O mundo era muito diferente durante o Eoceno, 56- 34 milhões de anos atrás. A extinção dos dinossauros, 65 milhões de anos atrás, deixou vagos os nichos ecológicos dos grandes herbívoros e antigos mamíferos com cascos chamados Condylarthra evoluíram aproveitando a oportunidade em uma grande radiação adaptativa. Parte desta radiação é a dos chamados Paenungulata, um grupo de espécies apenas aparentemente diversas que inclui os elefantes, hiraces e peixes-boi.
As margens dos mares rasos e quentes com muitos pântanos que cobriam boa parte do mundo deveriam ter muitas oportunidades para mamíferos dispostos a se molhar, como as primeiras baleias (que lembravam crocodilos e herbívoros com um estilo de vida similar ao dos hipopótamos.
O peixe-boi mais antigo no registro fóssil, com 50 milhões de anos, é o jamaicano Pezosiren portelli, uma forma intermediária perfeita (daquelas que os criacionistas dizem não existir) com patas que permitiam que caminhasse em terra, mas o crânio, dentes e as costelas super-densas de um peixe-boi típico (já falarei disso). Formas posteriores que viviam nas margens do antigo Mar de Tethys, do Egito ao Paquistão, tinham um estilo de vida cada vez mais aquático, mostram pernas e cintura pélvica cada vez mais reduzidas às mais de 50 formas descritas, culminando com as espécies ainda vivas, o marinho dugongo do Indo-Pacífico (Dugong dugon) e os três peixes-boi do Atlântico e Amazônia (Trichecus manatus, T. inunguis – americanos – e T. senegalensis – do oeste da África).
Nadadores grandalhões
Peixes-boi são adaptados à vida aquática. Além do fato óbvio da cauda ter forma de nadadeira, não possuírem patas traseiras e as dianteiras terem forma de remo, esses mamíferos têm ossos muito densos (e sem medula) que funcionam como um lastro, enquanto os longos pulmões que correm ao longo da coluna são usados para regular a flutuabilidade.
Peixes-boi são bichos grandes. Eles pesam de 400 a 550 kg e o seu couro muito grosso é uma defesa, que desencoraja a maioria dos predadores. Seus olhos pequenos não são de muita utilidade nas águas turvas dos rios e estuários onde estes bichos vivem. Lá, o tato é um sentido importante. O corpo dos peixes-boi têm pelos espalhados a intervalos regulares usados como sensores, a mesma função do grande bigode que cobre o lábio superior, muito preênsil e que funciona quase que como uma mão. Peixes-boi são táteis nas suas interações sociais, mas também se comunicam por sons audíveis quando se mergulha com eles, da mesma forma que baleias, golfinhos e hipopótamos. E elefantes.
Herbívoros que passam a maior parte do tempo comendo, peixes-boi não possuem os dentes da frente, substituídos por uma placa córnea (que tem uma textura curiosa). Em compensação, os molares são continuamente substituídos ao longo da vida, um dente novo surgindo no fundo de cada maxila para substituir os antecessores, que caem quando chegam à frente da fila.
As plantas que um peixe-boi mastiga fermentam em um longo intestino de até 45 metros, onde bactérias transformam a celulose em nutrientes que podem ser absorvidos (o mesmo acontece conosco. Na verdade todos nós incluímos cocô de bactérias em nossas dietas). Essa fermentação gera quantidades enormes de gás, e o resultado, além da flatulência, é a barriga de cerveja dos peixes-boi.
Como é comum entre grandes mamíferos, os peixes-boi reproduzem-se lentamente. Um filhote nasce após 13 meses de gestação e é amamentado por 2 anos. O que significa que uma fêmea, com sorte, tem um filhote a cada 4 anos. Ao mesmo tempo, a maturidade sexual é atingida com 3-4 anos de idade e estes bichos são longevos. Podem viver 50 a 60 anos livres na natureza. A longevidade e baixa fertilidade tornam esses animais vulneráveis à caça, pois seus números demoram muito tempo para se recuperar.
Simpáticos e vulneráveis
Totalmente inofensivos, simpáticos e curiosos (onde não são caçados podem interagir com mergulhadores), é de se imaginar que com tanta fofura só um sociopata teria coragem de matar um bicho desses. Infelizmente, ou a fofura não é suficiente ou há muitos sociopatas. Peixes-boi têm sido dizimados pela caça e a espécie marinha (Trichecus manatus), que já ocorreu do Espírito Santo ao Amapá, hoje tem uma população estimada de 200 indivíduos entre Alagoas e a fronteira com a Guiana Francesa.
Em muitos lugares, como no nordeste brasileiro, as fêmeas grávidas não conseguem achar estuários e manguezais tranquilos e abrigados para parir suas crias e o resultado são bebês recém-nascidos arrastados pelas ondas até as praias onde, com sorte, podem ser resgatados por ONGs que trabalham com a conservação da espécie, como a AQUASIS. É triste pensar que a falta de lugares onde os bebês possam nascer – sem pescadores, turistas e seus barcos, redes e linhas de pesca – seja uma das maiores ameaças a esta espécie.
O peixe-boi-amazônico (como os da foto) realiza migrações anuais ditadas pelas cheias que aumentam a superfície dos lagos das várzeas, onde se alimentam de plantas aquáticas, e os conectam aos rios onde passam a vazante. Alguns indivíduos que permanecem nos lagos mais profundos podem ficar praticamente em jejum por 7 meses, algo que as reservas de gordura e o baixo metabolismo permitem. Ninguém diria que o peixe-boi é um bicho extremo, mas ele é.
Massacre impiedoso
Os peixes-boi-amazônicos foram caçados em escala industrial desde o Brasil Colônia e há registros de sua carne e óleo sendo exportados do então Grão Pará no século XVII. Estima-se que entre 1.000 e 2.000 animais foram mortos por ano entre 1780 e 1925. O número cresceu tremendamente após 1935, com a industrialização do Brasil e o surgimento da demanda por correias de motores e outros usos para couros grossos e resistentes. A armadura do peixe-boi foi sua desgraça.
Entre 4 e 10 mil peixes-bois-amazônicos foram mortos pelo seu couro e carne (a “mixira”, ainda apreciada em partes da Amazônia) entre 1935 e o início da década de 1960, quando o colapso das populações e o uso de materiais sintéticos, além da lei de proteção à fauna de 1967 (uma bola dentro do governo militar), reduziram a matança – que hoje continua, apesar de tudo.
Ribeirinhos continuam caçando peixes-boi pela sua carne, como testemunham os filhotes órfãos resgatados todos os anos e enviados a centros de recuperação, como o mantido pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA e o que visitei no Peru. Vale lembrar o abate de 200 exemplares na “reserva de desenvolvimento sustentável” (seria piada se tivesse graça) Piagaçu-Purus durante a grande seca de 2010.
Povos antigos ajudaram na matança
Essa tradição começou antes da chegada dos europeus e há relatos de índios caribenhos matando os mansos peixes-boi a tacape após atraí-los com comida. Assim como se sabe que as populações humanas que habitavam as várzeas amazônicas (estimadas por alguns em milhões) exploravam intensamente espécies aquáticas, como testemunhado por Orellana e Carvajal. É provável que foi a extinção desses povos graças às doenças trazidas pelos europeus que permitiu, séculos depois, que exploradores encontrassem praias cobertas por jacarés e tartarugas, e lagos com grandes grupos de peixes-boi. Que foram massacrados pelos novos donos da terra.
Enquanto os portugueses e seus servos brasileiros matavam peixes-boi por aqui, uma espécie próxima foi “descoberta” e extinta em menos de 30 anos. A vaca-marinha-de-steller Hydrodamalis gigas é um dos mais famosos casos de extinção causada pelo homem. Descoberta em 1741 nas ilhas Kommandorski pela expedição de Vitus Bering (que nomeou o estreito) e de Georg Steller, a espécie foi perseguida até a extinção por baleeiros, caçadores e similares, o que ocorreu ao redor de 1768.
Esse foi o fim de uma história que começou muito antes. No final do Pleistoceno esse animal incrível (imagine um peixe-boi com 8 metros e 10 toneladas, maior que algumas baleias) ocorria ao longo da borda norte do Pacífico entre o norte do Japão e a Califórnia, onde quer que existissem florestas de algas (kelp).
Quando os primeiros humanos com tecnologia de barcos e arpões chegaram na área – os prováveis ancestrais da primeira onda de colonização na América – esses enormes animais sem defesas foram presa fácil, sendo eliminados até seu último refúgio, que permaneceu intocado por mãos humanas até a chegada de Bering, Steller e sua tripulação. Parece que vamos fazer o mesmo com nossos peixes-boi.
Autor deste blog, Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia. Seu último livro, sobre ecossistemas brasileiros e conservação, é Espécies e Ecossistemas. |
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belo texto!