A impressão de que a Equinox é uma empresa como as outras não resiste a dois lances de escada. A fábrica funciona num galpão em São Cristóvão, o velho bairro industrial do Rio de Janeiro. Subindo, passa-se por uma confeção de roupas para crianças no térreo e uma máquina cortando tiras de nylon no patamar do segundo pavimento. Lá em cima, chega-se ao escritório engaiolado num tabique de vidro, que aprisiona o ar-condicionado no salão onde trabalham as costureiras. É lá que fica “o Marcelo”, elas informam.
Esse Marcelo que os funcionários chamam pelo prenome é o Ramos, fundador da Equinox. Está na cadeira de executivo, mas vestindo camiseta sem manga, calção de ginástica e tênis de corrida. O sócio Ricardo Güttler (foto abaixo), na bancada ao lado, enverga o mesmo figurino, que nele parece ainda mais informal graças ao rabo de cavalo. Faz um calor de rachar lá fora. Dentro também. Sob o telhado de amianto, as reformas para melhorar a ventilação da fábrica ainda não deram conta do sufoco. Ali não é lugar para gravata.
Mochilas de todas as cores e tamanhos, penduradas em arames, decoram as paredes dos diretores. Elas são o forte da Equinox, uma firma criada por um montanhista que nos anos 80 não encontrava no mercado nacional equipamentos confiáveis para se meter num esporte que estava engatinhando no Brasil. E também não tinha dinheiro para bancar os artigos importados. Em outras palavras, as suas: “Só me meti a ser empresário porque queria a todo custo fazer mochila”.
Deu nisso. A marca se esparramou. É vendida no Brasil inteiro. Tem representantes comerciais em três estados. Sua clientela, que originalmente não ia além dos companheiros de escalada, ganhou de uns anos para cá a adesão de fregueses inesperados. A turma do trekking. Gente que mesmo na cidade adota o estilo outdoors. Universitários que preferem levar para a faculdade mochilas com o pedigree da aventura.
“Eu não peguei essa onda, foi a onda que me pegou”, diz Marcelo. Ele acha que o mercado do esporte de natureza “explodiu” no Brasil em meados da década passada. “Foi quando começaram a surgir nas bancas de uma hora para outra todas essas revistas que têm palavras como ‘aventura’ ou ‘adrenalina’ no título”. Sinal dos tempos, uma vez por ano a Adventure Sports Fairs, a maior feira brasileira desse tipo de esporte, enche três andares do Ibirapuera, em São Paulo. Ela está em sua sexta edição. E em 2004, movimentou R$ 65 milhões.
Na crista desse crescimento, a Equinox teve que se mudar há cinco anos para o prédio na rua do Bonfim, em São Cristóvão, onde faliu uma ferramenteria. Já não cabia no apartamento de Copacabana, onde a fábrica, o mostruário, a loja e dez funcionários se espremiam em 130 metros quadrados. “Olhando para trás, eu mesmo me espanto que coubesse tanta gente e tanta coisa naquele espaço”, ele admite. Foi lá que a marca pegou.
Mas muito antes da Equinox, para ele vem o montanhismo. Na versão de Marcelo, a história da fábrica começa em 1978, “o ano em que contraí o vírus da escalada”. Ele é filho de militar – e, por falar nisso, irmão do Tande, da seleção que ganhou a medalha de ouro do vôlei nas Olimpíadas de 1992. Aos 14 anos, morando num condomínio residencial do Exército aos pés do Pão-de-Açúcar, pôs os olhos pela primeira vez “naqueles malucos” que subiam os paredões de granito da montanha. Acabou se inscrevendo com três vizinhos no Clube Excursionista do Rio de Janeiro.
“Éramos quatro garotos inexperientes”, ele conta. Não podendo revelar em casa o que andavam fazendo, era obrigados a improvisar seus investimentos no esporte. Em vez de mosquetões – aqueles elos metálicos com fecho de segurança que prendem os escaladores a suas cordas – usavam cadeados comuns para se pendurar nos ganchos. Amarravam-se em cordas náuticas, “que são péssimas”. Não há fotos desse aprendizado, porque a maior preocupação do grupo com a segurança era não deixar provas de atividades que os pais, encontrando, usassem para proibi-los de escalar.
“Fizemos tudo errado, mas aquilo virou uma paixão que nunca mais me largou”, diz Marcelo. A tal ponto que a improvisação ainda era quase a mesma quando, em 1987, tarimbado por quase uma década de ascensões em rocha no estado do Rio de Janeiro, ele resolveu encarar uma escalada em gelo. Escolheu, para a estréia na neve eterna, o monte Tronador (foto), um vulcão extinto com 3.554 metros de altitude na fronteira da Argentina com o Chile, onde despeja nada menos de sete geleiras.
Até os guias mais experientes da Argentina têm histórias de encontros quase fatais com as avalanches de neve e as gretas de gelo do Tronador. Marcelo atacou a montanha com a cara e a coragem. “Fomos os quatro – Fernando Fajardo, Eduardo Peixoto, Carlos Costa Ribeiro e eu – para Bariloche, levando algum equipamento emprestado. Chegamos de tardinha ao refúgio Otto Meiling, que é a base de escaladas para os picos do Tronador, montamos a barraca ao lado da casa e fomos conversar com os argentinos”.
Os guias locais tinham uma saída contratada com um alpinista suíço. Largariam às quatro da manhã, bem antes que o sol pusesse o gelo em movimento. Resolveram segui-los à distância, mas se atrasaram logo na largada. Quando puseram as botas fora da tenda, a cordada já estava longe e o jeito era seguir o rastro que ela deixava na neve. Assim cruzaram o glaciar Castaño Overa, costeando precipícios de gelo, sem saber muito bem onde estavam pisando.
Gastaram tempo demais no caminho. “Perdi duas luvas, que o vento arrastava e eu saía correndo atrás deles em cima da geleira”, lembra Marcelo. Acabou o dia com um par de meias nas mãos. Quando chegaram ao Filo de la Vieja, onde começa a escala propriamente dita, os argentinos já vinham descendo e se espantaram ao encontrar os brasileiros desencordados numa encosta traiçoeira. Fizeram-lhes recomendações para o resto da escalada que eles simplesmente não compreenderam, como “usar a técnica de doze pontos na geleira”.
“Fingi que entendi. Mas não tinha a menor idéia do que vinha a ser isso”, Marcelo confessa. Tratava-se de pisar com o maior número possível das travas nos crampons. Dali para a frente, a parede tornava-se cada vez mais exposta. O dia estava alto. E o gelo, derretendo. Numa rampa de 45 graus, que terminava lá embaixo em gretas profundas, Marcelo tratou de fincar seu primeiro grampo no gelo. Ficou frouxo. “Mas estávamos decididos a ir lá em cima de qualquer jeito”, diz ele. Só na volta, conversando no refúgio, saberiam que estavam fora da via usada naquela manhã pelos guias. Desistiram perto do cume, quando lhes ocorreu que, sem ancoragem firme, não havia a menor possibilidade de descerem por rapel. Em outras palavras, faltava -lhes o caminho de retorno.
Escaparam. Como no Tronador, Marcelo se atirou na aventura da Equinox sem saber muito bem qual seria o próximo passo. Ele começou muito cedo a fabricar peças a domicílio. Não se formou. “Fiz dois anos de Engenharia. Depois Arquitetura. E enfim Administração de Empresas. Mas era tudo muito lento. E eu já estava acostumado com outro ritmo de vida”, ele explica. Começou produzindo um baudrier – o cinto especial de segurança – para seu uso pessoal. Recebeu encomendas para replicá-lo. Em pouco tempo, não dava mais conta sozinho de atender todos os pedidos.
“Lá vão uns 20 anos”, ele comenta. Hoje, desenvolve seus próprios modelos. Ou melhor, “cria conceitos”. Como o modelo de mochila para escalada que lançou no ano passado. É compacto, mas vem com um tubo para “o guia que vai fazer uma longa enfiada” beber água sem tirá-lo das costas. Foi inspirado nos “camel-backs” usados por ciclistas. Mas ao sair, era uma novidade em acessórios de montanha. “Agora, a Beal francesa, a Mountain Tools americana e a Cassin italiana fazem coisas parecidas. Não estou dizendo que eles vieram aqui nos imitar. Mas nós saímos na frente”, diz Marcelo.
No início, ele copiava produtos importados. Mais tarde, passou a adaptá-los. Foi aprendendo, na prática, que nem todo produto bem cotado lá fora dá tão certo no Brasil como na terra de origem. O clima quente, a ausência de neve, as trilhas fechadas das florestas tropicais, tudo isso acaba derrotando patentes internacionalmente consagradas, como a membrana de Goretex, os tecidos sintéticos cada vez mais finos, os casacos impermeáveis que transpiram, as mochilas cheias de alças para prender pitons e esquís, mas que aqui só servem para se enganchar em moitas de espinho.
Aqui, as mochilas têm que levar Cordura, por exemplo. É um material áspero mas resistente, que Marcelo custou a encontrar na espessura adequada. Para conseguir que os fornecedores fizessem tecidos grossos e cadarços mais fortes, “foi preciso pagar mais caro, pedir grandes quantidades, comprar de uma vez só um ano de estoque”. Até meados da década de 90, não havia fivelas de nylon feitas no Brasil. Passou a haver porque a Equinox insistiu com o fabricante, até que ele se equipasse para produzi-la.
Foi assim com as espumas do forro, que era impossível achar na densidade certa. Com as cores dos tecidos de Cordura, que se limitavam ao azul, vermelho e preto. Com as linhas para costura, que não suportavam cargas de até 140 quilos. “E o problema não acaba aí”, segundo Marcelo, “porque neste país as coisas têm uma tendência incrível a piorar. Se você não ficar em cima, o fabricante vai estar sempre procurando um jeito de economizar onde não deve, tirar um pedaço daqui, uma medida de lá”.
Há quatro ou cinco fábricas de mochilas no Brasil. Mas só a Equinox se dedica antes de mais nada aos escaladores. Ela faz as mochilas de marcas que freqüentam shopping-centers, como a Osklen e a Redley. Mas aposta seu futuro na fidelidade dos montahistas radicais. “Eles não chegam a ser um mercado muito grande”, Marcelo reconhece. “Aliás, nem sei se posso chamá-los de mercado. Mas são cada vez mais numerosos. E é deles que queremos ficar o mais perto possível”.
Para isso, a Equinox tem lá suas idiossincrasias. Não aceita botar seus produtos em lojas de caça e pesca. Quando lança um novo artigo, dá para os amigos da casa testarem. Apóia a Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro. Financia documentários sobre montanha. Gasta cerca de 100 mil reais por ano patrocinando atletas e conquistas. Banca a carreira de Fábio Muniz, “um garoto muito bom”, que é atualmente o segundo colocado no ranking brasileiro de escalada esportiva. Ajudou recentemente a cobrir os custos do Guia de Escaladas da Floresta da Tijuca, um roteiro de 236 vias dentro da cidade do Rio de Janeiro, assinado por Flávio Daflon e Delson Queiroz.
De quebra, tem pruridos ambientais. Recicla tudo o que pode. Doa aparas de tecidos de nylon à escola de modelagem do Senai. Guarda sobras de plástico para encher as mochilas do mostruário. Não publica catálogo em papel, só na internet. Esforça-se para convencer os fornecedores a aceitar de volta as bobinas usadas nas linhas de costura. “Já tentei tanta coisa. Mas como é difícil fazer essas coisas no Brasil”, Marcelo lamenta. “Uma vez liguei para a Dupont pedindo uma solução para o refugo de Cordura Plus que nós usamos. É a Dupont que faz o fio usado nesse tecido. Eles ficaram de me ligar no fim do ano. O fim do ano nunca chegou. Esse tipo de conversa é sempre recebido com surpresa do outro lado da linha. Quem atende pede um tempo para perguntar ao diretor. E raramente liga de volta”.
Para ele, quem se interessa por esses problemas é a clientela da Equinox, não a indústria. “São Cristóvão é um bairro industrial e nem aqui a cidade organizou um serviço de coleta de lixo para reciclagem”, diz ele. “Nós só temos essas manias porque não estamos aqui pelo dinheiro. O Ricardo, por exemplo. Sabe como ele veio parar aqui?”
Trata-se do sócio. Ricardo Güttler fazia vôo-livre. E, como Marcelo fazia com o montahismo, fabricava artesanalmente cintos sob medida para a turma da asa-delta, quando a Equinox sequer existia. Naquele tempo, os artigos feitos por Marcelo Ramos levavam o nome Extreme. Os dois compravam materiais juntos e eventualmente trocavam máquinas. Sete anos atrás juntaram suas linhas de produção na nova firma.
A engenheira de produção Mônica Pranzl (foto) chegou lá por outro caminho. Ela escala. Semanas atrás, grávida de seis meses e meio, pôs a barriga no baudrier e fez uma via de 7º grau em Teresópolis. Há cinco anos, antes mesmo de se formar, saiu à cata de um emprego que não a afastasse da montanha. Casada com um amigo de Marcelo, “foi se infiltrando” na Equinox. Foi ela que instalou a empresa em São Cristóvão. Virou sócia? “Não”, ela responde. “Não, em termos”, Ricardo intervém: “Ela já se apossou de tudo aqui”.
Tudo quer dizer uma operação que emprega 32 pessoas, incluindo as três vendedoras encarregadas da loja no centro da cidade. Na fábrica, as costureiras (foto abaixo) organizam seus próprios turnos de trabalho. Às vezes, elas mesmas se convocam nos sábados e domingos. Ganham pelo menos três vezes mais que os 300 reais de praxe no mercado. E, como recebem por produção, chegam a fazer R$ 1.800 por mês.
Na loja, instalada num segundo andar da rua Buenos Aires, mas visível de longe pelo cartaz de um escalador que parece entrar pela janela, estão à vista produtos da Petzel, Hi-Tec, Black Diamond, Mamooth, Salomon, Theva e outras amostras do montanhismo globalizado, mas o prato de resistência é a mochila da casa. Há desde uma pochete a 20 reais a uma mochila cargueira de 140 litros, que sai por R$ 393.
Parece uma loja de artigos esportivos como outra qualquer, até que o freguês exagera nas perguntas sobre o uso dos mosquetões, fitas e grampos espalhados pela parede. “Nós sabemos para que serve cada coisa dessas”, informa a vendedora Adriana Fernandes. “Mas não podemos dar esse tipo de explicação. Isso só quem pode dizer é o instrutor”. E oferece o número do telefone do escalador Flávio Daflon. Numa firma que nasceu com Marcelo Ramos armando cadeado nas encostas do Pão de Açúcar, isso só pode ser o sinal de que o montanhismo brasileiro já foi muito mais longe do que qualquer marqueteiro ousaria esperar.
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