Análises

A eminente vitória de pirro do agronegócio

Discussão sobre alteração do Código Florestal precisa ser feita com menos critérios políticos e maior base científica. A biodiversidade está em jogo.

Ricardo Machado · Ludmilla Aguiar ·
22 de junho de 2010 · 14 anos atrás

Encontra-se em debate, de modo praticamente unilateral, a proposta de alteração do Código Florestal Brasileiro, uma legislação antiga (do começo do século passado) que foi criada com o objetivo básico de manter mananciais e cursos d’água e assegurar que os proprietários rurais mantivessem reservas de florestas em suas propriedades. Resumidamente, o Código exige que cada propriedade rural mantenha a vegetação nativa protetora de nascentes e cursos d’água, e um certo percentual da área sob a forma de reserva legal. As áreas no entorno de nascentes e cursos d’água, com ou sem vegetação, são denominadas de áreas de preservação permanente ou APP, e elas podem ocupar entre 5 e 10% de uma paisagem com terrenos de topografia suave. Para regiões montanhosas ou sujeitas a grandes inundações naturais, o percentual da APP pode ser mais expressivo.

A proposta que se encontra em discussão no Congresso Nacional, liderada por parlamentares que não possuem absolutamente nenhum conhecimento técnico sobre as funções ambientais e o alcance conservacionista do Código Florestal, prevê a redução do percentual da reserva legal, das áreas de preservação permanente e basicamente consolidar a política do fato consumado. Isto significa que aqueles que desobedeceram à legislação ambiental estariam anistiados de qualquer sanção ou punição. As justificativas para a alteração da legislação ambiental são as mesmas que levaram ao extermínio dos índios pelos bandeirantes em Goiás, ou que provocaram a redução do antigo Parque Nacional do Tocantins, ou que impedem o avanço no cumprimento das metas assumidas internacionalmente em prol de um desenvolvimento ambientalmente responsável: entraves ao desenvolvimento econômico.

“As justificativas para a alteração da legislação ambiental são as mesmas que levaram ao extermínio dos índios pelos bandeirantes em Goiás, ou que provocaram a redução do antigo Parque Nacional do Tocantins: entraves ao desenvolvimento econômico”.

Um obscuro e tendencioso estudo feito pela unidade de Monitoramento por Satélite da Embrapa tenta mostrar que a legislação ambiental, juntamente com o “excesso” de áreas protegidas existentes, faria com que a área disponível para a produção de alimentos no Brasil estivesse reduzida a “somente” 33% do território e que não teríamos como expandir a produção. O estudo revela-se enviesado de várias formas. Ao expressar os números do estudo em percentuais, mascara-se um fato notável: ainda que o estudo fosse acurado, o percentual citado representa uma área de quase trezentos milhões de hectares, área superior à área de países como a Alemanha, França, Espanha, Inglaterra, Itália, Portugal, Áustria, Bulgária, Finlândia e Grécia, combinados! O total é também superior à área que os Estados Unidos da America dedicam, por exemplo, para a agricultura. De acordo com a Divisão de Estatística da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação – FAO, o total de áreas de lavoura dos EUA é de 180 milhões de hectares. Na União Soviética, outra potência agrícola, a agricultura ocupa 123 milhões de hectares.

A asserção que não existem mais áreas para a expansão agrícola por causa das restrições ambientais, uma das argumentações básicas da bancada ruralista, mascara uma realidade e uma grande conquista da pesquisa agropecuária brasileira. Usando dados disponibilizados pela própria Embrapa, percebe-se que desde os anos 70, quando houve uma verdadeira revolução agrícola no pais, a área plantada aumentou de uns 40 milhões de hectares para quase 80 milhões de hectares. No mesmo período, contudo, a produção agrícola teve um aumento de mais de 210%, indicando que as boas safras estiveram mais relacionadas com o ganho em produtividade do que com o aumento da área plantada. Outro ponto importante, intencionalmente ignorado pelos defensores da alteração do Código Florestal, é que as atividades econômicas associadas com os ecossistemas naturais não são consideradas. Dados do Serviço Florestal Brasileiro indicam que somente o potencial de exploração manejada da madeira amazônica pode representar aproximadamente 4,5 bilhões de reais ao ano. Assim, há um falso debate de produção x conservação que é levantado por deputados e senadores que defendem a mudança na legislação ambiental, supostamente impeditiva do crescimento econômico. Nas condições atuais já somos um dos principais países produtores de soja, milho, carne de gado, frango, açúcar e café no mundo. Por que não podemos ser também os primeiros do mundo em cupuaçu, cagaita, óleo de copaíba, murici e pequi? Há muito o que investir em pesquisa sobre o potencial de exploração econômica de espécies nativas antes de dizimá-las.

Outro argumento insustentável levantado pelos pró-mudança é a dificuldade de cumprimento da legislação ambiental. Alega-se que seria impossível que as propriedades rurais se adequassem ao Código, a despeito do fato de que milhares de propriedades, especialmente aquelas localizadas nas fronteiras agrícolas, devem ter sido estabelecidas bem depois de 1934, quando o Código Florestal foi criado. Talvez fosse o caso de se perguntar: e se fosse uma mudança na área de tributos? E se novas alíquotas ou novas taxas fossem impostas à sociedade brasileira? Podemos argumentar que seria impossível fazer uma adequação, pois as empresas quebrariam, postos de trabalho fechariam e o país iria parar? Certamente que não, pois já estamos com 40% de carga tributária e o pais cresce como nunca.

Voltando às questões ambientais, caso o Código seja alterado da forma proposta, teremos nas mãos um grande impasse para resolver: como manter a sustentabilidade ambiental sem o Código Florestal? Como dizer aos países compradores ou aos parceiros em acordos internacionais que conseguiremos manter nossa rica biodiversidade em meia dúzia de parques isolados, mal implantados, e que ocupam somente uma pequena porção do território brasileiro?

Se o Brasil deseja ser uma nação diferenciada e uma referência global, não podemos passar mensagens ambíguas e contraditórias para o mundo. Existem exemplos bem concretos e recentes que mostram como é grande a distância entre nosso discurso e o que acontece na prática. Desejamos ter assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas comercializamos como nunca bombas, minas e outros artefatos bélicos para países cujos conflitos foram condenados até mesmo pelo órgão global onde pleiteamos um reconhecimento. Alardeamos para o mundo que o nosso programa de produção de etanol é a solução para o aquecimento global, mas não pensamos duas vezes antes de explorar o petróleo da camada pré-sal. Somos orgulhosos do nosso agronegócio produtivo e arautos do combate à fome global, mas tente cruzar o mapa da fome mundial com o mapa de nosso comércio internacional para ver a incongruência do discurso. Na área ambiental caminhamos rapidamente para dar outro exemplo contraditório para o mundo. Assinamos acordos internacionais de proteção da biodiversidade e concordamos com as Metas do Milênio, mas vamos suprimir a necessidade de proteção da biodiversidade fora das unidades de conservação públicas.

“É preciso analisar o papel do Código Florestal na proteção ambiental e da diversidade biológica sob a óptica mais científica, sem apelos políticos e econômicos. Inúmeros trabalhos científicos demonstram que a manutenção de populações saudáveis e viáveis de animais e plantas nativos não será possível em áreas nativas pequenas e isoladas.”

Sabemos hoje que o conjunto de todas as unidades de conservação e terras indígenas representa apenas 26% do território brasileiro, mas esse número é somente uma média. Regiões como a Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, respectivamente,  possuem cerca de 3%, 2% e 1% de suas áreas originais mantidas por parques e reservas. Isso vale dizer que entre de 97 e 99% dessas regiões estão nas mãos de particulares e cabe a eles participarem na proteção de nosso patrimônio natural. Essa demanda não é baseada em leis secundárias, portarias ou resoluções, mas consta na nossa Constituição. De acordo com o Artigo 186 da Carta Magna, uma propriedade rural deve cumprir sua função social e essa condição só é alcançada quando o imóvel atende, simultaneamente, ao “aproveitamento racional e adequado”, à “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”, à “observância das disposições que regulam as relações de trabalho” e à “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”. Analisando o texto constitucional é fácil perceber que contribuir para a preservação do meio ambiente é uma das funções precípuas de um imóvel rural e a inobservância disto poderá levar o Estado a desapropriar a área, conforme determina o Artigo 184 da Constituição Brasileira.

Entretanto, é preciso analisar o papel do Código Florestal na proteção ambiental e da diversidade biológica sob a óptica mais científica, sem apelos políticos e econômicos. Inúmeros trabalhos científicos demonstram que a manutenção de populações saudáveis e viáveis de animais e plantas nativos não será possível em áreas nativas pequenas e isoladas. Embora o Código Florestal brasileiro não tenha sido criado originalmente para a proteção da biodiversidade, sabemos hoje, com base em princípios oriundos da biogeografia, ecologia de populações, ecologia de paisagens e biologia da conservação, que seu papel pode ser fundamental para a manutenção da dinâmica natural das espécies. Mudanças na legislação são possíveis e desejáveis, desde que o resultado final traga benefícios para a maioria da população. Talvez uma alteração plausível na legislação ambiental seja a realização de análises regionais para determinar as necessidades básicas de conservação da biota local e as demandas de desenvolvimento socioeconômico das comunidades locais. A definição prévia de espaços naturais representativos que estejam imersos em paisagens produtivas talvez seja a solução. Alguns países já pensam nesse tipo de solução que promove a ordenação do território. A Argentina, por exemplo, discute uma legislação ambiental que incorpora os princípios do Código Florestal brasileiro, mas planeja-se sua implantação em unidades territoriais como as micro-bacias e não em pequenas ou grandes propriedades rurais.

Para finalizar, salientamos que os produtores rurais são os principais e mais imediatos beneficiados com a manutenção de áreas nativas protetoras do solo, de mananciais e da fauna e flora locais. Estima-se que a produção de alimentos demande mais de 70% da água consumida pela sociedade humana. A fórmula é simples: sem Código, sem água. Sem água, sem alimento. Talvez a alteração proposta para o Código Florestal possa ser comparada à histórica vitória do Rei Pirro contra os Romanos: aparentemente acredita-se que haverá um ganho com a alteração do Código Florestal, mas na verdade será uma tremenda derrota para a sociedade brasileira.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

 

  • Ricardo Machado

    Biólogo com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

  • Ludmilla Aguiar

    Bióloga com mestrado em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela UFMG e doutorado em Ecologia pela UnB.

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