Análises

A verdade por detrás dos morros

Um dos principais problemas da gestão ambiental é a tentativa de flexibilizar a legislação. A atual discussão sobre Áreas de Preservação Permanente no Conama é questionável.

Carlos Bocuhy ·
25 de julho de 2008 · 16 anos atrás

Para efetivar exigência social em prol de políticas públicas, é preciso alertar constantemente a sociedade para as ameaças que historicamente somos obrigados a enfrentar. Um dos principais antagonistas da gestão ambiental no Brasil tem sido as falaciosas tentativas de flexibilização de nossa normativa de proteção ambiental.

Seja para atender a passivos ambientais, ou à voracidade inconseqüente e pouco esclarecida de grupos econômicos que tentam apropriar-se de áreas protegidas, o fato é que a flexibilização das normas representa regularização e novas oportunidades de negócio.

Quem perde neste jogo desregrado são a sociedade brasileira e as futuras gerações, reais detentoras do patrimônio ambiental. Neste cenário destacam-se em especial as Áreas de Preservação Permanente – APPs, definidas pelo Código Florestal Brasileiro. APPs são essenciais para a manutenção da qualidade ambiental e do equilíbrio ecológico, e não devem ceder espaço para a implantação de atividades econômicas em benefício de quaisquer origens e instituições, menos ainda de corporações e interesses de empresas e grupos particulares.

Pode parecer repetitivo reafirmarmos isso constantemente, mas os fatos mostram que isso se faz cada vez mais necessário, especialmente para melhorar o nível de consciência da população e do governo, sem falar na obrigatoriedade de esclarecimento para desavisados, oportunistas e outros eventuais que insistirem em atuar na contramão da sustentabilidade ambiental.

É preciso ter sempre em mente que as APPs, incluindo aquelas relativas a topos de morros, montanhas e serras – que agora são objeto de discussão questionável por Grupo de Trabalho no CONAMA-Conselho Nacional do Meio Ambiente,  são bens de interesse nacional e espaços territoriais especialmente protegidos (art.225, CF). As APPs, cobertas ou não por vegetação, têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas.

Com base na própria definição de APP, que revela suas múltiplas funções ambientais, qualquer cidadão conseqüente e leigo é capaz de deduzir que promover ameaças à sua proteção ou cogitar reduzir suas dimensões é um profundo equívoco, além de ser um ataque direto ao direito fundamental a um meio ambiente mais equilibrado. O prejuízo de tais posturas atinge toda a sociedade, a preservação dos ecossistemas, seus componentes, interações e serviços dos quais todos nós dependemos, sem possibilidade de reparação posterior compatível, vale dizer, de recomposição do “estado como era antes”, circunstâncias todas previsíveis, que em hipótese alguma pode ser ignorada pelo poder público, para efeito de eventuais responsabilizações.

Este entendimento, tão básico e fundamental, como reza o ordenamento jurídico brasileiro, há de estar assimilado a contento, por todos – coletividade e poderes públicos – que têm de zelar pelas Áreas de Preservação Permanente, como é o caso do Ministério do Meio Ambiente, de órgãos estaduais e municipais integrantes do SISNAMA-Sistema Nacional de Meio Ambiente, órgão públicos dos quais só se deve esperar as devidas prestações positivas para com o direito fundamental inscrito no artigo 225 da Carta Constitucional de todos nós.

Se por um lado o Ministério do Meio Ambiente está se propondo a promover uma campanha sobre as Áreas de Preservação Permanente, intitulada, “Vamos cuidar das APPs”, por outro, esta iniciativa corre o risco de se revestir da mais pura  demagogia se o referido órgão não passar a apresentar uma atuação que seja condizente com o efetivo resguardo destas áreas protegidas.

Um exemplo de condução equivocada do Ministério do Meio Ambiente no campo da gestão ambiental, no cenário atual, é a forma de instauração do Grupo de Trabalho no CONAMA para rediscutir conceitos e critérios relativos às Áreas de preservação Permanente de Topo de Morro (Resolução CONAMA 303/02) que vigoram há mais de duas décadas, alegando-se, só agora, supostas dúvidas em tais elementos, que justificariam a possibilidade de alterações no texto da citada norma, o que se reveste de alto risco para o meio ambiente. Este fato, por si só, já desperta para a imediata e profunda reflexão sobre as devidas motivações, que vêm sendo dispostas em documentos do referido grupo.

Neste palco, é preciso identificar as inspirações, em primeiro lugar, a custa do que e em benefício de quem se admitiria lucro com o uso, indevido, é claro, destas áreas protegidas. Para os que quiserem averiguar melhor estas questões, e compreender a dinâmica que leva a alteração sumária de textos normativos, basta visitar o site do Ministério do Meio Ambiente (links do CONAMA). Lá se constata que na instalação da 17ª Reunião da Câmara Técnica de Gestão Territorial e Biomas do CONAMA, em 10/07/2007, havia apenas seis participantes, sendo que nenhum deles representa áreas científicas do país. O presidente eleito foi um representante do setor florestal, que em seguida assumiu também a Coordenação do Grupo de Trabalho sobre os aspectos relativos às Áreas de Preservação Permanente de Topo de Morro. Alguns meses depois, a lista de presença da reunião do Grupo de Trabalho ocorrida em 18/03/2008, permite verificar a maciça e predominante presença dos representantes das empresas florestais (cerca de 50% dos 35 participantes presentes).

Fatos como este demonstram a fragilidade na implementação da instituição democrática no Brasil, em que pese completarmos neste ano vinte anos da constituição cidadã de 1988. Ocorre que não há clareza sobre participação social e conflito de interesses, o que permite distorções inaceitáveis em representatividade para processos decisórios. Na ausência de impedimento ético, a sociedade fica desguarnecida em seus interesses maiores, diante de possíveis vícios e conflitos de interesse.

Para compreender melhor o cenário em que se inserem as empresas florestais e sua relação intrínseca com a provável e equivocada intenção de flexibilização dos critérios de proteção das APPs de topo de morros e montanhas, cabem alguns destaques de aspectos esclarecedores:

1) Empresas florestais no Brasil ocuparam, por décadas, e ainda ocupam, de forma irregular, enormes extensões de terras em Áreas de Preservação Permanente, principalmente de topo (envolvendo morros e montanhas) em vários Estados brasileiros, a exemplo do que ocorre no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo, e em porções do Estado de Minas Gerais, Paraná e Santa Catarina. Sendo que não raro, e ao longo de décadas, personificaram alguns dos infratores contumazes que auferem indevidos lucros com a qualidade de vida alheia e da coletividade em dimensão difusa, às vezes mesmo,  à custa das Áreas de Preservação Permanente, e outras, à custa de possíveis “cochilos” dos agentes responsáveis que, caso fossem submetidos à devida e tempestiva  apuração, bem provavelmente notariam grandes plantações florestais, que nunca são exatamente invisíveis, especialmente na etapa tecnológica e de sensoriamento remoto em que vivemos.

2) Grandes empresas da área acumulam, no Estado de São Paulo, vários procedimentos de investigação instaurados junto às Promotorias Públicas, envolvendo ocupação de grandes áreas em topos de morros e montanhas, nos termos da Resolução CONAMA 303/02.

3) Nota-se que estas empresas não desejam a desconformidade ambiental, pois no âmbito de suas evidentes pretensões de expansão e crescimento, e considerando suas demandas competitivas em nível nacional e internacional, estão sobre permanente pressão para obtenção e manutenção de Certificações Ambientais e Selos de Qualidade. Ser ou não ser: este é um conflito que historicamente demonstra ter sido mal equacionado em suas decisões políticas internas.

4) Por outro lado, fica mais difícil obter Certificações Ambientais e Selos de Qualidade quando as plantações florestais, em áreas imensas, estão irregularmente implantadas sobre Áreas de Preservação Permanente, gerando para estas empresas o indesejável rótulo de degradadores e infratores ambientais, além do incômodo de se tornarem réus em investigações.

Imagina-se que empresas como essas não prefiram novos gastos, mas principalmente novos lucros. Seria bom se fossem em perspectiva sustentável, mas não é difícil perceber, no reflexo histórico, o que está demonstrado na relação de infrações autuadas ou mesmo denunciadas. Essa equação nos permite apreender a medida, não tão subjetiva, entre o desequilíbrio da voracidade econômica versus prioridades de uma desejável política de sustentabilidade.

Isso posto, voltemos ao início de nossa reflexão, sobre o modus operandi pragmático do universo da desconformidade ambiental: é mais fácil se livrar das normas flexibilizando-as. Uma das formas de ter êxito em tais propósitos é disseminar retóricas infundadas, colocar em dúvida os termos das normas restritivas, alegar a sua inaplicabilidade e promover uma rediscussão direcionada, que corre um forte risco de terminar em conteúdo normativo irresponsável e antidemocrático no que diz respeito ao patrimônio e gestão da coisa pública.

É importante lembrar que, neste processo, não só agentes privados atuam como se lobistas fossem. Nota-se que se não tivessem apoio nas estruturas públicas, as corporações não conseguiriam o espaço que tem sido obtido com tanta e maior facilidade que o possível para a coletividade e cidadania em geral. É um jogo político intrincado, como outros tantos que vemos no dia-a-dia dos noticiários, em situações que carecem de adequação à perspectiva ética e constitucional.

O caso em tela ainda anda à boca pequena, não que mereça este tratamento tão discreto frente à magnitude de direitos coletivos de ordem fundamental que enfeixa. Pois, todos sabem que é perfeitamente possível, regulamentado e, portanto, exigido por LEI,  que a expansão das atividades das empresas florestais e dos silvicultores não seja desenvolvida em Áreas de Preservação Permanente, e nem avancem sobre áreas de proteção como essas, nos termos do desenvolvimento sustentável, pois não haveria como deixar de resultar em perda social, caso se direcionem esforços, de forma irresponsável, na busca de indultos e permissividades.

Por outro lado, não se trata obviamente de nos opormos à expansão às atividades das empresas florestais e dos silvicultores, mas de se garantir que esta atividade produtiva não seja desenvolvida em Áreas de Preservação Permanente.

É forçoso lembrar que a discussão também envolve outros interessados, mas estes estão bem menos estruturados e representados. As listas de presença das reuniões do GT constantes do site do MMA (links do CONAMA) revelam que também se fizeram presentes, de forma pulverizada, representantes de municípios onde há várias demandas judiciais envolvendo empreendimentos afrontosos e degradadores que se instalaram, ou pretendem se instalar indevidamente em Áreas de Preservação Permanente, incluindo muitas situações em topos de morros e montanhas.

Esse é um aspecto sobre o qual a sociedade brasileira deve se preocupar: a inculturação presente em discursos municipalistas menos lúcidos, onde importa menos a reflexão sobre a proteção do meio ambiente, a paisagem, a qualidade de vida, contanto que empreendimentos paguem IPTU, tragam empregos e pulsos de atividade econômica, que, via de regra, não tem nenhum compromisso com planejamento e sustentabilidade ambiental, conforme exigidos no plano supremo constitucional.

Desta forma a pergunta que fica é: porque estes agentes públicos e privados, predominantemente ligados a interesses econômicos  de grupos específicos, no caso, as empresas florestais, querem rediscutir conceitos e critérios consolidados de modo regular e legítimo há mais de duas décadas? Isto pode apontar que há sérios indicadores de motivações econômicas para eliminar ou flexibilizar as  restrições legais existentes, aproveitando o ensejo para permitir esquivas e escapes, que por certo se mostrarão infrutíferas se tiverem de ser submetidas a demandas judiciais.

Tais intenções ficam evidentes nas propostas absurdas de alterações de conceitos e critérios da Resolução CONAMA 303/02 que constam no site do MMA (links deste GT do CONAMA), que já despontariam como que em possível demonstração de arriscado e irresponsável desprezo, numa inversão de conceitos e fundamentos pertinentes à matéria. Há também documentos expostos no site que já procuram disseminar  entendimentos no sentido de que a aplicação dos conceitos e critérios de APPs de topo de morro seria uma ameaça à economia de municípios ou regiões,  mostrando o desvirtuamento na discussão.

Mas só para entendermos melhor:  não estavam em dúvida sobre os conceitos e critérios de delimitação de APPs de topo de morro? Então como sabem que eles inviabilizam a economia?  E mais: como o Ministério do Meio Ambiente pode estar permitindo esta discussão, nestas condições de desigual representatividade dos demais segmentos da sociedade civil, sendo permissivo ao patrocinar a subversão de princípios da cidadania e da participação social, diante de claro quadro de conflito de interesses que se instalou na própria casa, para discutir gestão de bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida?

Assim, justifica-se nossa apreensão diante da gravidade dos fatos. Esta situação causa tanta intranqüilidade que esta preocupação está sendo expressa na manifestação de significativa constelação de ONGs de todo o Brasil. Mais de 250 entidades ambientais assinaram a Moção pela Proteção de Topo de Morros e Montanhas, alertando para esta manobra de flexibilização.

Estamos diante de uma situação que merece a atenção da sociedade brasileira. Mais do que isso: o processo, na forma como tem sido conduzido, merece um forte controle social, o suficiente para repudiar qualquer retrocesso na proteção das APPs de Topo de Morros e Montanhas, chamando-se às responsabilizações civis por dano ao meio ambiente, se caso for, sem prejuízo de outras, que estejam na esfera penal.

Diz Eduardo Galeano que a utopia está no horizonte e que nunca a atingiremos, mas que ela faz profundo sentido ao motivar nosso caminhar. No presente caso, temos em nosso horizonte morros e montanhas que representam o mesmo desígnio revelador de trajetória, enquanto marco referencial da condição civilizatória.

  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

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