Albatrozes são aves gigantescas que brincam com os ventos das piores tempestades e são capazes de percorrer milhares de quilômetros para almoçar. Parceiros fiéis, podem se juntar por toda vida, além de serem longevos e nidificar após os 60 anos de vida. Esses bichos sempre causam admiração e surpresa. Uma delas veio do estudo dos albatrozes-de-laysan Phoebastria immutabilis, uma espécie do Pacífico que nidifica em ilhas do Hawaii.
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Na ilha de Oahu, cerca de 30% dos casais é formado por fêmeas que mantêm uma relação estável (em geral, dura a vida toda) e juntas criam seus filhotes. Como um casal de albatrozes só consegue criar, com sucesso, um filhote a cada temporada, as moças têm que entrar em algum acordo. De fato, ambas têm a chance de ser mães ao longo dos anos de sua relação. Quanto aos pais, estes em geral são senhores casados da vizinhança, cooptados como doadores para as produções não independentes.
Este exemplo de homossexualidade em uma espécie animal é explicável em um contexto evolutivo onde machos são mais raros do que fêmeas (no caso, os machos são 41% da população), e são sempre necessários dois parceiros para criar um filhote. Todavia, não se pode descartar que as moças se juntem simplesmente por gostarem umas das outras, já que namoram e cortejam da mesma maneira que os casais heterossexuais.
Não apenas os albatrozes
Os albatrozes-de-laysan são uma entre cerca de 1.500 espécies animais, de primatas (incluindo o Homo sapiens) a nematoides, que já foram documentadas engajadas no que tecnicamente se chama comportamento homossexual. A homossexualidade feminina parece especialmente comum em aves marinhas, porém há espécies de lagartos que dispensaram totalmente os machos. Nesse caso, existem apenas fêmeas partenogenéticas que precisam realizar “pseudo-cópulas” para ovularem (nenhum mamífero é capaz de nascimentos virgens, apesar de algumas histórias, e mesmo se fosse os bebês também seriam fêmeas).
Entre machos, há exemplos de uniões estáveis entre pinguins, abutres e cisnes-negros. Os últimos podem parear com fêmeas em um ménage que dura até os ovos serem postos. A(s) fêmea(s) é(são) então expulsa(s) e os rapazes criam os filhotes com um sucesso maior que o de casais heterossexuais.
Entre os mamíferos, há carneiros domésticos que se recusam a copular com ovelhas, fazendo-o apenas com outros carneiros (o que está associado a diferenças neurológicas), botos-cor-de-rosa que gostam de sexo nasal, e girafas, elefantes e leões que podem dedicar-se ao sexo homossexual com frequência até maior que ao sexo heterossexual.
Os exemplos são variados e há uma série de explicações idem, de estratégias que maximizam o sucesso reprodutivo em determinadas circunstâncias (como entre as albatrozes) a comportamentos que emergem da interação entre a plasticidade neuronal e a ação de hormônios. Além, é claro, do fato óbvio de sexo ser divertido e os bichos – sem as travas culturais humanas – gostarem do que fazem.
Estes comportamentos são certamente escandalosos para pessoas como Marco Feliciano, deputado e pastor evangélico, que hoje macula a presidência da Comissão de Direitos Humanos de nossa já muito maculada Câmara dos Deputados. Se as albatrozes fossem gente, ele certamente negaria o direito ao reconhecimento de sua união e da maternidade conjunta de seus filhotes.
Comportamentos que parecem “imorais” aos olhos de alguns são inconvenientes para quem ignora os últimos dois milênios de filosofia e ainda acha que a Natureza reflete a mente de um Criador que pensa da mesma maneira que seus “representantes”. Entretanto, e curiosamente, essas pessoas costumam usar a palavra “antinatural” para condenar aquilo do que discordam.
A verdade é que a Natureza é amoral. Invocá-la como guia da moralidade humana é artifício retórico das ideologias, basta uma leitura seletiva.
Muita água correu embaixo da ponte entre a teocracia do ano 538 AC e o Iluminismo, quando surgiram os conceitos sobre direitos e garantias individuais que servem de base das relações entre as pessoas, e destas com o Estado.
Reconhecer que todos têm direito à felicidade e assegurar direitos e deveres comuns para que cada indivíduo busque a sua – independente da crença, orientação sexual e posição social – é um dos maiores avanços da civilização ocidental. E também um dos mais frágeis.
Estes princípios, com o amparo informado da disciplina cabível ao caso, e não preconceitos justificados por alguma fé, é que devem nortear o desenvolvimento de leis e sua aplicação pelo Estado em assuntos como uniões homoafetivas, células-tronco e aborto, para citar exemplos onde preconceitos têm contaminado a discussão e atrasado o bonde da História.
Infelizmente, existem sempre falsos profetas por aí que querem impor sua visão de mundo a quem dela não compartilha, apelando para a vontade divina e o que é “natural”.
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