O interesse do Estado brasileiro pela pesca iniciou-se no Século XIX por preocupação com a defesa do seu território e com a exploração dos recursos marinhos, até então, considerados inesgotáveis. Desde aquela época, a responsabilidade pelo setor pesqueiro já foi de várias instituições. Começou com a Marinha Brasileira e, no início do Século XX, a pesca foi transferida para o Ministério da Agricultura e classificada como um setor de interesse econômico estratégico. Nos anos 1930, a corrente nacionalista recolocou a pesca na área da defesa e a capitania dos portos passou a fiscalizar a atividade. Na era de Getúlio, a fiscalização foi mantida pela Marinha, mas a pesca voltou para o Ministério da Agricultura, com objetivo de ser fomentada, inclusive para exportação.
O entusiasmo desenvolvimentista levou a criação, em 1962, da primeira autarquia da pesca, a Sudepe (Superintendência do Desenvolvimento da Pesca). O primeiro Código da Pesca foi criado em 1967 e deu-se então o salto da atividade pesqueira no Brasil, com pesado aporte governamental em infraestrutura e financiamento para a atividade. Feitos de forma desordenada, tais investimentos, provocaram consequências ambientais nocivas, cujos sinais ainda são sentidos no litoral e na redução do volume de peixes nas redes dos pescadores.
Na década de 1980, o Estado viu sua capacidade de intervenção na economia enfraquecida e a Sudepe, assim como diversos outros órgãos de fomento, foi extinta. A descentralização foi uma das soluções encontrada para que setores inteiros da economia não ficassem “sem gestão”. No caso da pesca, diversas funções de gestão (principalmente as que demandavam investimentos) cessaram de existir.
Em 1999, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, honrando o histórico “vai-e-vem” institucional do setor, a pesca voltou ao Ministério da Agricultura, indicação de que ela começava a voltar ao radar do desenvolvimento econômico do governo. O Governo Lula prosseguiu navegando nesse rumo, criando um órgão de fomento específico ligado à Presidência da República, a Seap (Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca). Mesmo assim, as tarefas relacionadas à gestão da pesca no Brasil continuaram dispersas entre diversas instituições. Este fato gera confusão entre os interlocutores do setor e inoperância do sistema como um todo. Igualmente, há ainda uma grande teia de legislação federal, estadual e municipal que se sobrepõe e cria confusão na normatização do setor.
O histórico nos ajuda a compreender que o notório problema da gestão governamental da pesca, tido por muitos como “desarticulação institucional”, não é um problema técnico, mas o resultado de décadas de disputa entre grupos de interesse sobre o paradigma sobre o qual a gestão da pesca no Brasil deve ser feita no Brasil: ora dominam os “desenvolvimentistas” e ora os “preservacionistas”.
Para dar continuidade ao vai-e-vem sem fim, onde se joga de um lado ao outro um setor econômico, que se bem gerido colaboraria com a conservação dos recursos pesqueiros, surge o projeto (PLC 61/09) do Executivo – já aprovado pelos deputados e atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – para criar um Ministério da Pesca. As atribuições do novo ministério abrangerão desde a pesquisa básica para conhecer o comportamento biológico das espécies, e seu limite de exploração sustentável, até o fomento, o ordenamento e a fiscalização do acesso aos recursos pesqueiros. Competirá ainda ao novo órgão melhorar as condições de vida das comunidades pesqueiras. Ou seja, esse é mais um caso de comando e controle, entregues a apenas um grupo interessado.
O projeto que será votado pelo CCJ na semana que vem, tem a simpática aceitação do presidente Lula, que já afirmou que o Brasil deveria pelo menos retirar do mar, a mesma quantidade de pescado de países como o Peru e Chile. Se não bastasse tamanha ignorância em relação à dinâmica dos recursos pesqueiros e a movimentação das correntes oceanográficas, o Presidente também negligenciou os resultados da pesquisa do Programa Revizee – Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva, fruto do compromisso assumido pelo Brasil ao ratificar, em 1988, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Os dados do Revizee sobre estoques pesqueiros apontam que 80% dos recursos pesqueiros utilizados comercialmente no Brasil estão sobrexplotados e ainda que muitas espécies já estão entrando em colapso, como a lagosta por exemplo.
Com a futura criação do Ministério, na doce ilusão de concentrar na mão de um único grupo de interesse toda a responsabilidade do setor, o Ministério do Meio Ambiente, antes responsável por garantir a conservação dos recursos pesqueiros e sua utilização sustentável, irá perder toda a força e assim será dada a largada ao pesque quem puder.
Nos últimos meses, estamos acompanhando o desmonte da política ambiental do governo Lula. É como um complô armado, por um conjunto de setores interessados em destruir as leis que os obrigam a cumprir condicionantes ambientais para a execução dos seus empreendimentos econômicos. Ruralistas querem se livrar da “reserva legal”, que exige a manutenção de cobertura florestal em parte das propriedades rurais; empreiteiras querem fragilizar o licenciamento de obras e pagar o mínimo como compensação ambiental; grileiros querem legalizar a ocupação privada de terras públicas; e todos eles fizeram um pacto sinistro, para reunir os votos de parlamentares que lhes devem favores em torno de uma agenda que saem perdendo os mais fracos e o meio ambiente.
Em 1868, o pensador e sociólogo americano Garret Hardin definiu “tragédia dos comuns” como a utilização desordenada e competitiva dos recursos naturais que, ao mesmo tempo que pertencem a todos, não pertencem a ninguém em particular. Essa teoria, apesar de antiga, se aplica perfeitamente a realidade da pesca: sem controle, indústrias de pesca e comunidades iriam extrair recursos naturais até que eles acabassem. O lucro beneficiaria poucos e o prejuízo seria de todos.
A briga desleal entre a indústria pesqueira e as espécies marinhas também fica evidente quando se olha o valor dos subsídios que ela recebe mundialmente. Segundo cálculos do consultor do Banco Mundial David Stones, 50 bilhões de dólares são gastos anualmente em apoios governamentais à atividade pesqueira. O Brasil, como se sabe, deve ajudar em breve a aumentar essa figura com seus planos mal estruturados de dobrar a pesca na costa brasileira, com o orçamento inflado do excêntrico Ministério da Pesca.
A justificativa elaborada para o Projeto de Lei ao Presidente da República é assinada por Paulo Bernardo da Silva (Planejamento), Dilma Rousseff (Casa Civil) e Carlos Minc (Meio Ambiente), e deixa claro a que vem essa nova pasta, atrair novos investidores para implementação de projetos, sobretudo para o cultivo do pescado em sistema intensivo e aumento da captura de pescado, através do investimento em novas tecnologias.
A questão é que a contrapartida em conservação é insignificante, ou melhor não está nem sequer prevista. Atualmente, no Brasil, apenas 0,4% dos mares têm algum tipo de área protegida. As áreas protegidas são consideradas hoje por renomados cientistas como a melhor ferramenta para a recuperação de espécies e para a conservação da biodiversidade.
Dados publicados pela Parceria Interdisciplinar para Estudos dos Oceanos Costeiros (Pisco, na sigla inglês) da Universidade de Santa Barbara, defende que apenas reservas marinhas restritas serão úteis na recuperação da biodiversidade marinha. Essas reservas além de recuperarem os estoques pesqueiros, colaboram também para manter o papel natural dos oceanos como regulador do clima do planeta.
Como conclusão, podemos assinalar que a “tragédia dos comuns”, tão bem comentada por Garret, há mais de cem anos, está longe de ter sido minorada no decorrer dos tempos, cada vez mais se amplia e nos leva a destruição do maior bem comum da humanidade, o nosso Planeta Terra, coberto por nada mais e nada menos que 70% dos oceanos.
*Editado às 21h37, do dia 02/05/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.
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