Em novembro de 1984, um grupo de jovens formalizou, em Curitiba, Paraná, uma das várias iniciativas pontuais à época, para a criação de uma instituição privada voltada ao tema da conservação da natureza. Surgia a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental, a SPVS. Um esforço que não gerou nenhuma repercussão, mas que guardava naquelas pessoas que decidiram por esse caminho, uma ambiciosa expectativa de colaborar efetivamente com a sociedade para uma luta emergencial: a proteção do Patrimônio Natural brasileiro.
A expectativa utópica de receber atenção e reconhecimento de atores do poder público e da iniciativa privada, decorrente desta tomada de decisão, que nos parecia suficiente para buscar parcerias e avançar, rapidamente se transformou numa realidade bastante fora da perspectiva inicialmente esperada. Sem capital para desenvolver quaisquer atividades, e amparados pelo apoio de alguma infraestrutura que foi cedida a partir de relações familiares, o grupo inicial que formava a SPVS iniciou sua jornada com um intenso trabalho voluntário.
Convencer atores externos a financiar ações de conservação para uma instituição recém-fundada, obviamente, não foi tarefa fácil. Nem gerou resultados no curto prazo. Mesmo assim, com o passar do tempo, foi possível uma melhor compreensão sobre o desafio de viabilizar projetos, com a inclusão de uma atividade muito distinta do que estávamos pretensos: as ações diretas voltadas à conservação. Aprendemos que havia necessidade de peregrinar por diferentes instâncias em busca de uma sinalização positiva para trabalhar conosco. Agregamos à agenda de parte de nosso grupo o papel de aproximação com empresas e instituições públicas com propostas que, aos poucos, acabaram sendo aprovadas.
Estudos envolvendo inventários de flora e fauna, esforços de restauração de áreas degradadas, atividades de educação ambiental, inovando com a criação de atividades lúdicas que nos permitiram atender diversas localidades, além de uma variedade de pequenos projetos que foram sendo viabilizados deram a SPVS um alento de que havia espaço para avançar. Já na década de 90, a escolha de uma região prioritária – a Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba – localizada no litoral norte do Paraná, um dos mais importantes remanescentes de Mata Atlântica bem conservados, amplificou o nosso conhecimento sobre as diferentes vertentes que envolvem a agenda da conservação com suas implicações econômicas, políticas, sociais e culturais.
A realização de um Plano Integrado de Conservação para a região serviu de escola para o estabelecimento de uma agenda de longo prazo, que foi mantida até os dias atuais, com a compreensão de que mudanças de cenário não podem ser obtidas a partir de ações pontuais, mas sim, a partir de um trabalho continuado. Multiplicam-se então atividades centradas numa mesma região, não mais apenas com atividades de conservação, mas também demandando um grande esforço de articulação com comunidades locais e gestores públicos visando avanços no campo social. Ao mesmo tempo em que diversificamos nossas ações, foi ficando mais evidente a dificuldade em gerar resultados mais amplos e, ao mesmo tempo, conquistar parcerias que mantivessem as atividades iniciadas.
Numa oportunidade inesperada, a entrada nos anos 2000 abriu espaço para a aquisição de áreas nesta mesma região, com a proposta de ações voltadas ao combate ao aquecimento global atrelados à conservação da natureza. Uma das iniciativas pioneiras realizadas no Brasil permitiu a aquisição de quase 20 mil hectares de fazendas destinadas a atividades convencionais, em parte degradadas, para a constituição de um grande esforço de conservação e restauração, com a criação de três Reservas Naturais privadas. Uma mudança de escala no corpo de colaboradores acompanha esses projetos de maior envergadura, permitindo a constituição de equipes de gestão mais estruturadas e a contratação de atores locais para o trabalho desenvolvidos nestas Reservas.
Nesse mesmo período, um trabalho continuado de monitoramento da espécie papagaio-de-cara-roxa, também na região de Guaraqueçaba, foi mantido até os dias de hoje, garantindo a retirada desta espécie da categoria de ameaçada de extinção. Parcerias institucionais com instâncias públicas e privadas tiveram seguimento, com o suporte aos gestores públicos de Unidades de Conservação localizadas na região, o apoio à ampliação de áreas protegidas e a implantação de conselhos para integrar a gestão das áreas naturais protegidas.
Paralelamente ao trabalho intenso realizado na região costeira, ações de conservação em áreas urbanas, por meio do programa Condomínio da Biodiversidade, encadearam um amplo conjunto de ações na Região Metropolitana de Curitiba, permitindo um esforço de orientação a proprietários sobre as práticas conservacionistas em pequenas propriedades urbanas e periurbanas, com ações de educação para conservação com diferentes públicos e o incentivo a criação de ferramentas para estimular a manutenção de áreas naturais protegidas a partir de incentivos econômicos.
Também na região do planalto, mas com foco em áreas rurais, em 2003, a SPVS estabeleceu uma parceria para a adoção de áreas naturais em estágio avançado de conservação, uma prioridade máxima de conservação em função da existência de frações mínimas de áreas com Floresta com Araucária e Campos Naturais no Paraná. A modalidade segue nos anos seguintes com o atingimento de 5 mil hectares de acordos de proteção a partir do pagamento de serviços ecossistêmicos, o Programa Desmatamento Evitado.
A busca por maiores condições para atrair corporações para a agenda da conservação precipita, a partir de um conjunto de parceiros, de uma iniciativa inédita, com início em 2007, que proporciona como resultado a criação de uma certificação de biodiversidade (ou Certificação LIFE), única no mercado e que já coleciona um conjunto de empresas certificadas no Brasil. Este mecanismo já é aplicável no Paraguai, com o avanço em curso para o México e Comunidade Europeia, permite a mensuração do impacto ambiental não mitigável de corporações, de qualquer porte ou ramo de atividade e orienta para uma ação compatível voltada à conservação da biodiversidade.
Mais recentemente, o trabalho continuado na região de Guaraqueçaba e a gestão das suas três Reservas Naturais, proporcionam à SPVS, sempre a partir de um alinhamento com parcerias historicamente constituídas, um novo desafio, com a criação da iniciativa Grande Reserva Mata Atlântica, em 2018. Com base no conceito de “produção de natureza” e de uma “economia restaurativa”, esse e trabalho proporciona uma nova agenda de desenvolvimento regional, com a abertura de oportunidades de geração de empregos e renda, a partir da boa conservação de um contínuo de quase três milhões de hectares, abrangendo 60 municípios entre os estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
Seguindo a premissa de que o terceiro setor tem, como principal função, a geração de iniciativas inovadoras, que sejam capazes de gerar resultados em grande escala a partir da implantação de novas políticas públicas a serem assimiladas pela sociedade em geral, a SPVS transitou, nesses quase 40 anos, por uma infinidade de caminhos distintos buscando aderência para a agenda da conservação. Uma luta de resiliência considerável em função de não ter havido, até aqui, uma demonstração mais consistente de atores públicos e privados na assimilação do sentido de urgência no qual nos encontramos já há várias décadas.
O trabalho segue com a determinação de sempre. Um enorme esforço em busca de uma maior capacidade de envolvimento da sociedade nesta agenda, o que parece estar aos poucos sendo mais efetivo, não necessariamente por uma questão de sensibilização voltada ao interesse público. Mas, sim, em função dos continuados prejuízos econômicos e sociais decorrentes do desequilíbrio ambiental. Notadamente pela ocorrência mais frequente e com maior intensidade, de fenômenos climáticos extremos, causados pela sinergia pelo desequilíbrio do clima e pela perda da biodiversidade. Essas perdas crescentes são, possivelmente, a melhor fórmula para gerar mudanças comportamentais mais efetivas, numa sociedade que insiste em não dedicar atenção suficiente ao tema da proteção da natureza.
Dia 18 de novembro a SPVS completou 38 anos e, atualmente, somam-se às ações pioneiras de organizações não governamentais, da academia e instituições de pesquisa, corporações e de iniciativas de agências governamentais, na maioria dos casos ainda de porte demonstrativo, uma infinidade de demonstrações práticas que vem sendo implementadas, dando uma sinalização de que é possível reverter o quadro de degradação continuada em nosso país é algo possível. No entanto, não avançaremos sem que essas atitudes que ainda representam um efeito pontual, sejam incorporadas em nossas vidas de forma corrente e generalizada. É evidente que a intensidade da degradação ambiental, muitas vezes contando com o aval dos governos e de setores da sociedade, são infinitamente mais relevantes do que os ainda singelos esforços na direção contrária.
A falsa dicotomia entre a conservação do patrimônio natural e ações voltadas ao desenvolvimento socioeconômico precisa ser confrontada de forma mais determinada. Mesmo que tardiamente, cabe a todos nós avaliar com mais responsabilidade as práticas incompatíveis com uma forma de desenvolvimento que exacerba em seus efeitos negativos ao meio ambiente. São práticas que ainda conseguem justificar seus impactos ambientais por serem geradoras de riquezas, de empregos e renda, mesmo que causem, indiretamente, enormes prejuízos que acabam sendo coletivizados.
Mais do que isso, as práticas de negócios em geral e nosso próprio comportamento como cidadãos, demandam novos critérios de coexistência com um planeta, que não pode ser duplicado para atender expectativas ainda consideradas, pela maioria de nós, como inesgotáveis – mesmo sendo bastante óbvio que não são. A desigualdade social e as agressões que excedem os limites do planeta são nossas grandes ameaças para o presente (um futuro que já chegou). Que o exemplo de atores que atuam arduamente, ao longo de tantos anos, para reverter o quadro crescente de insolvência de nossa capacidade de sobreviver dignamente nesse planeta, sejam reconhecidos e valorizados, como iniciativas sem precedentes – e criticamente necessárias – em busca de uma agenda de equilíbrio e dignidade.
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