Qual é a diferença entre hiking e trekking? No Brasil, convencionou-se que hiking é uma caminhada de um dia e trekking é uma expedição de vários dias. Essa é uma definição bem brasileira. Nos países de língua inglesa não há consenso sobre os termos. Nos Estados Unidos quem completa os 3.600 km da Appalachian Trail de uma só vez não é um trekker, mas um throughhiker. Na Nova Zelândia, quem caminha longas distâncias está fazendo tramping. Na Austrália, essa pessoa é um bushwalker. Na Inglaterra, o trilheiro é um rambler.
A palavra trek não é sequer originária da língua de Shakespeare. Ela vem do afrikaans, holandês colonial da África do Sul, que desde 1925 é reconhecido como uma língua à parte. O termo trekking está ligado menos à palavra em si mesma do que a um fato histórico que deixou marcas profundas na comunidade boer.
Após Napoleão ter sido finalmente derrotado em Waterloo, em 1815, algumas colônias francesas e de seus aliados neerlandeses passaram para esfera de Londres. Uma delas foi a Cidade do Cabo, onde a administração britânica e, sobretudo, os impostos cobrados pelo novo colonizador, foram muito mal recebidos pelos fazendeiros brancos que lá viviam há cerca de 150 anos.
Após quase duas décadas de escaramuças e desentendimentos, uma parcela significativa da população de origem boer resolveu procurar novas terras para cultivar longe do que viam como o governo opressor inglês. Construíram carroças, juntaram as tralhas e, partir de 1836, iniciaram uma jornada de 1.500 km sobre montanhas e campos até se estabelecerem nas terras que hoje conhecemos como Free State e Gauteng. Essa migração entrou para a história local e ficou conhecida como GreatTrek. Desde então, o termo trekking ficou associado a grandes deslocamentos a pé pela natureza, em condições difíceis. Ele pressupõe tanto deslocamentos longos quanto o modo rústico de viajar.
Não é nada muito diferente da epopeia dos bandeirantes no processo de consolidação territorial do Brasil ou, ainda, do que os tropeiros faziam, mais tarde, ao levar as boiadas e cavalhadas do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para a feira de Sorocaba (SP). Certamente, ao invés da palavra estrangeira, poderíamos usar o termo bandeirantismo, mas isso é outra história.
No final da década de 1970, a atividade de, vá lá, trekking, estava associada a esse espírito bandeirante ou tropeiro. Botas de couro e bolhas nos pés, comida ruim, mochila de lona sem barrigueira e nenhuma ergometria, sacos de dormir volumosos, e barraca pesada e muito permeável à noite eram o preço que se pagava para fazer alguma atividade montanhista.
Na década de 1990, contudo, houve um grande avanço tecnológico no equipamento de caminhadas. Chegaram ao Brasil botas de goretex, mochilas leves, comidas liofilizadas, fogareiros pequenos e fáceis de transportar, sacos de dormir que de fato esquentam, colchões infláveis e barracas realmente à prova d`água. De certa forma, a atividade deixou de ser sinônimo de sofrimento.
Mas enquanto estávamos levando a farinha, os sul-africanos já traziam o pirão. Lá, onde o trekking é parte da cultura da elite econômica, criou-se o conceito de slackpacking. Trata-se de uma modalidade de trilha de longo curso direcionada a um público mais refinado e com maior poder aquisitivo. Ao fazer slackpacking, exatamente como o trekker, o caminhante se equilibra em trilhas estreitas, sobe e desce morros, chafurda as botas na lama e chega cansado ao seu destino no fim do dia. Mas as semelhanças param por aí. Sua coluna não está doendo, por que ele não carregou uma mochila pesada nas costas. Ela é transportada entre os pontos de pernoite por um provedor de serviços. Não é tudo. À noite, o slackpacker vai tomar banho quente e se enxugar em uma toalha felpuda, vai se alimentar de uma comida saborosa e requintada, regada a vinho de boa cepa, e vai dormir em uma cama macia, enfronhado em lençóis cheirosos. Na manhã seguinte, vai vestir uma roupa limpinha e seca, e vai trilhar mais vinte ou trinta quilômetros até o próximo ponto de pernoite, onde vai reencontrar o luxo e conforto da noite anterior.
O conceito de slackpacking foi apresentado à Rede Brasileira de Trilhas em 2008, por ocasião de uma viagem técnica à África do Sul. Na época, o objetivo era aprender com a experiência da Otter Trail e das trilhas de mountain bike da Rota Jardim. Quando a nossa equipe chegou à Cidade do Cabo, contudo, David Daitz, então presidente da CapeNature, nos fez o convite para percorrer a Whale Trail.
Como assim? Percorrer uma trilha de longo curso sem carregar peso? Tomar um conhaque antes de deitar? Comer algo melhor que miojo? Isso não é fazer trilha! Não podia estar mais enganado. Isso é fazer trilha em alto estilo. David Daitz reunira cinco casais para a pernada, todos com idades acima dos 50 anos. Joviais e atléticos com certeza, mas também em uma fase da vida em que já tinham feito muitas trilhas e passado por muito perrengue. No grupo havia quem já tivesse subido o Kilimanjaro e o Monte Quênia. Era gente experiente, com força nas pernas e disposição para carregar uma mochila cargueira, mas que, nessa fase da vida, preferiam fazer caminhadas, se possível, sem peso e só aproveitando a paisagem e os banhos de mar e de cachoeira.
Com efeito, substancial parte do público de caminhadas está em idade financeiramente saudável. Dados de todas as pessoas que completaram o Caminho de Santiago em 2017 mostram que 57% dos caminhantes tinham entre 30 e 59 anos de idade e 29% mais de 60 anos, faixas etárias que tendem a contratar mais serviços associados ao conforto. Note-se que, naquele ano, 5.113 brasileiros, completaram todo o Caminho de Santiago (7º maior público nacional), o que dá uma medida da demanda já existente em nosso país. Na Europa, segundo a Adventure Travel Association, dois terços do mercado de caminhadas em trilhas é composto por pessoas que têm entre 40 e 70 anos de idade. Esses usuários são conhecidos pela sigla “3d”, porque dispõem de disposição, dinheiro e disponibilidade. Seu perfil exige maior conforto no transporte, na alimentação e na qualidade da hospedagem, fomentando portanto, a criação de um mercado de serviços especializado para atender à demanda.
Com tantos usuários na terceira idade, o conceito de slackpacking já se espalhou pelo mundo. Na Costa Vicentina, em Portugal, implementar uma trilha de longo curso com serviços refinados de alimentação e hospedagem foi a estratégia utilizada pela associação de comerciantes da região Casas Brancas para promover o turismo no inverno. Em poucos anos, a Rota Vicentina posicionou-se como um forte produto e mudou o perfil do turismo naquela faixa do litoral lusitano, seduzindo um público diferenciado e com alto poder aquisitivo. Mais do que mitigar a falta de atratividade na baixa estação, a Rota hoje atrai turistas o ano inteiro e contribui para a alta taxa de ocupação dos estabelecimentos de hospedagem localizados ao longo de seu traçado, criando empregos e dinamizando serviços associados como transfer, transporte de bagagens, alimentação e venda de equipamentos.
Uma trilha de longo curso da magnitude e dimensões da Oiapoque x Chuí, conecta unidades de conservação de diferentes categorias. Assim o caminhante tem à sua disposição um cardápio de trilhas que incluem desde áreas pristinas em Parques Nacionais, Estaduais e Municipais, até paisagens protegidas, onde a natureza convive com atividades humanas de baixo impacto como é o caso das Áreas de Proteção Ambiental (APA). No primeiro caso, normalmente o trilheiro terá que dormir em barracas ou, na melhor das hipóteses, em abrigos rústicos. Na segunda hipótese existe a possibilidade de implementar trilhas com opções de pernoite variadas, que contemplem campings e hostels, mas que também incluem percursos de slackpacking.
No Brasil há poucas trilhas de longo curso regionais tão talhadas para essa modalidade quanto os Caminhos da Baleia Franca, em Santa Catarina. Prevista para ter cerca de 160 km, caminháveis em uma pernada de sete a dez dias, entre Balneário Rincão e a Guarda do Embaú, essa trilha costeira, totalmente inserida na Área de Proteção Ambiental da Baleia Franca, tem tudo para ser a mais famosa opção de slackpacking do Brasil.
Assim como a Whale Trail, os Caminhos da Baleia Franca, têm uma temporada alta. De julho a novembro algumas centenas de baleias francas austrais chegam junto ao litoral catarinense para parir e amamentar seus filhotes. Sua caça, iniciada na década de 1740, para a produção de óleo para iluminação pública e argamassa para construção civil, quase levou a espécie a extinção. Desde sua proibição em 1973, quando já era raro avistar as baleias francas no litoral catarinense, a população dos cetáceos se recuperou. Somente mais de 20 anos depois, em 1994, a observação desses bichões de cerca de 18 metros e 60 toneladas voltou a ser comum. Em 2018, mais de 280 baleias vieram às águas da APA, um recorde. Junto com as baleias, também é possível ver golfinhos e variada avifauna.
Mas os Caminhos da Baleia Franca são muito mais que a observação de baleias. A caminhada alterna costões rochosos associados a exuberante mata atlântica, lagoas costeiras, enseadas, mirantes naturais, restingas conservadas e grande diversidade geomorfológica, com ilhas próximas à costa e formações dunares. Um dos maiores destaques, obviamente, são as travessias de praia – além das belas paisagens costeiras, as praias protegidas pela APA da Baleia Franca e conectadas pelos caminhos já são um dos destinos nacionais mais consolidados quando o assunto é surf, kitesurf, windsurf e outras modalidades esportivas relacionadas.
Ao longo de todo o caminho, as marcas da colonização açoriana na arquitetura e na rica gastronomia regional, podem ser observadas e desfrutadas – com destaque para os centros históricos de Garopaba e Laguna, este tombado pelo patrimônio nacional. Sítios arqueológicos ainda pouco conhecidos, como oficinas líticas (as marcas nas rochas onde os povos originários afiavam suas ferramentas) e dezenas de sambaquis, além de formações costeiras – algumas com mais de 30 metros – compostas de conchas, ossos e artefatos, também cravejam a região.
Já durante os meses de verão, os Caminhos da Baleia Franca são tomados pelo turismo de sol e mar, sobretudo nas famosas praias de Imbituba e Garopaba, o que projetam a APA da Baleia Franca como uma das unidades de conservação mais visitadas de todo o Brasil, com mais de 2,2 milhões de visitas apenas nos meses de janeiro e fevereiro deste ano. Vale lembrar, ainda, que a região se insere no segundo maior destino de turistas internacionais do país, segundo o Ministério do Turismo. A grande demanda turística “empresta” sua infraestrutura para os adeptos das caminhadas e do slackpacking, com grande diversidade de serviços de hospedagem e boa oferta de guias especializados e operadores. Assim, o esforço conjunto do ICMBio, prefeituras e sociedade civil em breve brindará o Brasil com uma trilha que, se já nada deve a ninguém em termos de paisagem e atrativo, também será competitiva em hospedagem, gastronomia e serviços associados.
Assista a live sobre os Caminhos da Baleia Franca na íntegra:
*Paulo Faria é analista ambiental do ICMBio, lotado na APA da Baleia Franca
Pedro da Cunha e Menezes é diretor de comunicação da Rede Brasileira de Trilhas de Longo Curso
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Vale mencionar que há excelentes guias locais, como o Julio Cesar Vicente, de Imbituba, que levam a vários trechos da trilha pra quem não quiser fazê-la inteira e mesmo assim ver boa parte da biodiversidade regional. Utilizar os guias locais gera emprego e renda com a conservação. Agendamentos com ele e mais informações pelo WhatsApp (48) 9.9948-2224.