A era moderna no estudo de carnívoros no Brasil começou com a vinda do biólogo George Schaller, em abril de 1977, para fazer o primeiro estudo da onça-pintada, no Pantanal Matogrossense. Uso aqui um texto que traduzi do George para contar um pouco mais dessa história. Publicado em 1980, este artigo conta os infortúnios que marcaram o início do nosso projeto com as onças, ao qual me juntei formalmente em janeiro de 1978, como contraparte brasileira do projeto, através de um convênio entre o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal/IBDF (o precursor do IBAMA) e a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza/FBCN.
Depois de explorar áreas nas Américas Central e do Sul, George escolheu para o estudo a fazenda Acurizal, então uma fazenda de pecuária ativa, localizada na margem direita do rio Paraguai onde ele é margeado pela Serra do Amolar, borda oeste do Pantanal e divisa com a Bolívia.
O artigo original “Epitaph for a Jaguar” (Epitáfio para uma onça-pintada) foi primeiro publicado no Animal Kingdom Magazine, Abril/Maio, 1980, e depois republicado como capítulo do livro “A Naturalist and Other Beasts – Tales from a life in the field”, Sierra Club Books, 2007.
Passo a palavra ao George:
“Pegadas na lama contaram a história. Durante a noite uma onça-pintada fêmea, protegida por um arbusto na beira da baía, havia se aproximado de uma capivara e saltou, matando-a em um instante de violência, antes que ela pudesse escapar para a segurança da água. Depois, com o roedor de 35 quilos entre suas patas dianteiras, ela o levantou com as mandíbulas e arrastou pela praia até o interior da floresta.
Segui as marcas por entre bromeliáceas afiadas como navalhas e lianas espinhentas. Um passo de cada vez, eu avançava com os ouvidos atentos. Meus olhos tentavam penetrar a vegetação, me esforçando para ver a onça. Ela certamente sabia da minha presença, pois as folhas secas no chão, em agosto, faziam bastante barulho sob os meus pés. Talvez ela tivesse abandonado a presa depois de uma refeição apressada, como as onças comumente fazem.
Então, a poucos metros, um rosnado baixo e contínuo me fez parar. Lentamente me abaixei, na esperança de ver ao menos um vislumbre do luminoso desenho de rosetas pretas em fundo dourado, por baixo dos arbustos ensombreados onde ela se escondia com sua presa. Mas ela permanecia invisível. Sem querer perturbá-la mais, voltei para trás, mais uma vez frustrado em minhas tentativas para vê-la. Há vários meses, eu estava estudando onças-pintadas no Brasil, na fazenda Acurizal, que cobre 142 km² da planície de inundação do rio Paraguai, do lado leste da Serra do Amolar, uma cadeia de montanhas ao longo da divisa com a Bolívia.
Durante esse tempo, eu havia me familiarizado com as onças na fazenda, mas somente à distância, através dos rastros deixados por elas ao longo das trilhas de gado e praias, e examinando as carcaças de suas presas. Não é difícil identificar indivíduos por suas pegadas quando apenas uns poucos animais habitam uma área. As pegadas de um macho adulto podem ser diferenciadas das de uma fêmea por seu maior tamanho, formato mais arredondado, e pela maior distância entre os dedos; as pegadas de um animal jovem são menores que as de um adulto, e podem estar acompanhando ou próximas das de uma fêmea. Quando duas fêmeas adultas ocupam uma mesma área pode ser difícil diferenciar suas pegadas, mas normalmente elas têm alguma característica que as identifica, como alguma pequena peculiaridade no formato da almofada plantar.
Mãe e filhote
Em Acurizal, descobri que duas onças, uma fêmea adulta e seu filhote, também fêmea, com uma idade estimada entre 15 e 18 meses, caçavam juntas em uma área de floresta com aproximadamente 40 km2. A mata relativamente aberta provia a elas gado – sua principal presa na fazenda – e trechos mais densos de mata secundária abrigavam varas de queixadas, outra de suas presas mais importantes. Matas de galeria acompanhavam dois riachos que drenavam a serra, e essas abrigavam outras espécies de presas, como veados (mateiro e catingueiro) e antas. A temperatura era mais fresca dentro da mata, e as onças frequentemente descansavam ali durante as horas mais quentes do dia. Uma terceira fêmea visitava Acurizal intermitentemente, a sua área parcialmente se sobrepondo àquela das outras duas fêmeas. E, finalmente, um macho adulto de tamanho médio dominava não apenas a área da fazenda, como ainda estendia seus movimentos pelas florestas a oeste das montanhas.
Esse sistema de posse de terra – com territórios de fêmeas vizinhas se sobrepondo e aquele de um macho residente incluindo várias fêmeas – é similar àquele de outros grandes felinos solitários. Embora façam parte de uma comunidade onde os membros se monitoram entre si, os jaguares, como tigres e pumas, essencialmente vivem sozinhos. A julgar por suas pegadas, mesmo a fêmea adulta e sua filha, já raramente se associavam. Em uma ocasião, o macho e a mãe andavam juntos, talvez por ela estar no cio. Peter Crawshaw, meu colega brasileiro, os seguiu até onde eles haviam matado um tamanduá-mirim – como uma brincadeira, aparentemente, pois eles meramente morderam o animal na nuca e o abandonaram.
Na manhã seguinte àquela em que a fêmea rosnou para mim, saí do acampamento para explorar uma praia, entre a linha d’água e a floresta, mais uma vez tentando encontrar a onça. À minha direita se estendia o Pantanal, uma planície alagadiça com mais de 100 mil km2, que é parcialmente inundada todo ano pelo rio Paraguai e pelos seus afluentes. Esse mosaico de florestas, banhados, lagos, e baías protegem uma das grandes concentrações de fauna da América do Sul. Depois de uma visita a essa área em 1912, Theodore Roosevelt escreveu, “É literalmente um lugar ideal onde um naturalista de campo poderia passar seis meses ou um ano”. Agora, sessenta anos depois, aqui estava eu no Pantanal com esperança de não apenas estudar sua fauna, mas também de encorajar o governo brasileiro de estabelecer um parque nacional aqui.
Banquete de onça
“Jaguares podem matar até gado quebrando o crânio do animal, com uma força primitiva desconhecida mesmo em leões e tigres, os quais usualmente matam presas grandes por asfixia.”
|
Vários urubus-pretos levantaram voo de um capão onde a fêmea havia arrastado a carcaça da capivara. Depois de comer apenas uma parte dos quartos dianteiros – a carne do peito, o coração, o fígado, e a carne de uma paleta – ela havia abandonado os restos. Nesse clima, a capivara é comestível por não mais do que dois ou três dias, depois do que a carne fica podre e cheia de larvas. Ainda assim, as onças, mesmo quando não perturbadas, passam apenas uma noite com cada carcaça. Talvez alimento seja tão abundante que os felinos não se preocupam com sua próxima refeição, especialmente quando seu cardápio inclui não apenas capivaras e ungulados, mas também uma ampla variedade de outras criaturas: peixes, cágados, sucuris, jacarés, quatis, lontras, e bugios.
Uma nuvem de moscas me seguiu quando arrastei a carcaça do capão. Como sempre, o felino havia matado a capivara com uma mordida precisa no crânio. O jaguar pega a cabeça na boca e, com os caninos opostos, perfura o osso até atingir o cérebro. Essa técnica é digna de nota não só pela precisão com que os caninos atravessam o osso nas orelhas ou próximo delas, mas também pela força necessária para penetrar quase um centímetro e meio de osso. Jaguares podem matar até gado quebrando o crânio do animal, com uma força primitiva desconhecida mesmo em leões e tigres, os quais usualmente matam presas grandes por asfixia.
A cada dia, trinta a trinta e cinco capivaras pastavam ao longo de oito quilômetros de praia, onde as onças comumente caçavam. Que efeito tinha a predação nesses roedores gigantes?Para descobrir isso nós andávamos na praia quase diariamente durante dois meses, procurando por carcaças frescas. Os felinos mataram sete capivaras durante esse tempo, um quinto dessa população pequena. O impacto dessa predação era obviamente tão grande que esses roedores não poderiam sobreviver à pressão por muito tempo. No entanto, esse resultado deve ser analisado em uma perspectiva histórica. Muitas centenas de capivaras existiam na região até 1974, quando uma enchente severa submergiu a maior parte do habitat delas próximo ao rio Paraguai. Os animais se concentraram ao longo da água, onde logo começaram a morrer de doenças – muito provavelmente peste equina, uma forma de tripanossomíase.
O parasita, para o qual esses roedores são hospedeiros naturais, permanecia em estado latente até que o estresse da superpopulação e falta de alimento tornassem a doença virulenta.
A região ainda se encontrava inundada durante o nosso estudo em 1977, e a doença ainda afetava as capivaras. Quatro animais na nossa amostragem estavam visivelmente debilitados, emaciados e cobertos de feridas, e vários outros aparentavam estar doentes.
Prenda-me se for capaz
“As onças agora pisavam nos gatilhos, mas reagiam tão rapidamente quando sentiam o perigo, que conseguiam tirar a pata antes que a laçada se fechasse.”
|
Normalmente, populações de capivaras podem tolerar doenças e predação, pois são reprodutores prolíficos. Cada fêmea produz ninhadas de até oito filhotes pelo menos uma vez por ano, mas por razões desconhecidas poucos filhotes nasciam ou sobreviviam em Acurizal. Assim, dizimadas por doenças e prejudicadas por uma baixa taxa de reprodução, a população não podia absorver o impacto adicional da predação. Felizmente para as capivaras, as onças logo mudaram sua área de caça para outra parte da fazenda.
Para obter detalhes sobre a vida privada das onças, – seus padrões de movimentos diários, frequência de caça, e tipos de contatos sociais – era preciso usar rádiotelemetria. Capturar um jaguar e colocar um colar com um radiotransmissor deveria ser fácil, pensava eu. Seria preciso apenas pendurar um pedaço de carne perto de uma trilha e camuflar em volta dele várias armadilhas de laços, para prender o animal de forma segura e sem representar risco para ele, como são capturados ursos e pumas nos Estados Unidos. O desenho do laço é simples: o animal pisa em um gatilho escondido, que dispara uma mola fechando um cabo de aço na pata do felino.
Mas as onças não se mostraram interessadas em nenhuma das nossas iscas, vivas ou mortas. Nas manhãs, achávamos pegadas se dirigindo direto ao local das armadilhas, mas passavam por elas sem nem mesmo mudar a passada. Tentei atraí-las com iscas de cheiro, utilizando as fezes de outra onça, ou aguçar sua curiosidade com uma ave em uma gaiola – sem nenhum resultado. Então, mudando de tática, eliminei as iscas de carne e cuidadosamente armei os laços diretamente nas trilhas. As onças agora pisavam nos gatilhos, mas reagiam tão rapidamente quando sentiam o perigo, que conseguiam tirar a pata antes que a laçada se fechasse. Por outro lado, os laços funcionavam muito bem com o gado, e soltar uma vaca de 300 kg certamente proporcionou momentos bem interessantes.
Não apenas as onças frustraram as minhas tentativas de captura, elas na verdade pareciam me afrontar: uma fêmea passou do lado das nossas redes enquanto dormíamos, e um macho colocou sua presa – uma capivara ainda intacta – a 90 metros do nosso acampamento. Embora já irritado, eu não podia deixar de admirar a habilidade dos animais em me despistar. Com a sua cabeça curta e robusta, colocada em ombros musculosos, o animal passa uma impressão mais de força do que de astúcia, e eu havia erroneamente o subestimado.
Novas tentativas
“Richard Mason, um estrangeiro inglês residente no Brasil, era proprietário da melhor matilha de cães treinados para caçar onças no oeste do Brasil, onde ele costumava levar clientes em expedições até que uma lei federal em 1967 proibiu a caça (…)”
|
Uma vez que as minhas tentativas de capturar as onças com armadilhas tinham falhado, resolvi usar métodos tradicionais no Brasil de caçar esses felinos. Em um deles, o caçador flutua silenciosamente em um barco próximo à margem à noite, periodicamente imitando a vocalização rouca e profunda do animal, com uma cabaça. Atraído pelo chamado, o animal encontra não outra onça, mas o facho ofuscante de um holofote, seguido do ferimento mortal de uma bala. Outro método consiste em perseguir o felino com cachorros até que ele suba em uma árvore ou acue em vegetação fechada, onde ele pode ser morto com uma zagaia ou arma de fogo ou, conforme o meu interesse, anestesiado.
Richard Mason, um estrangeiro inglês residente no Brasil, era proprietário da melhor matilha de cães treinados para caçar onças no oeste do Brasil, onde ele costumava levar clientes em expedições até que uma lei federal em 1967 proibiu a caça, afetando o seu negócio. Ele concordou em me ajudar e chegou a Acurizal com cinco cachorros e seu mateiro, Sr. Manoel Dantas, com vinte e cinco anos de experiência como guia e caçador profissional no Pantanal.
O cachorro-mestre, Gigante, um vira-lata amarelo castrado, andava na frente, cheirando o chão da mata procurando por uma pista fresca das onças. Os outros cachorros ganiam excitados, puxando nas suas coleiras, seguindo os latidos ocasionais de Gigante. Dantas seguia depois, abrindo uma trilha com golpes curtos de seu facão. “Hup, brriii”, Richard gritava a intervalos, atiçando Gigante e deixando-o saber que estávamos atrás dele.
Por horas a fio, depois por dias, nós percorremos toda a área percorrida pelas onças sem encontrar nenhuma pegada fresca. Durante os meses precedentes à caçada, havíamos passado um bom tempo na fazenda Bela Vista, ao norte de Acurizal. Será que as onças haviam se mudado para lá nesse intervalo? Eu achava que não. Onde, então, estavam a fêmea adulta e sua filha?
Um dia, estávamos na área mais remota de Acurizal, uma mata ensombreada na parte estreita de um vale entre as montanhas. O Gigante estava à frente – seus latidos dizendo que ele estava interessado, mas não muito excitado, por algum cheiro – enquanto nós seguíamos devagar pelo leito seco de um riacho, pensando em novas áreas onde procurar. De repente, Gigante ganiu várias vezes, como se estivesse sendo atacado, Depois, silêncio.
“O cachorro foi machucado! Pode ser queixada, ou mesmo uma onça!”, gritou Dantas. Nós soltamos os outros cachorros, que latiam, e eles dispararam vale acima. Logo seus latidos se fundiram em uma algazarra contínua, com apenas o uivo retumbante de Bagunça claramente distinto.
Onça dopada
“Deitada em um galho cerca de sete metros acima do caos dos cachorros, estava uma fêmea jovem de onça-pintada, estranhamente calma, olhando para nós e para os cachorros.”
|
Apressamo-nos em seguir os cachorros, atravessando bromeliáceas com espinhos cortantes, numa corrida cega, até onde eles se aglomeravam em torno de uma árvore inclinada sobre o leito seco de um riacho. Tremendo de excitação, os cachorros saltavam contra o tronco e mordiam os cipós pendurados. Deitada em um galho cerca de sete metros acima do caos dos cachorros, estava uma fêmea jovem de onça-pintada, estranhamente calma, olhando para nós e para os cachorros. “Finalmente nos encontramos”, disse para mim mesmo. Enquanto eu preparava um dardo com uma droga tranquilizante, Dantas afastou os cachorros, amarrando-os em uma árvore a algumas centenas de metros dali.
Assim que o dardo atingiu a coxa do felino, nós nos afastamos para esperar que a anestésico fizesse efeito. Ela então desceu da árvore e desapareceu na vegetação rasteira. Dez minutos depois, nós a seguimos com apenas um cachorro, achando-a já dormindo a 100 metros.
Para recompensar Gigante pelo excelente serviço prestado, nós o trouxemos até a onça anestesiada. Mesmo tendo as garras da onça, minutos antes, cortado o seu corpo, o cão apenas olhou para o animal deitado, sem expressão. Nós não sabíamos, então, que essa tinha sido sua última caçada, que um dos ferimentos havia produzido uma hemorragia interna, e que ele morreria mais tarde, de infecção.
“Em outros tempos, esse animal já estaria morto. Eu já estaria tirando a pele”, comentou Dantas, à medida que nos preparávamos para registrar as estatísticas vitais dela. Ela pesou 70 quilos e mediu 167 centímetros da ponta do focinho à ponta da cauda – um animal pequeno pelos padrões do Pantanal, onde as onças-pintadas são as maiores do mundo. Richard, que sempre registrara cuidadosamente troféus de caça, me contou que o peso médio de uma fêmea era setenta e cinco quilos e que o macho mais pesado capturado por ele pesou 119 quilos. Peter e eu então colocamos o rádiocolar.”
Continua no próximo post…
Leia Também
E aí vem a pergunta, cadê a onça?
Convivendo com a onça-pintada
Onça-Pintada: 3 décadas de publicações científicas
Leia também
Documentário aborda as diversas facetas do fogo no Pantanal
“Fogo Pantanal Fogo” retrata o impacto devastador dos incêndios de 2024 sobre o cotidiano de ribeirinhos e pantaneiros e as consequências das queimadas para a biodiversidade →
R$ 100 milhões serão destinados à recuperação de vegetação nativa na Amazônia
Com dois primeiros editais lançados, programa Restaura Amazônia conta com recursos do Fundo Amazônia e da Petrobras →
Congresso altera de limites de parque em SC para obras contra cheias no Vale do Itajaí
PARNA Serra do Itajaí perde 2 hectares para construção de barragem, mas ganha outros 156 hectares como compensação; o projeto, aprovado por consenso na Câmara, segue para sanção →