O trajeto oficial da trilha Hoerikwaggo entre Sivermine de Orange Kloof vai pela encosta oeste da Montanha de Constantia, com uma esplêndida vista do Atlântico. Resolvemos, contudo, ir pela vertente leste, cujas trilhas levam ao mesmo destino, mas avançam sob maior proteção do sol. Também queríamos ver o processo de substiuição das florestas de pinheiros pela vegetação nativa de fynbos que está ocorrendo na Floresta de Tokay.
Qualquer que seja o traçado escolhido, é bom sair cedo por que trata-se de um dia longo. No nosso caso, demoramos mais de sete horas para vencer os 17 quilômetros até o abrigo de Orange Kloof.
Começamos com um banho na Represa de Silvermine. Este reservatório d`água abasteceu a Cidade do Cabo durante décadas. Recentemente, todavia, foi incorporado ao Parque Nacional da Montanha da Mesa que submeteu a área a intenso manejo: substituiu a vegetação exótica por mata nativa, recuperou as trilhas e construiu uma extensa rede de plataformas ao redor do lago e ao longo do rio Silvermine, onde hoje é possível empurrar um carrinho de bebê ou se locomover em cadeira de rodas. A intervenção ficou tão boa que mereceu aplausos até de frequentadores europeus. Passeando por ali encontramos Louise uma cadeirante inglesa, cuja felicidade dava a medida do sucesso da passarela: “há tantos lugares na África do Sul onde o cadeirante pode passear na natureza que não me canso de passar férias aqui. Perto do Reino Unido, este país é o paraíso!” Boa parcela da população do Cabo parece concordar. Antes das dez da manhã, as margens do lago já estão cheias de famílias com filhos pequenos se aboletando nas mesas de pique-nique do Parque. Chegam com jeito de quem veio para passar o dia inteiro.
Não ficamos para conferir. Embora Ivan tenha chegado a sugerir que trocássemos a caminhada por um looooongo dia de dolce far niente na represa, optamos pela opção pé-no-chão.
O primeiro trecho, no platô de Silvermine é relativamente fácil. Só no finalzinho arma-se uma subida íngreme até a Gruta do “Olho do Elefante”, onde paramos para descansar à sombra, enquanto admirávamos a vista da Baixada do Cabo (Cape Flats).
A partir daí, caminhamos cerca de três horas e meia em uma trilha que segue a linha de cota logo acima da Floresta de Tokai (em alguns trechos, ex-Floresta de Tokai). Tokai tem uma longa história como Floresta (no sentido comercial do termo). Suas primeiras árvores datam de 1694 quando o então governador do Cabo, Simon van de Stel, mandou plantar ali 4.379 carvalhos . Em 1884, os carvalhos deram lugar a uma plantação comercial de pinheiros (sobretudo Pinus radiata) e eucaliptos cuja área foi se expandindo ao longo dos anos até cobrir 610 hectares. Como Tokai era uma das plantações comerciais mais próximas de um centro urbano, em 1906 o Governo decidiu instalar no local a primeira escola sul-africana de engenharia florestal.
A Floresta de Tokai, cujos pinheiros são retirados a cada 40 anos é viável financeiramente. Além disso provê sombra para caminhantes e mountain bikers, o que a torna um local de lazer muito procurado no verão. No ano 2000, contudo, Tokai foi incorporada ao Parque Nacional da Montanha da Mesa. Em 2006, o Parque aprovou um novo Plano de Manejo para a área, pelo qual sempre que um lote de árvores antingir a maturidade comercial será cortado e vendido, mas outro não será replantado em seu lugar. Ao contrário, a terra vazia será usada para a regeneração da flora nativa do Cabo, os fynbos.
O procedimento, que já começou, tem sido muito bem sucedido. O micro-clima da encosta de Tokai, mais úmido e com menor insolação que a grande maioria do resto do Parque propiciou a restauração de várias espécies ameaçadas de extinção que não vingavam no resto da área protegida. O meio ambiente respondeu rápido à chance que lhe foi dada e, em menos de cinco anos vários exemplares raros de fynbos de baixada começaram a desabrochar em Tokai.
Nem todos aplaudiram. A sombra benfazeja da Floresta de Tokai dava refresco aos excursionistas do Cabo há mais de um século. A moçada chiou. Choveram cartas nos jornais e protestos com faixas. Até uma associação de amigos da sombra de Tokai foi criada e, por meio dela, foi ajuizada uma ação no Tribunal do Cabo. A peça legal clama pelo direito ao lazer e pede a preservação do “patrimonio cultural” estabelecido pelos pinheiros centenários”.
O Parque tem respondido com elegância e firmeza. Assegurou a continuidade do direito ao lazer em Tokai com a manutenção de toda a rede de trilhas, inclusive aquelas especificamente dedicadas à prática de mountain bike e comprometeu-se a plantar árvores nativas em sítios específicos de modo a prover alguma sombra. Mais do que isso, contudo, produziu um sólido documento onde, apoiado na legislação que atribui aos Parques Nacionais a missão pecípua de conservar a bidoiversidade,aponta as vantagens de se garantir um bloco de mais de 500 hectares novos para a proteção dos fynbos de baixada. Claro que haverá perdas, o documento admite. Certos pássaros e macacos que agora frequentam a área terão sua rotina muito afetada e provavelmente desaparecerão de Tokai. Em termos de biodiversidade, os danos, porém, parecem ser menos grave que os ganhos.
Até o momento as reclamações não têm encontrado maior eco que ouvidos moucos. Lá de cima, enquanto percorremos a Hoerikwaggo dá para ver por que o projeto tem causado tanta celeuma. Mesmo para quem entende e concorda inteiramente com as ações do Parque, ainda assim dói ver tanto desmatamento de uma só vez. O emocional bate forte. É duro.
Aos poucos Tokai fica para trás. Suas encostas são substituídas por outras cujo solo está coberto de parreiras. É Constantia, a mais antiga região produtora de vinhos do país. Dá vontade de tirar uma fotografia e enviar para a Câmara de Deputados do Brasil. Apesar de Constantia estar produzindo uvas há mais de trezentos anos em uma área que hoje é urbana e portanto dona de um metro quadrado caríssimo, suas APPS encontram-se impecavelmente preservadas. Do alto da Hoerkiwaggo é fácil ver as coroas dos morros e as faixas marginais dos rios. Nelas vicejam a mata nativa, onde um verde alegre serve de corredor da biodiversidade, mitiga enchentes e evita o assoreamento dos cursos d´água.
Ainda marchamos cerca de uma hora antes de chegarmos em um pequeno corredor de não mais de dez metros de largura por quatrocentos de comprimento. Esta passagem possibilita a descida do morro de Vlakkenberg, contíguo a Silvermine, em direção a Orange Kloof, onde está o abrigo desta noite.
Foi desapropriado de uma vinícola local. Sem ele não haveria ligação nenhuma entre duas parcelas do Parque Nacional da Montanha da Mesa. Hoje é uma passagem estreita que atende sobretudo aos interesses de excursionistas. Espera-se, entretanto, que sirva de cabeça de ponte para um corredor um pouco mais largo que faculte a migração mais desimpedida de espécies faunísticas.
Vencido o corredor, é preciso atravessar uma rua larga e entrar na área de Orange Kloof, onde está o último remanescente daFloresta Afromontana na Península do Cabo. Orange Kloof , que fica na base da Montanha da Mesa, tem um dos abrigos mais bonitos e acochengantes de toda a Hoerikwaggo. Suas camas e lareira são mais que bem vindas para nossas cansadas pernas.
Na próxima postagem finalmente subiremos a Montanha da Mesa.
*Com participação de Sandra e Ivan Amaral
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