A aprovação do novo Código Florestal, que abriu exceção à ocupação até agora ilegal de mangues por atividades como a carcinicultura, pode tornar ainda pior a situação destes mamíferos.
Isso não quer dizer que os conservacionistas jogaram a toalha – muito pelo contrário, novas ideias e ações estão sendo colocadas em prática para multiplicar essa população estimada em 423 indivíduos.
A faixa de litoral leste do Ceará e o noroeste do Rio Grande do Norte é a região com maior número de encalhes no país, de acordo com a Ana Carolina Meirelles, coordenadora do Programa de Mamíferos Marinhos e do Projeto Manati da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis). Essa classificação chegou depois que seis estuários da região e suas formações de mangue passaram a receber projetos de salinas e de criação de camarões. “Essa região é parte do semiárido nordestino, onde os rios são intermitentes, os manguezais são pequenos e os impactos ambientais têm grandes consequências”, analisa.
Ocupação do berçário dos peixes-boi
Com as áreas para parto e cuidados natais interditadas pela ação do homem, esses mamíferos marinhos tiveram que recorrer ao litoral. “Sem acesso aos rios, as fêmeas dão à luz em locais inapropriados”, detalha Ana Carolina, e lembra que a região não tem formação de baías costeiras. As praias ocorrem em mar aberto, com correnteza forte, grande quantidade de ondas. O resultado é a maior quantidade de encalhes de filhotes, que se desgarram da mãe.
Como forma de atenuar o risco de morte, pelo encalhe, desde 2001 existe a Rede de Encalhes de Mamíferos Aquáticos do Nordeste (Remane). “Se o encalhe for no Ceará, a Aquasis resgata, se for no litoral potiguar, o resgate é feito pelo PCCB”, explica. A Remane consegue até evitar mortes, mas nem tudo está resolvido.
Uma vez retirado da areia, o filhote é levado para o Centro de Reabilitação de Mamíferos Marinhos, que a Aquasi possui na unidade do Sesc Iparana, em Caucaia, Ceará. Os filhotes passam por bateria de exames, sob cuidados de veterinário especializado, que aplica todos os cuidados, relata Ana Carolina. Quando o animal se encontra com mais saúde, ele é transferido para o Centro de Mamíferos Aquáticos (CMA), unidade do ICMBio em Itamaracá, Região Metropolitana do Recife. A viagem é feita em avião executivo.
Cuidados no cativeiro
Essa transferência geográfica, de animais encalhados no litoral potiguar ou cearense, para o litoral alagoano, tem seu efeito colateral, analisa Ana Carolina. A população de peixes-boi desta faixa do litoral brasileiro fornece seus filhotes, que não contribuem para a renovação da sua comunidade. “Isso é preocupante para populações pequenas como essa e pode levá-la rapidamente a extinção”, alerta a bióloga da Aquasis.
Uma faixa de litoral sem peixe-boi representaria a perda de habitat, um trecho de descontinuidade da presença do animal. Ocorrências como essa já foram apontadas em pesquisa de Régis Pinto de Lima no departamento de Oceanografia Biológica da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Os espaços que separam as populações de peixe-boi no Brasil são classificados como outro grave desafio a ser enfrentado pelos especialistas, aponta João Carlos Gomes Borges, da Fundação Mamíferos Aquáticos (FMA). “Somente com mais trocas entre pesquisadores e instituições, novos financiamentos para estudos, poderemos tratar esse tema”, defende.
O trabalho de Régis de Lima aponta dois trechos sem peixe-boi na faixa de litoral de Alagoas até o Amapá. O primeiro é entre a Barra de Camaragibe, em Alagoas e Recife (cerca de 200 quilômetros) e a segunda descontinuidade tem seu limite sul em Iguape e vai até Jericoacoara (aproximadamente 300 quilômetros), ambas cidades cearenses.
A transferência de indivíduos de uma área geográfica para outra e sua convivência em cativeiro pode possibilitar o hibridismo genético, adverte Denise Castro, da FMA. “O hibridismo”, afirma a bióloga, “pode inviabilizar a devolução do animal ao ambiente natural”.
Além do mais, a outra área de reintrodução de animais, no estuário do Rio Tatuamunha, em Mamanguape, Paraíba, foi alvo de um estudo feito por Daine Anzolin que verificou a presença de metais pesados, que chegaram, supostamente, no leito do rio, que passa por várias plantações de cana-de-açúcar alvo de agrotóxicos. “Se tornou perigoso levar animais para lá”, adverte Ana Carolina, que explica as consequências dos metais pesados nos mamíferos. “Essa contaminação provoca imunossupressão e pode gerar problemas de infertilidade”.
Novas ações
Peixe boi e José de Anchieta
A perda de habitat pode ser consideradas histórica. No trabalho de Régis de Lima, há citações datadas do século 16. O padre jesuíta José de Anchieta, em maio de 1560, faz referências a peixes-boi, no Espírito Santo, e relaciona sua distribuição no litoral com a temperatura da água. |
Outro projeto visa beneficiar a vida selvagem no litoral extremo-oeste, no complexo estuarino do Rio Timonha Ubatuba. É uma região, com aproximadamente 10 mil hectares de bosque de mangue bem preservado, com rica população de animais. “O interessante nesta região, é que não há o registro de encalhes de filhotes recém-nascidos”, compara Cristine.
A ideia é criar nesta região o Refúgio de Vida Silvestre do Peixe-boi Marinho. Vários trabalhos comprovam a qualidade do ambiente. O estudo com a proposição da unidade de conservação está completo e aguarda apenas uma decisão política, em defesa da vida.
Leia também
Garimpo já ocupa quase 14 mil hectares em Unidades de Conservação na Amazônia
Em 60 dias, atividade devastou o equivalente a 462 campos de futebol em áreas protegidas da Amazônia, mostra monitoramento do Greenpeace Brasil →
As vitórias do azarão: reviravoltas na conservação do periquito cara-suja
O cara-suja, que um dia foi considerado um caso quase perdido, hoje inspira a corrida por um futuro mais promissor também para outras espécies ameaçadas →
Organizações lançam manifesto em defesa da Moratória da Soja
Documento, assinado por 66 organizações, alerta para a importância do acordo para enfrentamento da crise climática e de biodiversidade →