Colunas

De sem-terra a com-pedra

Basta uma visita ao Guaicurus para ver que reforma agrária não é o forte dos assentamentos ao pé do parque nacional na Serra da Bodoquena. Mas o Incra insiste.

10 de março de 2006 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Quinze anos atrás, quando chegou ao assentamento Guaicurus, no Mato Grosso do Sul, o baiano Antenor Rocha da Silva trazia 18 cabeças de gado. Ele pegou uma rebarba da reforma agrária em Bonito, aos pés da Serra da Bodoquena, de onde vêm as fontes que mais ou menos na mesma época poriam o município na rota do turismo internacional. Mas o mesmo solo antigo e cristalino, com alto teor de calcário, que embala os cardumes de dourado, piraputanga e corimba na correnteza transparente de rios azuis, nas terras de Antenor brota do chão como fraturas expostas de rocha pré-cambriana, formada quando a vida do planeta ainda boiava no caldo primordial dos oceanos sem-fim. Em outras palavras, ele comprou um lote onde “não dá nem mandioca”, como lealmente avisou o assentado que lhe transferiu aquele abacaxi a preço de banana.

De lá para cá, Antenor vem tirando, literalmente, leite da pedra. Plantou mudas de árvores frutíferas que ganhou de um técnico do “Projeto Ecodesenvolvimento no entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena”, tocado pela Fundação Neotrópica, uma ONG local dedicada à conservação da natureza. Hoje, ele tem 50 pés de limão em seu terreno. Limão demais para o consumo da família, e de menos para pagar a viagem até a feira na cidade, a mais ou menos 65 quilômetros de distância. Ele também produz laranja. Dos 300 cafeeiros que vingaram em sua propriedade, mói o pó que consome em casa, com folga para as visitas que chegam sem avisar naquele fim de mundo. Cria galinha no terreiro. Em suma, tem o mínimo para sobreviver da mão para a boca.

Mas os bois ele foi perdendo até acabarem. Nas piores fases, de estiagem mais prolongada, chegaram a morrer no pasto quatro reses por ano. Tudo por “pirraça da água”, diz ele. A pouca água que tem, Antenor recolhe da chuva, em duas caixas de 500 litros alinhadas na porta de casa. É para a família. Não dá nem para lavar roupa. Essa, ele vai buscar na carroça. Não sobra para o gado. Se não chove a tempo, usa-se para beber e cozinhar a água barrenta de uma cacimba para animais. Ela vem carregada de doenças contagiosas, cujos nomes Antenor desfia com a desenvoltura de um sanitarista. Não é à toa que o filtro de barro ocupa lugar de honra da casa, dividindo o cômodo onde o único móvel é a mesa inteiramente ocupada pelo altar doméstico.

Leishmaniose e música

Foi a biodiversidade de sua “fauna flebotomínea”, por sinal, que botou o Guaicurus no mapa das estatísticas nacionais. Segundo um relatório publicado em 2001 pela revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, o lugar está infestado de insetos que sugam sangue. Um dado a mais na evidência de que ali “a população humana está associada a condições socioeconômicas e culturais deficientes”, diz o artigo. Um teste no assentamento, feito com 97 cães domésticos, revelou em 23 animais sinais inequívocos de presença da leishmaniose visceral. E uma forma pior de leishmaniose, a cutâneo-mucosa, marcou os netos de Antenor com cicatrizes indeléveis, deixadas por feridas que foram tratadas a duras penas em hospitais de Campo Grande, a quase 400 quilômetros de distância. Em sua casa não chega a eletricidade. Faltou fôlego ao programa de eletrificação rural para vencer o morro que separa Antenor da antiga sede de fazenda, transformada pela reforma agrária em núcleo de comunidade rural.

Tudo por culpa da “politiquinha”, o único assunto capaz de tirar Antenor do sério. O Incra só passa por ali “uma vez ou outra”. A promessa de canalizar a água de mina que brota a poucos quilômetros de seu lote só deixou tubos, esquecidos no chão. “Vou fazer o quê?”, ele reclama. Fora isso, aos 72 anos Antenor, legítimo sertanejo de Jequié, é mesmo antes de tudo um forte. Miúdo, magro e sacudido, ele deixou a seca no Nordeste para reencontrá-la no Centro-Oeste, depois de décadas zanzando pelo Brasil. Trabalhou em São Paulo. Tocou durante seis anos numa banda em Belo Horizonte. Agora anima o coro da igreja no assentamento. “Católica”, ele diz, como se não bastasse o testemunho dos santos espalhados na parede de tábua – Cosme e Damião, Nossa Senhora da Aparecida, São Judas Tadeu, ao redor de uma gravura do papa João Paulo II, brinde antigo das casas Pernambucanas.

Antenor às vezes se apresenta também “num barzinho” local. Sempre que toca músicas alheias, anuncia cerimoniosamente o nome do compositor – ou melhor, do “mestre”. Sua própria obra vem depois, quando a platéia esquenta. É autor de 17 composições. Em casa, tem zabumba, ganzá, bateria e outros instrumentos básicos do conjunto que formou com a mulher e os filhos. Quando saca a sanfona Universal, desfalcada de um botão no teclado da mão esquerda, acomoda-se em cima do estojo e escancara no fole os primeiros acordes de “Sorriso do Meu Sonho”, composta na época em que ele andava por Minas Gerais, fica imediatamente estabelecido que nem o Incra é capaz de reduzir aquela gente à miséria. Generosa, a mulher de Antenor, encarrega-se de acompanhá-lo no agogô. Nessas horas, o telhado pode ser de zinco, o piso de terra batida e a parede da cozinha varada por réstias de sol, mas a família prova que nem tudo é fiasco na reforma agrária do Guaicurus.

Casas de palha

São quase 500 assentados. Chegaram lá há quase 20 anos. E até agora o único exemplo inegável de prosperidade é o gaúcho Ivo Vanzella, dono de uma casa com varanda azulejada e pomar na porta que destoa da vizinhança. Também, pudera. Vanzella vendeu a propriedade que tinha no Rio Grande do Sul antes de migrar para Bonito. No Mato Grosso do Sul virou sem-terra. Incorporado ao assentamento, tem três vans circulando em Bonito com turistas. De quebra, vende sua produção na feira dos fins-de-semana, o que sem condução própria é difícil. No ano passado, declarou a um pesquisador sua renda mensal: R$ 10 mil.

Mas a maioria dos moradores do Guaicurus continua roendo o osso duro da terra. O solo ali é tão rochoso que as plantas só despontam nas frinchas da pedra. Condenado à ociosidade pela falta de produção agrícola, o galpão do centro comunitário foi aproveitado como casa de festa. Depois que os assentados venderam para madeireiras as aroeiras, os vinháticos e os ipês da mata nativa, sobraram as paineiras, espetadas na paisagem meio lunar no assentamento, com o tronco esguio e as copas altas das árvores que cresceram no meio da floresta. Há lotes que o solo desertou de uma vez por todas, deixando para trás um lajeado estéril onde as casas de palha e telhado de plástico preto têm aparência provisória, muito parecida com a das cabanas que os sem-terra costumam armar nos acampamentos.

A Neotrópica tentou implantar no Guaicurus o mesmo projeto de ecodesenvolvimento que vingou no Santa Lúcia, um assentamento de 40 famílias numa antiga fazenda nos arredores de Bonito, encostada na cidade em terreno fértil. Mas ele não decolou no chão no Guaicurus, no Canaã e Sumatra, onde o cerrado lembra a paisagem áspera do agreste nordestino. A ONG ambiental, preocupada com “a forte pressão sobre os recursos naturais” que os assentamentos exercem sobre “o entorno da área do Parque Nacional da Serra da Bodoquena”, oferece aos pequenos agricultores, ao mesmo tempo, alternativas mais rentáveis e técnicas menos impactantes de cultivo da terra, “uma vez que os créditos disponíveis já foram utilizados, estando a maioria sem recursos para custear as tecnologias que deveriam ser empregadas nas suas propriedades”. Ou seja, que os assentados foram deserdados pelo programa oficial de reforma agrária.

Safra de escândalos

No Santa Lúcia, assistidas pela Neotrópica, as mulheres fazem geléias e conservas, vendidas sob o selo Pé da Serra como produtos da agricultura orgânica. No Guaicurus, só duas moradoras aderiram ao trabalho na cozinha comunitária. Quórum de menos para justificar a manutenção do programa. Mas suficiente para mostrar que, naquelas condições, a reforma agrária não vai longe. Exceto para o Incra. Desde a virada do ano, em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do governador Zeca do PT, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária está dando todos os avisos de que pretende repetir o erro.

Já vistoriou 10 fazendas nas bordas do Parque Nacional da Serra da Bodoquena, para fins de desapropriação. O processo, movido pela urgência que sempre acomete os governos em fim de mandato e véspera de eleição, foi bombardeado pelo promotor Luciano Loubet, do Ministério Público Estadual, com uma série de recomendações para que o Ibama e o chefe do Parque Nacional da Serra da Bodoquena sejam ouvidos sobre as desapropriações e que, em último caso, os assentamentos não comecem sem estudos de impacto ambiental.

Há forte cheiro de superfaturamento na pressa do Incra. Uma das fazendas, a Santa Maria, de 5 mil hectares, foi avaliada para desapropriação em R$ 18,7 milhões, quando ela fora avaliada por R$ 8,9 milhões numa ação de cobrança que corria no foro de Bonito. A juíza Luciane Buriasco de Oliveira Mello estranhou a diferença, quando a fazenda foi leiloada em janeiro por R$ 12, 7 milhões. E o comprador anunciou imediatamente que sua nova propriedade estava à disposição do Incra. Com a denúncia, o negócio gorou. Mas ficou no ar a suspeita de que a nova safra da reforma agrária em Bonito é de escândalos.

Leia também

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Notícias
20 de dezembro de 2024

Governo lança plataforma de monitoramento ambiental da pecuária

AgroBrasil+Sustentável pretende reunir em um só lugar várias informações ambientais de produtores, até então esparsas em diferentes bases. Adesão é voluntária

Colunas
20 de dezembro de 2024

Os desafios da diplomacia climática em 2025

Não há mais janela de tempo para perder com teatralidade diplomática. A principal questão que resta responder é quem deve pagar para evitar o pior dos estragos das mudanças climáticas

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.