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A conquista da Patagonia em cinco passos

“Não há negócio a fazer num planeta morto”. Parece papo de ambientalista, mas vem do dono de um império de roupas esportivas que transforma lucro em preservação.

3 de dezembro de 2004 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O teste está na primeira página do catálogo de uma grande marca de roupas esportivas. E diz – aliás, prega – mais ou menos o seguinte: “Em que a empresa deve pensar antes de mais nada? Nos acionistas? Nos clientes? Nos funcionários? Nada disso. Ela tem que cuidar antes de tudo da origem de tudo o que ela tem. Ou seja, do planeta. Sem planeta saudável não existiriam acionistas, clientes nem empregados. Aliás, não há negócio a fazer num planeta morto”.

Parece conversa de ambientalista para empresário dormir. Mas vem pela voz do dono de um império, que só não só cresce mais porque ele não permite. No começo dos anos 90, quando sentiu que estava cada vez mais perto de ficar bilionário, demitiu 20% dos funcionários, enxugou a linha de produtos em suas fábricas, que passou de 375 itens para 280, adotou o algodão orgânico em seus tecidos e introduziu plástico reciclado em seus agasalhos de lã sintética. De quebra, passou a dar cada vez mais dinheiro para as pessoas que batiam em sua porta querendo patrocínio para idéias mirabolantes, como devolver aos peixes e às plantas aquáticas os canais imundos de uma cidade ou tirar árvores dos dentes da motosserra acampando indefinidamente no alto de suas copas. Desde de 1985, a Patagonia vem doando todo ano 10% de seu lucro ou 1% de suas vendas – o que der a cifra mais alta – para ONGs ambientalistas. Já semeou entre cerca de 10 mil militantes mais de 25 milhões de dólares em dinheiro. Sem contar os milhões de dólares doados em equipamentos.

Em outras palavras, passou a levar ao pé da letra um dos lemas que guiam a administração da companhia – “maior não é melhor”. Pelo visto, deu certo. Em 2004, dá para comprar roupas da Patagonia, a preços de butique, em lojas de El Calafate, uma cidade no sul da Argentina onde os aviões não pousam durante o inverno e o vento empurra pelas ruas as latas de lixo, ou nos melhores endereços de Milão. Assim como se pode usar em El Calafate as peças compradas em Milão, ou vice-versa, sem fazer feio. Como diria o proprietário, “se quer mudar sua empresa, mude primeiro o freguês”.

Ele se chama Yvon Chouinard e deixou há muito tempo de ser exótico, à medida que o mundo foi mudando e ele continuou o mesmo. Aparentemente, seu sucesso é daqueles que sobem em cabeças alheias. Recentemente, escreveu no tal catálogo que “levou 25 anos no negócio” tentando resolver se queria mesmo virar empresário. Ou seja, “lutando contra os fantasmas da responsabilidade corporativa”. Aos 66 anos, Chouinard ainda lança no ar frases que parecem vir diretamente dos movimentos alternativos da década de 60. Mas, naquela época ele estava trabalhando duro como ferreiro, malhando na bigorna grampos de alpinismo.

Até hoje ele se considera antes de mais nada alpinista, surfista e pescador de molinete. Também gostar de pilotar avião nas horas vagas. Que o diga historiador José Augusto Pádua. Ele já voou nos Andes com Chouinard no comando de um bimotor. Os dois estavam no Chile, visitando as florestas que o empresário comprara para impedir que elas caíssem nas mãos das madeireiras. E o anfitrião fez questão de passar pelos vales mais estreitos, entre os cumes gelados da cordilheira.

Nos anais do montanhismo, mesmo que jamais se tivesse visto numa encosta famosa o logotipo da Patagonia, o nome de Chouinard estaria inscrito como inventor do piolet articulado que revolucionou a técnica de ascensão em gelo. Mas até como fabricante de equipamentos especializados para montanha ele era atacado regularmente por remorsos ecológicos. Nos anos 70, ao constatar que os grampos de aço que ele fazia – e usava – escalavravam as montanhas, passou a fornecer pitões móveis de alumínio a devotos da “escalada limpa”, uma técnica que estava então engatinhando e praticamente não deixa cicatrizes na rocha.

Mais tarde, quando a popularidade do montanhismo cresceu desmesuradamente, Chouinard decidiu encolher a própria firma. Vendeu a metalúrgica e foi fazer roupa para esportes radicais. Dez anos depois, a Patagonia se tornara tão grande, que ele pensou seriamente em largar tudo, subir num veleiro e se mudar com a mulher para os mares do sul. Desistiu quando se convenceu de que, sem a empresa, não teria como bancar projetos de ambientalistas. E a essa altura eles começavam a fazer fila no site onde a Patagonia publica as fichas de inscrição.

Em resumo, Chouinard fez tudo o que podia para dar errado nos negócios. Mas deu certo. E, como deu certo demais, virou líder de uma organização internacional chamada “1% For The Planet”. Ela reúne empresas que, como o nome está dizendo, se comprometem a aplicar um por cento de seu lucro líquido em causas ambientais. Aos interessados em segui-lo, Chouinard oferece na internet um atalho com cinco passos. Propostos num tom quase religioso, como se fossem exercícios de iluminação, mas recheados de conselhos práticos, eles soam mais ou menos assim:

1) Leve uma vida consciente. “A maior parte dos danos ambientais provocados pelos homens é produto da ignorância. Essa ignorância é que nos dispensa de enfrentar nossos problemas, sempre que nos recusamos a aprender alguma coisa para não ter que agir de acordo com o que sabemos”, Choinard explica. Exemplo: “Quinze anos atrás eu não sabia que das quatro fibras mais usadas pela indústria de tecelagem (algodão, lã, poliéster e nylon), o algodão é a que causa mais problemas ambientais, por causa dos inseticidas usados nas plantações”. Hoje, a Patagonia usa poliéster reciclado, corantes não poluentes e fibras feitas com garrafas de PVC usadas.

2) Limpe sua própria sujeira. “Quando aprender os custos ambientais do que produz, trate de reduzi-los. Se for possível reduzi-los, você tem a obrigação de fazer isso. Quando aprendemos como o algodão é nocivo, por causa dos agrotóxicos usados nas plantações, procuramos uma alternativa sensata. E encontramos: o algodão orgânico”.

3) Expie as suas culpas. “Não importa quão diligente seja a empresa, ela produzirá sempre lixo e poluição”. Para esse pecado original, a penitência recomendada é uma espécie de compensação ambiental voluntária, que não espera pelos processos do Ministério Público. A Patagonia, como ainda não conseguiu eliminar o antimônio na produção do poliéster que emprega em suas roupas, impôs a si mesma um “imposto pelo uso do planeta”. É dele que vêm as doações para ambientalistas.

4) Apóie a sociedade civil. “É claro que os governos e as corporações têm muito poder, mas isso também acontece com os pequenos grupos de pessoas que cuidam apaixonadamente de um problema e lutam por suas causas. Os grandes movimentos políticos dos últimos 200 anos – como a própria democracia moderna, a igualdade de direitos para as mulheres, a política de conservação da natureza – começaram como um movimento de pequenos grupos”.

5) Influencie outras empresas. “Se você já deu os outros passos, este chega naturalmente. A empresa que descobre novas maneiras de ser mais correta em termos ambientais, tem a obrigação de passar adiante o que aprendeu, partilhando o conhecimento do que dá para fazer pela natureza. Os plantadores de algodão orgânico, fiadores, tecelões e fabricantes de roupa que seguiram nosso exemplo criaram novas fontes de recursos para eles mesmos. Conseqüentemente, o custo do algodão orgânico caiu, graças ao aumento do mercado”.

Como se vê, até que é fácil. Mas, antes de dar o primeiro passo, não custa avisar que, segundo o próprio Chouinard, a Patagonia ainda não chegou lá. Seu dono está convencido de que, “socialmente, ela nunca será completamente responsável”, e ambientalmente “ela não será totalmente sustentável tão cedo”. O programa que ele traçou na década de 90 era para dar resultado em 100 anos. Logo, está apenas começando.

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