Em 2019, uma jovem onça-parda de pouco mais de um ano e meio de idade foi atropelada na região em Mercedes, no Paraná, e levada para atendimento no Refúgio Bela Vista, da Itaipu, em Foz do Iguaçu. Esse animal recebeu o nome de Leôncio.
Onças-pardas atropeladas em rodovias do país são uma constante. Um estudo recente avaliou os atropelamentos no estado de São Paulo, entre 2003 e 2021, e os números são preocupantes: foram 64 atropelamentos no estado (44 em área rural e 17 em área urbana). Em 75% dos atropelamentos, os animais morreram.
Leôncio teve sorte. Escapou de ser somente mais um número na triste estatística das onças que perecem nas estradas do Brasil. Saiu do acidente bastante machucado. A pancada foi tão grande que ele chegou inconsciente no zoo, mas com vida! O atropelamento resultou em grande fratura no fêmur, um canino quebrado, vários cortes na face e o pior, um traumatismo na cabeça, provocando um edema cerebral que o deixou em coma por 15 dias.
E a dura vida do jovem Leôncio, mal tinha começado, mas o drama não começara ali. As radiografias feitas no primeiro atendimento revelaram ainda que o animal tinha chumbinho espalhado pelo corpo, sendo 3 na cara, resultado de tentativa anterior de abatê-lo.
Mas a vontade de viver desse gato era enorme: passou por três cirurgias ao longo de um ano, inclusive para colocação de pinos e parafusos na pata quebrada. A equipe do Refúgio Biológico, liderada pelo veterinário Pedro Teles, trabalhou arduamente na recuperação deste animal por dois anos e três meses, até que ele estivesse em boa forma física.
Leôncio merecia voltar para a vida livre. A pedido dos veterinários de Itaipu, especialistas do CENAP/ICMBio avaliaram o animal e concluíram que poderia ser solto, porém precisava ainda recuperar seu condicionamento físico, pois havia permanecido muito tempo com restrições de grandes movimentos em recinto que favorecesse a plena recuperação de sua perna.
Desta forma, para completar o processo de reabilitação, a Itaipu construiu, em parceria com o Instituto Caminhos da Conservação, um recinto em ambiente natural bem preservado em uma propriedade rural entre o Refúgio e o Parque Nacional do Iguaçu. Nesse cercado, ele passou seis meses se exercitando e se preparando para voltar à natureza. Uma avaliação da saúde, condições corpóreas e comportamentos, revelou que o Leôncio apresentava todos os requisitos necessários para sobreviver na natureza.
O Projeto Onças do Iguaçu participou desse processo preparando os moradores da região para a volta do Leôncio: Foram visitadas as propriedades no entorno da área de soltura, avaliando a vulnerabilidade e orientando sobre o manejo adequado de animais domésticos para evitar a predação. Evitar conflitos aumentaria as chances de sobrevivência do Leôncio.
Em um momento emocionante, no fim de abril, ele reencontrou sua liberdade quando os portões do recinto foram abertos. Como se já estivesse esperando por esse momento, Leôncio levou poucas horas para se despedir de sua casa temporária. Seu passos, agora em liberdade, foram acompanhados por meio de uma coleira equipada com um GPS e transmissão de suas localizações via satélite.
Assim que Leôncio foi solto, se deslocou pelas áreas florestais recuperadas na região nos últimos 20 anos, formando o Corredor Ecológico de Santa Maria, até chegar à maior área protegida do oeste do Paraná, o Parque Nacional do Iguaçu. Leôncio provavelmente nunca havia estado em uma floresta imponente como a do parque nacional. Talvez por evitar conflitos com as diversas onças – pardas e pintadas – sua incursão na UC foi curta. Logo ele saiu do parque e passou a explorar as propriedades rurais da região, sempre pela sombra dos fragmentos florestais e matas ciliares. Fez uma breve visita ao recinto que foi seu lar, e seguiu seu rumo.
Felinos possuem grande fidelidade ao local de origem. Para ele, boa parte da vida ele havia passado no Refúgio Bela Vista e parecia que Leôncio sabia para onde queria seguir. Porém, no meio do caminho, tinha uma BR, a 277. Rodovia de alto fluxo de veículos a toda hora do dia. Como se o acidente retornou à sua cabeça, a onça refugou e mudou o curso do caminho e… evitando a rodovia, foi conhecer a cidade de Foz do Iguaçu. Ele ficou 10 dias tentando achar uma saída da cidade, ainda que caminhando somente na periferia. Novamente, tudo era novo… foi tentando sair dali, atravessando ruas e avenidas movimentadas, se esquivando do ser humano e seus carros buzinando, cães latindo… Ele sabia dos riscos e se deslocava de madrugada quando tudo era mais silencioso. Mas não somente a onça se encontrava com possíveis altos índices de estresse. A aflição tomava as noites da equipe de monitoramento. Os pesquisadores passavam a noite olhando seus passos no computador, transmitidos pelo satélite, e durante o dia visitavam os locais por onde ele havia passado e tentavam prever os próximos trajetos.
Nesse período, só foi avistado uma vez, de madrugada. Conseguiu sair ileso da cidade, voltando para o percurso que fazia antes de se perder. Em suas andanças, passeou por propriedades com galinhas, cachorro, ovelhas e gado, mas nunca predou um animal doméstico. Em poucos dias chegou novamente na beira da BR 277. Dessa vez encarou seus fantasmas e atravessou a grande rodovia por volta das 9h da noite, como se soubesse que do outro lado estaria o melhor pedaço de terra da região.
Após quase 30 dias de seu reencontro com a natureza, encontrou proteção e comida farta na reserva do lago de Itaipu. Mostrou estar completamente recuperado e que caçava muito bem: durante o monitoramento, ele predou pelo menos uma capivara, que escondeu sob folhas (comportamento típico da espécie) para sozinho consumi-la inteira em poucos dias. Tudo ia bem e ele dava sinais de que já ia se estabelecendo nessa região, diminuindo suas pernadas diárias, equilibrando suas atividades.
Leôncio viveu intensos 40 dias de liberdade nessa nova vida que ele ganhou. E entre os dias 2 e 3 de junho, teve um infortúnio encontro. As análises dos dados coletados em campo indicam que ele sucumbiu em um embate com outra onça. Ele driblou as adversidades que os humanos impõem às sagazes onças-pardas, mas não soube como lidar com um competidor possivelmente já residente daquela área. Confrontos violentos entre onças não são raros de acontecer e às vezes acaba em morte. Nosso puma tão especial sei foi. Mas não sem antes deixar um grande legado a todos nós. No seu período de recuperação, ele foi um professor: as equipes envolvidas nos cuidados com o Leôncio aprenderam muito e aprimoraram a metodologia de reabilitação física e comportamental, o que vai ajudar outras onças resgatadas na região a terem uma nova chance na natureza.
Dizem que os gatos têm sete vidas. Leôncio morreu antes de viver todas elas.
Deixou diversos alertas e ensinamentos. Como as estradas são construídas no Brasil, incluindo formas de mitigar atropelamentos; como é possível uma onça viver em meio a criações domésticas sem gerar conflitos; quando as reservas legais e áreas de preservação permanentes formam conexões importantes à todas as espécies da fauna; e mesmo, quanto tempo uma onça poder circular por uma cidade tentando achar seu caminho de casa, também sem gerar pânico e impactos aos moradores locais.
Nos ensinou acima de tudo que não podemos nunca ter a pretensão de querer ter o controle integral de uma situação envolvendo um animal silvestre que cuidamos, reabilitamos e devolvemos à natureza. Eles constroem seu próprio caminho e muitas vezes a história pode não ter um final como esperamos, mas sempre terá um começo e meio cheio de emoções e ensinamentos.
Que Leôncio viva para sempre com seu legado à conservação das onças!
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