A Cidade de Pedra, em Goiás, é uma das paisagens mais antigas do Brasil. Mas, como entrou há pouco em nosso mapa turístico e ainda não deu o ar de sua graça no roteiro nacional de viagens, o guia Luiz Evandro Triers avisou esta semana, mal botou o pé na trilha, que pisava pela terceira vez este ano naquele labirinto de rocha faiscante, talhada pelos éons em formas espalhafatosas num terreno velho como a crosta terrestre. E na volta, como para mostrar que não estava exagerando, perdeu o caminho mais curto até o carro.
Triers é um dos 20 guias credenciados pela Associação dos Condutores de Visitantes de Pirenópolis. Fez, para isso, até curso de primeiros-socorros. Aprendeu no bê-a-bá da geologia as lições capazes de sustentar, durante a caminhada, uma conversa sobre a história aqueles penedos de origem pré-cambriana. E não deixa passar uma pegada na areia fina sem um esforço para descobrir se o bicho que deixou as marcas no chão era lobo-guará ou cachorro doméstico. Mas a freguesia ainda é pouca e disputada. E, quando não está em campo, mostrando a R$ 50 por passeio o monumento natural que a prefeitura oficializou no ano passado, ele ganha a vida com biscates de pedreiro.
Pirenópolis fica a pouco mais de 50 quilômetros da Cidade de Pedra. A distância parece maior porque a estrada de terra, costeando o Parque Estadual da Serra dos Pireneus, tem trechos que fariam bonito em anúncios de utilitários 4×4. Mas Brasília dista do município duas horas de viagem. E Pirenópolis, com seu calçamento de pedra, arquitetura do século XVIII e sossego típico de cidade com 21 mil habitantes, transborda de forasteiros nos fins-de-semana. Nas cheias, hospeda até 50 mil pessoas. E, mesmo na pasmaceira dos dias úteis, a vida local dá a impressão de gravitar em torno de suas trezentas e tantas pousadas.
Monumento Natural
Em outras palavras, a Cidade de Pedra tem tudo para pegar. Desde os faiscadores que bateram aqueles sertões há pelo menos dois séculos, sempre esteve na beira da História do Brasil. E não faz muito tempo que deixou de ser fundo de fazenda. O capim gordura continua lá. Uma cerca de arame farpado cruza a trilha. E quem a visitou meses atrás topou com bois pastando no meio das relíquias geológicas, como o gado romano povoava as ruínas da Roma Imperial nas velhas gravuras da Itália.
Conhecida, portanto, a Cidade de Pedra sempre foi. Mas sua descoberta pelo turismo é recente. Ela apareceu para o resto do país em 2005, quando a televisão deu impulso que faltava a uma campanha municipal para transformá-la em unidade de conservação e debutou neste site, numa reportagem da colunista Maria Tereza Pádua. Mas o lugar se preparou para receber visitas durante milhões de anos, enquanto a erosão roía suas rochas, esculpindo torres de arenito e anfiteatros naturais entre jardins rupestres. E, mesmo com trilhas ainda precárias, cortadas por cercas de arame farpado, está praticamente pronto.
Cravejada de mica e quartzo, suas pedras cintilam ao sol ofuscante do planalto goiano. Seus arcos de pedra, espalhados pelo caminho, emolduram canelas-de-ema, cactos, bromélias, orquídeas, sempre-vivas, quaresmeiras anãs e pepalantos. O conjunto lembra paisagens famosas, como a de Vila Velha, no Paraná, ou das Sete Cidades da serra da Capivara, no Piauí. “Mas é mais impressionante. No gênero, a melhor que conheço”, diz o ambientalista Marc Douroujeanni. Ele fala do alto da experiência de quem avaliou parques naturais no mundo inteiro. E implantou no Peru uma reserva semelhante.
Douroujeanni é um peruano nascido em Paris, com longo currículo internacional. Trabalhou no Banco Mundial. Criou a divisão de proteção do meio ambiente no Banco Interamericano de Desenvolvimento. Preside em no Peru a fundação Pro-Naturaleza. E há quatro anos mora em Pirenópolis, embora tenha um apartamento de cobertura em San Izidro, o melhor bairro de Lima. Mudou-se para a pequena cidade histórica com a mulher, a ambientalista Maria Tereza Pádua, madrinha da primeira RPPN – quer dizer, Reserva Particular do Patrimônio Natural – no município, o Santuário de Vida Silvestre Vagafogo.
Mudança de rumo
Como o marido, Maria Tereza tem uma impressionante folha de serviços prestados à conservação da natureza. No IBDF, o instituto precursor do Ibama, ela tirou dos dentes da motosserra oito milhões de hectares da floresta, convertidos em unidades de conservação na Amazônia quando a política oficial era ocupá-la a qualquer custo. Fez a primeira reserva marinha do país, no Atol das Rocas. E o primeiro parque dos Gerais, o do Grande Sertão; Veredas. Na década de 80, Maria Tereza deixou o governo, em protesto contra o projeto do regime militar que cravou uma estrada no Parque Nacional do Araguaia. E, sem cargo público, pôs em marcha a Funatura, uma fundação dedicada a salvar o que restava do Cerrado.
A mudança foi uma sorte para Pirenópolis. Como presidente da Funatura, Maria Tereza transformou o Vagafogo num modelo de RPPN. Tratava-se, em 1987, de um sítio de 44 hectares. Seu dono, Evandro Egler, depois de viajar o mundo como comissário de bordo, vendia geléias, ovos caipiras e queijos artesanais em Brasília, onde sua clientela incluía Maria Tereza. Ela tomou nas mãos o projeto de transformar a propriedade numa reserva particular feita com todos os cuidados técnicos. Calculou até o que Egler ganharia cultivando a terra ou deixando a mata. O resultado é que o Vagafogo recebe hoje 14 mil visitantes por ano, pagando R$ 9 por ingresso. Egler virou secretário municipal de Turismo.
Inspirado nesse exemplo, o município tem atualmente nada menos de 7 RPPNs. Somadas aos 2.833 hectares do Parque Estadual dos Pireneus e aos 1.700 hectares da Cidade de Pedra, as reservas encorparam o patrimônio turístico da cidade a tal ponto, que o rio das Almas corta a cidade entre matas ciliares, em vez de passar por casas debruçadas em seus barrancos. É um caso singular. Mas quem vê o rio das Almas acha que o Brasil tem conserto. E, 46 anos depois de instalar em Brasília a capital da República para botar o interior no caminho do progresso, o país ganhou na Pirenópolis, a 150 quilômetros da Praça dos Três Poderes, uma espécie de mirante, de onde dá para olhar o futuro com a velha fórmula da esperança.
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