Análises

Qual a relação entre conservação da natureza e as doenças tropicais?

Proteger a natureza também é uma das medidas mais eficazes que podemos tomar para proteger a saúde das pessoas

A resposta sem dúvida é que existe uma forte relação entre conservação da natureza e as doenças tropicais. E aqui focaremos nas zoonoses que são doenças infecciosas da fauna silvestre, tais como febre amarela, peste bubônica, raiva, Covid 19, leishmania, gripe aviária ou febre do Nilo, entre outras. Essas zoonoses podem ser transmissíveis tanto para nós, seres humanos, como para alguns animais de interesse comercial (ex. frango, porco, gado, cavalo) sendo, portanto, um tema de interesse da saúde pública e também de importantes setores da economia brasileira, como o agronegócio. 

Cabe salientar que a maior parte das zoonoses não afetam as pessoas, ficando com ocorrência restrita às espécies da fauna silvestre que são os vetores (como várias espécies de mosquitos) e seus hospedeiros que são principalmente as espécies de morcegos, primatas e roedores. Contudo, isso não as torna menos perigosas, uma vez que elas também podem ter seus ciclos epidemiológicos modificados em decorrência da degradação ambiental e, consequentemente, causar impactos negativos na biodiversidade. 

Faz tempo que se sabe do risco potencial das zoonoses aos seres humanos e, por isso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o dia 6 de julho como Dia Mundial das Zoonoses. Neste dia do ano de 1885, na França, o cientista Louis Pasteur aplicou a primeira vacina contra a raiva em um garoto de nove anos que foi contaminado com o vírus após ter sido mordido por um cão infectado com raiva. Este, por sua vez, certamente foi infectado pela mordida de outro mamífero com o vírus da raiva, como um morcego ou mesmo outro cão. Algumas espécies de mamíferos silvestres são hospedeiros e disseminadores do vírus da raiva e, portanto, a raiva é uma zoonose originalmente silvestre. Felizmente, o garoto sobreviveu e, consequentemente, se estabeleceu um marco importante para ressaltar a relevância da prevenção de zoonoses em animais silvestres: proteger a saúde de animais silvestres também é uma das medidas mais eficazes que podemos tomar para proteger a saúde das pessoas, com um efeito colateral bastante desejado: a conservação da biodiversidade.

As alterações de ambientes naturais causadas pelo homem, como a perda e fragmentação de habitats causado pelo desmatamento desordenado – sem planejamento prévio e manejo adequados –, podem aumentar o risco de zoonoses saltarem dos seus hospedeiros silvestres para os seres humanos. Esse fenômeno é conhecido como spillover, ou transbordamento, na tradução literal. O vírus Nipah constitui um bom exemplo dos riscos a populações humanas provenientes da remoção de habitats naturais e zoonoses. Esse vírus pode matar de 40 a 75% das pessoas por ele infectadas. Em Bangladesh, na Índia, a perda de habitats naturais teve como consequência um aumento nas chances de contato entre morcegos que carregam o vírus e o ser humano. Morcegos que antes eram raros em ambientes próximos a adensamentos populacionais agora são comumente encontrados nessas áreas em decorrência da remoção dos seus habitats florestais.

Outro fator importante é que a conversão de ambientes naturais em plantações, pastagens ou áreas urbanas tende a reduzir a biodiversidade, selecionando aquelas espécies que são capazes de sobreviver nos habitats alterados. O transbordamento de zoonoses se dá, principalmente, porque algumas espécies de hospedeiros que são boas amplificadoras do patógeno são resilientes ao desmatamento, e persistem mesmo após uma forte ação de degradação em detrimento da perda de espécies hiperdiluidoras que são mais sensíveis a alterações no ambiente onde vivem. Basicamente, as alterações da natureza causadas pelo homem afetam a composição e abundância das espécies que ocorrem em uma região, podendo levar à extinção local de algumas espécies hiperdiluidoras, e aumentando a abundância das amplificadoras. Este efeito, resultante da presença de espécies hiperdiluidoras em comunidades naturais mais diversas, é conhecido na literatura científica como efeito diluição, e que diminui o risco de novos surtos de zoonoses. Por outro lado as espécies amplificadores, como os roedores hospedeiros de hantavírus e a peste bubônica, aumentam e muito o risco das doenças atingirem os seres humanos. No Brasil temos um histórico recente de surtos destas zoonoses. 

Como são perigosas para a saúde humana, existem no mundo inteiro estudos focados na fauna silvestre para entender sua ecologia, e como pode ser o transbordamento de uma zoonose para os seres humanos. Quando ocorre um novo transbordamento de um vírus para a população humana denominamos emergência de uma nova zoonose nos afetando, e quando uma zoonose ressurge (como a febre amarela, ressurgida recentemente no Sudeste brasileiro) damos o nome reemergência de uma zoonose. Em ambos os casos o risco é alto, com o aumento nas abundâncias das espécies de vetores e hospedeiros. E aqui cabe uma curiosidade, que é o fato do primeiro estudo sobre ecologia da fauna brasileira, financiado pela Fundação Rockfeller em associação com o Ministério da Saúde e Educação do governo brasileiro (sim, já foram juntos no passado) ter tido como foco os vetores e hospedeiros da febre amarela (Davis, 1945, The Annual Cycle of Plants, Mosquitoes, Birds, and Mammals in Two Brazilian Forests, Ecological Monographs 15: 243-295). Outra informação importante aqui é que durante as décadas de 1930, 40 e 50 tiveram coletas de marsupiais e roedores silvestres no Nordeste brasileiro, organizadas pelo pesquisador João do Moojen, do Museu Nacional, e que foram patrocinadas e executadas pelo Serviço de Estudos e Pesquisas sobre a Febre Amarela (SEPSFA) e o Serviço Nacional de Peste (SNP), ambos vinculados ao Ministério da Educação e Saúde (Oliveira, J.A. ; Franco, S.M.S. 2005. A coleção de mamíferos do Serviço Nacional de Peste no Museu Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v. 63, n.1, p. 13-20, 2005). A ideia era mapear os hospedeiros dessas zoonoses. Precisamos urgentemente, no Brasil, dar continuidade a essa tradição e aumentar a quantidade de estudos sobre a ecologia das espécies de vetores, hospedeiros e do sistema epidemiológico do qual fazem parte. E com base nesse conhecimento traçar estratégias de monitoramento ambiental e, quando a alteração for inevitável, de manejo da paisagem que será alterada. 

As zoonoses geram não só impactos na saúde pública, como também causam graves perdas econômicas. A melhor estratégia, como sempre, é a prevenção e a busca de soluções para esses problemas. Como são problemas ambientais complexos e interdisciplinares, é necessário a cooperação de pesquisadores com variadas formações, e essa necessidade fez surgir no mundo inteiro iniciativas como a EcoHealth e mais recentemente o conceito de OneHealth, que por aqui traduzimos como saúde única. Além da cooperação entre vários pesquisadores, faz-se necessário uma interação entre vários ministérios, tais como: Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Saúde (MS), da Agricultura (MA) e da Ciência e Tecnologia (MCTI). E, sem dúvida, o setor privado, especialmente da agropecuária, deve também ser envolvido nesta iniciativa. 

A boa notícia é que o Brasil tem muitos pesquisadores nessas várias áreas do conhecimento e uma tradição de estudos sobre a ecologia de vetores e hospedeiros. O que precisamos urgentemente é unir esforços para mapear os lugares como os maiores riscos de transbordamento das zoonoses, e assim garantir a saúde pública e qualidade de vida ao povo brasileiro.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Vitor Borges Junior

    Doutor em Ecologia e pesquisador do Centro de Conhecimento em Biodiversidade INCT/CNPq e do BioMA PPBio/MCTi

  • Carlos Eduardo de Viveiros Grelle

    Doutor em Zoologia e professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, pesquisador do Centro de Conhecimento em Biodiversidade INCT/CNPq, coordenador do BioMA PPBio/MCTi e coordenador de biodiversidade do CMA

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