No trânsito os homens emitem mais gases de efeito estufa (GEE) – causadores do aquecimento global – e poluentes do ar, enquanto as mulheres sofrem mais a consequência de ambos em suas vidas. Isso se dá pelo menos em São Paulo, mas podemos aferir os dados para as grandes metrópoles brasileiras, já que o padrão de emissão se repete. Apenas uma observação: comecei escrevendo crônicas para o jornal de bairro sobre transporte público lotado aos 15 anos. Se não me engano, foi meu primeiro texto publicado. Hoje, com 40 anos, volto ao assunto com mais maturidade sobre a perspectiva ambiental e de gênero.
O Metrô de São Paulo realiza e publica a Pesquisa Origem Destino há 50 anos para auxiliar no planejamento do transporte urbano. Os deslocamentos realizados por condutores de automóveis foram por motivos diversificados, mas a predominância é masculina de 67%, segundo os dados da última edição (2017). Ou seja, dois terços dos motoristas de carros em São Paulo são homens. O mesmo vale para quem dirige (ou é carona) das motocicletas: 86% são homens. Porém, neste caso, a viagem foi majoritariamente realizada (78%) por trabalho.
Com relação ao uso do transporte público, as mulheres são 54% no Metrô e 58% nos ônibus municipais e metropolitanos. Vale ressaltar que a predominância de escolaridade delas no transporte público corresponde ao 2º grau e a renda familiar é de R$ 1.908 a R$ 3.816. São mulheres, com menos recursos financeiros, que precisam do transporte público para sobreviver. A pé também predominam: 54% são elas. Já as mulheres de classe econômica maior utilizam mais táxi ou outro transporte particular – neste caso, geralmente, como carona nos carros conduzidos por eles.
Um terço dos gases causadores das mudanças climáticas são provenientes do transporte particular em São Paulo. E dois terços dos que dirigem esses veículos são homens.
Esses números mostram que os homens usam disparadamente mais o transporte particular. Enquanto as mulheres – e as mais pobres – são as mais dependentes do transporte público. E o que isso tem a ver com emissões de gases de efeito estufa e de poluentes do ar? Tudo. De acordo com dados do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), do Inventário de Emissões Atmosféricas do Transporte Rodoviário de Passageiros no Município de São Paulo, a poluição gerada por carros é muito maior do que em relação aos ônibus: são responsáveis por 70% de GEE emitidos na cidade, considerando apenas o transporte de passageiros.
Ou seja, tendo em conta apenas o transporte de passageiros, um terço dos gases causadores das mudanças climáticas são provenientes do transporte particular em São Paulo. E dois terços dos que dirigem esses veículos são homens. Ao mesmo tempo em que eles enchem as vias com metros quadrados de carros, as mulheres se submetem a um transporte público nem sempre de boa qualidade, muitas vezes lotado e ainda por cima são as que mais morrem devido aos eventos climáticos extremos decorrentes das mudanças climáticas. Estas agravadas pelas emissões de GEE das atividades humanas – como do trânsito citado.
Por exemplo, 60,6% das vítimas eram mulheres no temporal que atingiu Petrópolis (RJ) em fevereiro deste ano, uma tragédia recorrente nos meses chuvosos do verão no Sudeste e, agora, acontecendo em Recife (Pernambuco). Que procuraram se e proteger seus entes e amigos queridos. É revoltante. Isso sem entrar na questão de renda e de cor de pele. Segundo dados do IBGE (2014), 76% dos mais pobres no Brasil são negros – vale lembrar que mais da metade dos brasileiros se declaram pretos. As mulheres negras são as que menos emitem GEE por meio do transporte, mas elas estão entre as marginalizadas que mais sofrem suas consequências.
Para piorar essa situação, além de serem atingidas de maneira “indireta” pelos fenômenos naturais devido aos efeitos das mudanças climáticas, as mulheres e as pessoas com menor renda sofrem mais os efeitos da poluição do ar em sua saúde devido à exposição a ela. Conforme os dados do Metrô, quanto menor a renda, mais tempo a pessoa passa dentro do transporte público. A média é de mais de uma hora por deslocamento, isto é, uma hora de ida ao trabalho mais uma de volta. Os números mostram também que, quanto mais pobre, mais tempo a pessoa permanece no trânsito. As viagens feitas por carros e motos, por exemplo, levam a menor parte desse tempo.
O planejamento do transporte urbano e público deve incluir essas características. É justo quem emite menos gases de efeito estufa sofrer mais com suas consequências? Não é para ninguém.
A recente análise do IEMA “Qualidade do ar no município de São Paulo” mostrou claramente que as vias de maior tráfego da cidade, como a Marginal Tietê, têm a predominância no ar de alguns poluentes (como o material particulado emitido pelos veículos) até quatro vezes o recomendado como seguro para saúde pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Quanto mais tempo se respira esse ar, quanto mais tempo no trânsito, mais chances de sofrer com as consequências de doenças respiratórias e cardiológicas.
As eleições estão chegando. A maior parte da população brasileira vive em áreas urbanas – e com ar poluído. As políticas devem considerar especificamente que os problemas atingem mulheres pobres, pretas e indígenas de maneira mais intensa. O planejamento do transporte urbano e público deve incluir essas características. É justo quem emite menos gases de efeito estufa sofrer mais com suas consequências? Não é para ninguém. A ideia sequer seria demonizar o transporte público tão essencial para a vida das pessoas. Para o acesso à cidade. Ao contrário, o objetivo seria investir em sua qualidade para a melhora da qualidade de vida da população mais pobre – e das mulheres – das cidades. Certa vez, conversando com um médico, ele me disse: “Adoro andar de transporte público na Europa, caminhar nas ruas”. “E, aqui, em São Paulo?”, indaguei. Ele sorriu. “Aqui é mais confortável o carro.” Deveria ser o contrário.
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