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Henrique III e o presidente Lula

Há quase 800 anos de tradição por trás do gesto de Lula na Amazônia, posando ao lado de onças e sucuris. O problema é que, com a idade, as coisas perdem o sentido.

21 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Em fevereiro de 1235, lá vão 760 anos, às vésperas do casamento de Isabella, irmã de Henrique III da Inglaterra, com Frederico II, do Santo Império Romano, um presente realmente original atravessou meia Europa para selar a amizade entre os cunhados. Eram três leopardos. Ou leões. Enfim, grandes feras elegantes que, no século XIII, os ingleses não estavam acostumados a ver e muito menos a classificar.

Henrique III botou-os na Torre de Londres, fundando às pressas a Real Coleção de Leopardos, entregue a um funcionário chamado Guilherme de Botton, que evidentemente também não sabia o que fazer com eles. Dois anos depois, sobravam dois leopardos. E em 1240 os registros contábeis da casa real inglesa deixaram de falar deles. Mas a longo prazo estava inaugurada a velha mas vigorosa dinastia dos zoológicos no ocidente.

Com essa história começa a história de Tower Menagerie, livro exótico sobre animais exóticos, lançado há menos de dois anos pelo inglês Daniel Hahn. Ele ainda não existe em português. E é provável que nunca venha a existir. Mas de repente se tornou atual no Brasil, com a visita do presidente Lula ao 8° Batalhão de Infantaria de Selva em Tabatinga, onde uma onça, uma jaguatirica e uma sucuri foram recrutadas no quartel para dar à viagem a cor local da Amazônia.

Lula posou com os bichos. E com isso entrou de gaiato na ilustre confraria dos chefes de Estado que um dia usaram a fauna nativa do Brasil como adorno do cargo. Isso nem de longe quer dizer que o presidente está em má companhia. Até Pedro II caiu numa dessas, enfeitando com papo de tucano seu manto imperial. E foi ridicularizado na época pelo conde Artur de Gobineau, que freqüentava o paço como amigo da casa. E ninguém morreu por causa disso, além dos tucanos.

O problema, no caso de Lula, é o sinal trocado que escorre daquelas fotografias. Num batalhão de selva, uma fera acorrentada pode ter mil e uma utilidades, talvez estratégicas, que escapam à imaginação de um civil embrutecido pela vida urbana. Mas, enquanto o bicho fica preso no quartel, a opinião pública não tem nada a ver com isso. A onça, a sucuri ou a jaguatirica do 8° Batalhão se confudem com a sombra dos segredos militares como se ainda estivessem no meio da floresta.

Mas, quando elas saem da jaula e vão posar para fotógrafos durante uma visita oficial ao quartel, tudo muda de lado e de figura. Zoológico, em princípio, serve para exibir feras. E não para exibir seres humanos. E é o que acontece nessas imagens de soldados ou paisanos, segurando a sucuri pelo gogó ou a onça pela coleira. É aí que mora o perigo. Com os papéis trocados, a discreta patologia dessas coleções de animais silvestres assume o primeiro plano. E o zoológico militar de Tabatinga vira da noite para o dia um picadeiro da vaidade humana.

Lula chegou à presidência com 52 milhões de votos. E, até onde ainda se pode enxergar alguma coisa no noticiário político, não está em campanha para o governo dos guerreiros Masai. Não tem nada a fazer com onças, a não ser salvá-las. Se acha que isso não é possível ou não está nas prioridades de seu governo, pelo menos deveria permitir que elas caminhem para a extinção sem o agravo final da chanchada populista, pelo menos com o respeito que se concede ao touro em fim de tourada.

Fotografar-se ao lado de feras domesticadas foi atestado de valentia no tempo do cinema mudo, quando as platéias ainda torciam em preto e branco pelo Tarzã. Mas esse tempo passou. Hoje, vendo lado a lado um homem e um bicho, qualquer bicho, todo mundo reconhece imediatamente de que lado está a parte fraca, a que perdeu todas as batalhas e provavelmente não terá descendentes na terra para contar sua história.

Henrique III, pelo menos, achava que zoológico era um lugar para mostrar os animais silvestres, e não os seus donos. Tentou criar até um urso polar, vindo da Noruega, pescando por sua própria conta os salmões que subiam o rio Tâmisa. Isso mesmo. Essa história é do tempo em que os salmões nadavam no centro de Londres e a terra sequer imaginava quanta coisa ainda tinha para descobrir e perder.

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