A descoberta de como fazer fogo e usá-lo é considerada um grande marco na evolução humana. Quando os primeiros humanos passaram a dominar esse elemento, muitos aspectos da vida foram favorecidos. O fogo propiciou proteção contra animais e contra o frio, permitiu cozinhar alimentos e socializar e estabelecer hábitos e tradições culturais. Contudo, o seu domínio, juntamente com o domínio da natureza, também trouxe consequências negativas, como vem ocorrendo em vários biomas brasileiros, especialmente na Amazônia.
Todos os anos assistimos atônitos às notícias sobre desmatamentos e queimadas no país. Em particular, o ano de 2020 ficou marcado na história ambiental do Brasil pela aceleração da perda da vegetação nativa, tanto de florestas como de cerrados e campos, principalmente para a expansão de cultivos e de pastagens plantadas. A Amazônia registrou 103.161 focos de queimadas e taxa de desmatamento de 11.088 km2 em 2020, que foi 70% maior que a média da década anterior, de 6.500 km² por ano. Além disso, retrocessos na proteção ambiental promovidos, entre outros fatores, pelo afrouxamento da legislação e corte de recursos em várias esferas, foram motivo de grande preocupação e denúncias. Isso é mais preocupante quando consideramos que na Amazônia 2% das propriedades rurais são responsáveis, sozinhas, por mais de 60% do desmatamento ilegal praticado.
Com recordes de desmatamento há três meses consecutivos na Amazônia em 2021, os especialistas preveem que as queimadas podem ser catastróficas até outubro. Na contramão das medidas necessárias para evitar mais tragédias com incêndios, o desmonte das políticas ambientais continua. Esse desmonte envolve a diminuição dos orçamentos dos órgãos ambientais, a banalização do impacto dos incêndios, o desestímulo à organização de brigadas locais, entre outras ações. Isso se contrapõe à constatação do aumento dos efeitos negativos ao meio ambiente, aos impactos promovidos à economia e à saúde humana.
Mas que fogo é esse que queima e destrói porções representativas das florestas amazônicas todos os anos? Aqui temos que diferenciar o uso do fogo tradicional, que sustentou há séculos e ainda sustenta milhares de famílias, dos incêndios criminosos que são parte das estratégias para expandir a fronteira agrícola e consolidar a grilagem de terras na Amazônia.
O fogo que sustenta e alimenta – Os povos indígenas e as comunidades tradicionais utilizam o manejo do fogo para a abertura de pequenas áreas que servirão aos cultivos anuais das roças ou criação de animais em pequena escala. Essas áreas alcançam não mais que quatro hectares de terra que são limitados ao uso do fogo controlado, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente, conforme o permitido pelo Código Florestal (Lei 12.651/2012; Artigo 38). A pequena escala permitida é fundamental, pois a prática pode proporcionar o retorno da floresta após o cultivo. Esse uso do fogo tem papel crucial na construção coevolutiva da agrobiodiversidade amazônica, como tem sido comprovado para inúmeras espécies endêmicas da região, em particular a mandioca no Baixo e Alto rio Negro, e favorece sistemas agrícolas tradicionais que funcionam como bancos de reserva gênica de culturas alimentares.
O fogo que destrói e mata – Por outro lado, as queimadas criminosas têm sido praticadas por proprietários rurais não comprometidos com a questão ambiental e por pessoas que querem ocupar terras públicas, ainda não destinadas à utilização pela sociedade e que são alvos dos crimes de grilagem. Essas terras públicas ocupam cerca de 15% da área de floresta amazônica e, em 2020, sofreram 33% do desmatamento total computado por estudos recentes. Mesmo havendo a regulação por parte do Estado, temos assistido às consequências desastrosas das violações da lei e a incêndios de grandes proporções causados por essas práticas criminosas, que deixam ao longo de sua trajetória prejuízos irreversíveis à biodiversidade e destruição da floresta. Esses incêndios também modificam o ciclo hidrológico e do carbono, promovem erosão do solo e aumento da temperatura, além de causarem perdas de patrimônio de agricultores e moradores de áreas rurais.
Como esses fogos interagem? A presença, convivência e interação entre esses dois tipos de fogos variam muito no território amazônico. As diferenças marcantes no potencial de impacto que acarretam dependem de inúmeros fatores, como as características biofísicas e biogeoquímicas nos seus territórios, os diversos processos de ocupação relacionados às dinâmicas das queimadas e os legados culturais envolvidos por cada um, os tipos de uso da terra vigentes e a natureza dos atores e conflitos que coexistem nos diferentes locais. Em geral, as florestas primárias de terra firme da Amazônia são resistentes ao fogo, mas as intensas mudanças no uso da terra e as altas taxas de desmatamento e de degradação florestal alteraram o regime de fogo na região. Aliado a isso, a Amazônia está passando por um regime de secas mais prolongadas e intensas, o que amplifica o fogo nas florestas para além das áreas desmatadas para o manejo agrícola. Isso leva ao aumento de incêndios acidentais, iniciados por atividades agrícolas tradicionais. Os grandes incêndios, por sua vez, promovem a fragmentação florestal, que aumenta a temperatura e favorece novos incêndios da vegetação, retroalimentando um processo que aumenta a perda da biodiversidade, inclusive genética. A fumaça e os gases liberados pelas queimadas desencadeiam processos de adoecimento nas populações afetadas. Estudos nas áreas de pesquisa médica e de saúde coletiva apontam a relação das queimadas com o recrudescimento de doenças graves, incluindo o câncer, e sua influência no aumento do risco crescente de danos ao DNA e mutações genéticas.
O que podemos fazer? O rol de iniciativas para reverter esse quadro inclui ações de caráter técnico produtivo e ecológico, formuladas por universidades e centros de pesquisa, muitas vezes com base na interação com as próprias comunidades agrícolas.
Há, por exemplo, opções técnicas para a substituição do uso do fogo no preparo de área para o plantio e para a limpeza de pastos. Essas alternativas possibilitam ainda a transformação dos sistemas de produção que intercalam períodos de pousio (vegetação secundária) com períodos de cultivo de ciclo curto, por sistemas agroflorestais de longa duração. A prevenção e o controle de queimadas também são favorecidos por novas técnicas.
O fogo passou a ser uma realidade para a Amazônia no Antropoceno e é fundamental rever as estratégias que vêm sendo adotadas para o combate aos incêndios, assim como as suas vinculações ao jogo de interesses predominante. Também é preciso adotar novas formas de comunicação e de ações integradas, com a contribuição de atores representativos das diversas realidades, incluindo as populações residentes, o segmento da educação e as organizações da sociedade civil. Além de medidas legais e educacionais para contê-los, o planejamento de ações no combate às queimadas e incêndios deve considerar como foco de ação as áreas com alta intensidade de alertas de desmatamento divulgados pelo INPE. As recomendações desse Instituto são fundamentais para o combate e o alerta para a atuação de brigadas, sendo a ação de profissionais experientes cada vez mais necessária.
Além disso, organismos de diferentes esferas de governo devem elaborar estratégias sinérgicas e complementares para alcançar resultados concretos no controle de incêndios na região. Também é fundamental a articulação com os agricultores familiares, por meio de suas organizações, bem como propiciar a eles orientação técnica e o acesso a créditos que permitam o uso de tecnologias alternativas à queima, comumente mais dispendiosas.
Para os incêndios criminosos de qualquer natureza, fazer valer a legislação vigente de punição de crimes ambientais é fundamental. Outros aspectos não menos importantes são a sensibilização da sociedade por meio de diversos veículos midiáticos, assim como a educação ambiental desde os níveis escolares iniciais. A sociedade deve ser informada de que um ambiente doente, como os que resultam nas áreas com incêndios extensos e intensos, significa uma sociedade doente.
A campanha Amazoniza-te é uma convocatória em defesa da região, por meio da qual clamamos que a sociedade brasileira seja uma importante aliada na luta contra os incêndios criminosos na Amazônia, que todos os anos destroem vidas e o patrimônio natural do povo brasileiro.
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Até certo ponto parece gozação estes combates a desmatamento. Cria-se brigadas do exército para atuar na Amazônia (despesas imensas e improdutivas).Todos conhecem os principais municípios desmatadores de MT e PA. Não passam de 15/20 bastante conhecidos. Não é necessário todo este gasto do exército com homens. Basta que o Exército e Aeronáutica coloquem 6/8 helicópteros em pontos estratégicos na Amazônia, a disposição do excelente serviço do IBAMA. Economia para o exército e Economia para o Brasil. Estou há mais de 40 anos atuando na área de preservação. Nós de antigamente sabemos como controlar estes desmatamentos. Hoje o governo e o exército dispondo de todas as tecnologias não sabem operar. OU NÃO QUEREM?