesar da gravidade do que revelou. Em síntese, ele afirma que o crime organizado, que é integrado pelos madeireiros ilegais, por muitas empresas certificadas da indústria madeireira e por empresas de consultoria de fachada, tem o controle do Ibama na Amazônia legal, controlando todo o sistema de monitoramento, informação e fiscalização. Alerta para a influência política do setor madeireiro, que impõe seus apadrinhados e colaboradores para os cargos mais importantes do Ibama, que irão defender os interesses do crime organizado, nos Estados da Amazônia. O Diretor da Diretoria de Florestas do Ibama, Antonio Carlos Hummel, foi um dos indiciados pela Operação Curupira. O regime de concessão vai facilitar as atividades de todos esses grupos.

É uma piada imaginar que os órgãos públicos estaduais, municipais e o Ibama vão ter melhores condições de “fiscalizar” a utilização das áreas concedidas para exploração, dependendo de ordens judiciais de juízes locais, se os concessionários não lhes permitirem a entrada, se agora, que as áreas são públicas e estão submetidas apenas à legislação federal, o Ibama publicamente se declara incapaz de fazer o controle e o Ministério do Meio Ambiente alega que não tem condições de exercer suas funções. O que a ministra não tem é vontade política, porque até as Forças Armadas ela pode requisitar diretamente em situações mais graves, como já fez, quando pediu intervenção federal para finalizar a Operação Curupira.

O texto do PL, ao definir a concessão florestal e a unidade de manejo (art. 3º, VII e VIII), criou uma inovação nos conceitos de posse e propriedade, sem a menor base jurídica, que vai servir para muita discussão judicial, e “interpretações” que beneficiarão os transgressores. A afirmação de que as concessões não implicarão em qualquer direito de domínio ou posse das áreas não se sustenta porque o manejo de uma área definida e concedida implica na posse de um direito de exploração que se exerce sobre um território delimitado, que permanece “público” enquanto domínio, mas torna-se “privado” enquanto posse. A telefonia serve como exemplo para simplificar o entendimento. Depois das concessões (“privatizações”) ninguém entra nas sedes das empresas sem uma ordem judicial. Dá para se prever o que vai acontecer com áreas de florestas. Este é só um dos muitos problemas que vão impedir o monitoramento das concessões.

Os fatos levam a uma conclusão óbvia: as ONGs que estão apoiando esse Projeto ou foram mal assessoradas ou estão mal intencionadas. É difícil entender essa posição, quando pessoas e instituições realmente sérias, respeitadas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação de Servidores do Ibama, pesquisadores de renome internacional como Aziz Ab’Saber, entre outros, repudiaram publicamente o PL, apoiados em dados concretos, inclusive de experiências mal-sucedidas em outros países, como a Austrália, que levaram à degradação irreversível das suas florestas nativas.

Talvez a explicação para a atitude das ONGs esteja no texto do artigo 78, que permite a participação de associações civis “de qualquer forma” na gestão direta ou nas concessões das florestas, desde que “constituídas sob as leis brasileiras” e com “sede e administração no país”, o que é fácil, legal e rápido, quando há recursos disponíveis. Aliás, todas as ONGs internacionais já se enquadram nessa exigência.

A aprovação do PL 4776/2005 na Câmara dos Deputados, que já foi referendada pelas Comissões de Meio Ambiente e Assuntos Econômicos do Senado na quarta-feira, dia 21 de setembro e, no dia seguinte, foi votada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, constitui mais uma das muitas vergonhas nacionais deste momento triste e dramático que o Brasil está vivendo. Com o “mensalão” temporariamente suspenso, é possível que o PL 4776/2005 tenha se convertido em outra fonte de renda! Neste caso, fizeram um pacote, incluindo a soberania nacional na transação.

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, indicada para discutir o PL, foi escolhida pelos maiores interessados na exploração da floresta. As forças ocultas foram tão eficientes que o colocaram em pauta para ser votado em regime de urgência, na semana que estourou o escândalo dos Correios, tudo negociado sem a participação da sociedade brasileira.

No dia 5 de julho, o site AmbienteBrasil divulgou a notícia que a votação fora transferida para agosto, com a garantia do deputado Zé Geraldo (PT/PA), o qual participou como membro titular da Comissão Especial da Câmara que examinou e aprovou o PL 4776/2005, de que iria “trabalhar para que o Projeto retornasse à pauta de urgência”. Ele “trabalhou” tão bem que conseguiu recolocar o PL na pauta do dia seguinte.

Zé Geraldo, que foi citado pela Revista Veja na reportagem “O PT deu a senha para desmatar” (15/06), está sendo investigado pela CPI da Biopirataria. Ele voltou a ser mencionado pela revista veiculada em 21 deste mês, na matéria intitulada “Política da destruição” (p.106/107). O deputado e a esposa, que é prefeita de Medicilândia (PA), teriam articulado e posto em prática um esquema de caixa dois, com doações de madeireiros para o financiamento de campanhas políticas, compra de votos etc., desde 2002. Por essa amostra é previsível o que acontecerá quando os órgãos ambientais dos Municípios tiverem poder para autorizar e fiscalizar a exploração das florestas nas suas áreas de jurisdição (art. 82), atribuição que é de competência exclusiva do Ibama.

Parece que a imprensa não acordou para a “coincidência” dessa aprovação envolver um deputado do PT mais que suspeito (Zé Geraldo, do PT/PA) além dos interesses que serão beneficiados se esse Projeto for aprovado pelo Plenário do Senado, o que tudo indica que acontecerá. A votação foi feita quase à meia-noite do dia 6 de julho, horário em que os conspiradores se reúnem, por acordo entre as lideranças, ou seja, sem votação direta com o voto individualizado e declarado de cada parlamentar. A bancada ruralista, o lobby dos madeireiros, os interesses multinacionais, o crime organizado têm muito para comemorar!

Os “bens de uso comum do povo”, definidos na Constituição Federal de 88, entre os quais se inserem a Floresta Amazônica, o que sobrou da Mata Atlântica, do Cerrado e a Caatinga, que os senhores parlamentares estão loteando e entregando para exploração pela iniciativa privada, através do regime de “concessões”, certamente atenderá aos interesses daqueles que buscam garantias legais para continuarem a devastar o patrimônio ambiental do Brasil, contribuirá para engordar o caixa dois das campanhas políticas, na medida que será mais fácil “lavar” dinheiro sujo, inclusive do crime organizado, e servirá para a ocupação internacional da Amazônia. A soberania do país está comprometida!

Esse Congresso Nacional nos envergonha. Os deputados e senadores, que foram eleitos para defenderem o patrimônio público e os direitos dos cidadãos, estão “negociando” os recursos naturais, como vêm fazendo com o “apoio” vendido ao governo. Veja-se o resultado da eleição do novo Presidente da Câmara, depois da liberação de meio bilhão de reais para emendas de parlamentares.

O atual governo, que se intitula “democrático”, vem usando métodos e táticas piores que os da Ditadura para impor ao país seu ideário de poder pelo poder. E só nós, o povo, podemos deter esse processo. Mas precisamos nos apressar. Temos a Internet, o Correio e, se necessário, as ruas para dizer: Não ao loteamento das nossas florestas, patrimônio e legado que temos obrigação de defender para as futuras gerações. Nós é que somos os legítimos detentores do poder.

Leia a resposta de Tasso Rezende de Azevedo, Diretor do Programa Nacional de Florestas – MMA.

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