É com grande temor que percebemos um movimento para descredibilizar o ente municipal no que se refere ao licenciamento ambiental. Alguns ambientalistas, que eu respeito muito, mas que em sua maioria nunca passaram pelo serviço público em nenhuma esfera de governo, e que hoje dirigem órgãos com representatividade e entidades ambientais respeitadíssimas, utilizam termos pejorativos, como “cupinização”, para se referir ao aumento da capilaridade do controle ambiental, por parte do município, como se o meio ambiente estivesse protegido apenas quando está “nas mãos” da União ou estados-membros, mas totalmente desguarnecido sob a proteção e guarda municipal.
Vamos ao caso concreto: tem sido alvo de polêmica uma atuação que diz respeito ao licenciamento ambiental da capital paulista. O Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo (Consema), ao revisar sua Deliberação CONSEMA n° 01/2018, delegou aos municípios a capacidade de licenciar tipologias de atividades com alto potencial poluidor e, consequentemente, passíveis de causar alto impacto ambiental.
Há uma infundada apreensão de que esta delegação é temerária, pois no dizer daqueles que têm um olhar tendencioso e viciado, esta delegação de competência “enfraqueceria” o licenciamento ambiental, ao conceder que tal “controle” seja realizado por “instância vulnerável às pressões econômicas”. O município, para eles, se resume a uma instância vulnerável.
Com todas as vênias, pressupor que o simples fato de o ente municipal ter a possibilidade de licenciar atividades de alto impacto é, no mínimo, perigoso, e atribuir esse temor ao receio de pressões econômicas externas é o mesmo que pressupor a má-fé da Administração Pública Municipal. O município já foi julgado e condenado, sem a chance de se defender ou comprovar sua capacidade técnica.
Neste ponto, é crucial expor minha experiência pessoal, para demonstrar que já transitei tanto em órgãos estaduais, quanto em órgãos municipais (minha condição atual) e não foi nos municípios onde encontrei a maior vulnerabilidade às pressões econômicas.
Em minha trajetória como técnico e ambientalista, fui membro da Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente (ABEMA), Subsecretário do Ambiente e Sustentabilidade do estado do Rio de Janeiro, além de vice-presidente do Naturatins (órgão ambiental estadual de Tocantins).
Na esfera municipal já fui secretário da pasta ambiental nas cidades fluminenses de São João de Meriti, Nilópolis, Mangaratiba e atualmente ocupo o cargo em Itaguaí. Atuei também como presidente da ANAMMA-Rio e sou o atual 1º vice-presidente Nacional da ANAMMA (Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente), estando ainda nomeado como conselheiro titular e suplente em diversas câmaras técnicas do CONAMA e CONEMA-RJ.
Com ampla vivência tanto no estado quanto no município, posso afirmar que a maior vulnerabilidade às pressões econômicas que já presenciei ocorreu quando, como secretário da pasta ambiental de um município da Costa Verde, interditei uma das maiores empresas do ramo de mineração, de renome internacional, por ausência de Licença de Operação válida, há 13 anos, atuando por meio de simples carta declaratória de tempestividade na renovação, emitida pelo órgão estadual licenciador.
Menos de duas horas após a interdição, um agente do órgão ambiental estadual pousava de helicóptero no terminal daquela empresa para desinterditá-la, ignorando o Poder de Polícia Ambiental, legitimamente exercido pelo município e que foi conferido pelo Art. 23 e §1º do Art. 225 da Constituição Federal, descredibilizando toda a ação fiscalizatória local.
Estou certo de que neste espaço de duas horas não houve uma adequação substancial da referida Licença. O que ocorreu foi exatamente uma clara vulnerabilidade do estado, que teve que se render ao poderio empresarial. Este ato não ocorreu no município, que satisfatoriamente cumpriu o seu papel de zelar pelo equilíbrio ambiental e não mais fechar os olhos para uma operação de proporções imensas que continuava degradando o ecossistema municipal.
A indagação que ecoa é: se o órgão responsável pelo licenciamento daquela mineradora fosse o município e não o estado, ela estaria operando há 13 anos, pautando-se em uma Licença vencida e em cartas de um parágrafo, sem qualquer condicionante? Certamente não, pois como o olhar municipal é local, é um tanto quanto óbvio que as atividades que mais merecem cuidado são aquelas com maior potencial poluidor. Em contrapartida, a insuficiência de braços no estado acaba relegando essas atividades mais “trabalhosas” para uma espécie de limbo ambiental, culminando em desastres como Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, e a verdadeira “bomba-relógio” das minas de sal-gema, na cidade de Maceió.
O olhar tem que ser totalmente o oposto. O fortalecimento da federação somente se dará quando o menor ente também for fortalecido. A corrente é tão forte quanto o seu elo mais fraco, pois basta que este se rompa para que ela perca totalmente a sua função de ser. Se o micro for aparelhado em vez de demonizado, é uma consequência lógica que toda a Federação ganha.
Contudo, se o caminho trilhado for fortalecer a Federação às custas da diminuição do ente municipal, a derrocada é inevitável.
É no município que tudo acontece. É no município que as pessoas nascem, estudam, constituem família e falecem. Também é no município que as empresas atuam, empregam, mas também degradam. É impossível estar em solo brasileiro e não estar em um município (com a exceção do Distrito Federal). E se é no município que tudo acontece, por que é esse ente que mais tem as “mãos atadas”?
Por que o temor em franquear que um município conduza assuntos de interesse local com autonomia? Não há explicação. É apenas fruto de uma cultura perniciosa e arraigada, que ecoa o sofisma de que o município é menos capacitado e legítimo que o estado e/ou a União.
É uma ideia inconstitucional, pois este temor que permeia a alta casta ambientalista quando o assunto é a “municipalização”, não é compartilhado pelo Poder Constituinte Originário, que entregou a tutela ambiental a todos os entes federativos, como vemos no Art. 23, incisos VI e VII, além do §1º do consagrado Art. 225, de forma comum, simultânea e sem hierarquização.
Aliás, é muito oportuno abordarmos a hierarquia. Nosso sistema constitucional fortalece a federação se apoiando em dois princípios: da autonomia dos entes (Art. 18) e da não intervenção (Art. 4º, inciso IV). Em suma, o estado não pode colocar o município em uma posição de inferioridade, pois os entes são iguais, sem qualquer hierarquia.
Permitir que o estado dite ao município os limites de sua capacidade de controle ambiental não seria uma forma de intervenção, que é constitucionalmente vedada pelos Artigos 4º, IV e 35?
Seria a alínea “a”, do inciso XIV, do Art. 9º da Lei Complementar n° 140/2011 constitucional, mesmo que deixe o licenciamento ambiental municipal dentro do que o estado formatar como devido? Não deveria o município se regular, com base no Art. 30, inciso I da Constituição?
O preconceito de que o município é insuficiente, que é incapaz e não aparelhado acaba por tapar os olhos daqueles que não querem enxergar exatamente o oposto: os municípios caminham cada vez mais na direção do aparelhamento e a descentralização é mola mestra, exatamente como o caso da capital paulista.
Felizmente ainda há esperança de que bons caminhos serão trilhados. Quando associações que resguardam os interesses municipais, como a ANAMMA, posicionam-se publicamente a respeito da necessidade da municipalização do licenciamento ambiental para que o olhar, de fato, seja mais minucioso para atingir o equilíbrio ambiental, que é direito de todos, é exatamente o momento em que percebemos que todos os 5.568 municípios brasileiros ganham voz para cuidar daquilo que é seu, que é nosso no presente e que é o futuro das próximas gerações: o meio ambiente saudável e preservado.
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Prezado autor, você esqueceu de diferenciar que há municípios e municípios. Por exemplo, o município de São Paulo possui toda a estrutura e pessoal capacitado para licenciar atividades de alto impacto. Agora tenta atribuir um licenciamento ambiental de grande impacto para um pequeno município, cujo o qual não tem estrutura e nem pessoal capacitado devido ao baixo orçamento arrecadado, dentre outras prioridades políticas. Outrossim, existe pressão econômica sim em alguns municípios por uma razão bastante lógica. Basta imaginar um grande empreendimento que cause elevado impacto ambiental. Em uma situação como esta é bastante provável que os órgãos ambientais cedam ao ganho econômico em detrimento do dano ambiental que aquele empreendimento possa causar. Por outro lado, concordo com seu pensamento de que não existe hirarquia entre os entes federativos, inclusive quando o assunto é fiscalizar, conforme preconiza o art. 17, §3º da L.C. 140/11. Entendo que para dar maior poder aos municípios em licenciamentos ambientais de grande impacto, é necessário primeiro garantir pessoal qualificado e estrutura suficiente para exercer melhor as atividades desse tipo de licenciamento. Caso contrário, vai apenas delegar uma função que será, na maioria dos municípios do Brasil, ineficiente.
A principal influência que o município está sujeito é política e não econômica. Está mais perto do impacto ambiental, assim como está mas perto dos interesses locais que nem sempre são legítimos ou legais. Homogeneizar todos os municípios do Brasil é inconsequente. Trabalho num órgão público de uma cidade de porte grande e já enfrenta-se dificuldades técnicas municípios vizinhos tem a mesma atribuição e sabidamente não são capazes tecnicamente de avaliar licenciamento de grande porte. O problema é estrutural infelizmente não tem como o profissional se desenvolver com os salários que recebem. Acabam colocando um funcionário comissionado que 4 anos mais tarde não fará mais parte da gestão, enfim a discussão é longa mas tenho certeza que sua visão tá longe da realidade.
A Questão ambiental , é de fácil entendimento para o bom entendedor .
Não há hierarquia e sim concorrência para Legislar sobre meio Ambiente .
No entanto , a Norma mais restritiva é a que deve prevalecer .
Nada adianta ter um Código Florestal já todo delapidado , se querem legislar sobre as APPs com leis municipais …. Aí sim é Contra a Constituição na medida em que legislam para afrouxar ainda mais a regra .
No mais , a fiscalização pode e deve ser feita por todos os entes federativos. Inclusive o município .
É fato que não podemos generalizar seja qual for o assunto. Más também é fato que em muitos municipios o corpo técnico é sucateado e não tem autonomia para agir de maneira concreta ficando a mercê das decisões de prefeitos e vereadores, principalmente na área ambiental. Falo isso com minha experiência em uma prefeitura da grande São Paulo. O próprio conselho ambiental, quando existem, é considerado inimigo por prefeitos e vereadores. Lamentavelmente essa é uma situação que está longe de terminar, devido aos interesses locais de politicos e empresarios, que preferem burlar as leis, pressionando funcionarios públicos que em muitas situações, não tem o mínimo de conhecimento na área que atuam. Só tenho a lamentar e sonhar para que, um dia, essa situação tenha fim e que, as questões ambientais sejam tratadas com seriedade.
A ANAMMA, no Consema-SP, ocupa uma vaga destinada a entidades não-governamentais, apesar de representar interesses de governos municipais. Conflito de interesses, com quebra de paridade no Conselho. A ANAMMA foi contra a obrigatoriedade de se levar em conta impactos sinérgico e cumulativos no licenciamento municipal. ANAMMA foi contra direito de consulta a PCTs no licenciamento, assim como foi contra aumentar a transparência nos conselhos municipais. Onde está o cupim?