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E lá vamos nós outra vez

O mundo deve ser completamente enganado, porque fala muito na crise econômica que vem aí com o aquecimento global, enquanto o Brasil resolve crescer mais depressa, no segundo governo Lula.

3 de novembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Nas favelas de Nova Delhi, é mais negócio comprar um litro de leite do que um litro de água. O leite, pelo menos, não está controlado pela mafia de atravessadores, que sangra as tubulações da rede pública para vender no mercado negro o que o governo pretendia entregar de graça. Ele, por sinal, promete entregar a cada pessoa 40 litros por dia, senão nas favelas, onde seus canos nem chegam, pelo menos no resto da cidade. Mas nem essa cota se cumpre. Mesmo os seus 40 litros já seriam menos do que os 50 recomendados pelos padrões sanitários. E mal chegariam a um décimo do mínimo per capita que se considera aceitável nos Estados Unidos. Lá, a conta começa em 400 litros diários.

É por causa dessas diferenças que Mahesh Chaturvedi, como fazem seus vizinhos num bairro residencial de Nova Delhi, acorda às quatro da manhã para encher sua caixa. Senão, adeus, banho. E ele é hidrologista. Deu aula em Harvard. Agora ensina ciências ambientais e engenharia no Instituto Indiano de Tecnologia. Integra a elite intelectual que seu país, em vez de esconder como fino extrato da injustiça social, exibe como cacife nas apostas de crescimento econômico. Chaturvedi leva a sério a conversa de que, com pesquisa e cérebros, a Índia ainda acabará chegando à lua. Mas também acredita que, com falta d’água, não irá muito longe.

Ecochato e Chaturvedi

Tudo isso pode soar a lamúria de ecochato. Ou, pior, de Chaturvedi. Mas está numa reportagem de Michael Specter na revista New Yorker. Ela informa que metade das camas de hospital no planeta está ocupada neste momento por gente que a água ruim derrubou, eventualmente de uma vez por todas. A diarréia matou mais crianças nos últimos 50 anos do que todos os conflitos armados desde a Segunda Guerra Mundial. Enfim, que passou o tempo de dizer “está bem, vamos buscar mais água”, e cavar encrencas como as que mataram o Mar de Aral e secaram o rio Colorado no México.

Mas não passou o tempo de transpôr o rio São Francisco. O projeto está mais ou menos onde estava, quando caiu no poço sem fundo dos escândalos políticos. Pronto para voltar endossado pela aprovação tácita dos votos obtidos numa campanha eleitoral que, cuidadosamente, evitou mexer nas polêmicas do meio ambiente. Dá até gosto ver, desde segunda-feira, o esforço dos repórteres, tentando arrancar das mais vagas reticências oficiais a prova de que vem aí outro governo Lula, e não mais do mesmo, como explicitamente pediu o eleitorado. Passada a eleição, só se fala em crescer. No mínimo, 5% ao ano, prevê o professor Delfim Neto, a nova reserva técnica do PT. Por acaso, no mesmo dia em que se começava a discutir lá fora se a economia mundial vai encolher 20% nas próximas décadas, por conta do aquecimento global.

Delfim e Stern

As duas percentagens saíram nos mesmos jornais. Seriam contraditórias, se não fossem previsões de economistas, tanto os 5% a mais de Delfim Neto, como os 20% a menos do inglês Nicholas Stern, postos num relatório sobre a saúde do clima para a conferência das Nações Unidas que começa no Quênia semana que vem. Os brasileiros já entenderam há muito tempo que previsões de economistas têm menos a ver com o futuro da economia do que com o futuro dos próprios economistas, tratando de acertar vagas no próximo ministério.

Não dá para chamar de pessimista o dossiê da ONU. Ele diz que um bilhão de pessoas pode ficar sem água potável. E a reportagem de Specter afirma que isso já aconteceu. Fala no desaparecimento da floresta amazônica. Mas, desde quando o Brasil precisa de mudança climática para acabar com a Amazônia? Dela cuidamos nós, como diz o chanceler Celso Amorim. O mundo é que perece andar meio sombrio. Tão sombrio que nele brilha como nunca o político Al Gore, do filme “Uma Verdade Inconveniente”. Seis anos atrás, Gore perdeu para George Bush a eleição para presidente dos Estados Unidos. Foi tratar de outros assuntos, como os computadores Apple, o site Google e o aquecimento global. Virou conselheiro para mudanças climáticas do governo inglês, sinal de que a Inglaterra não tem um ministro como Amorim para defendê-la de ataques à sua soberania ambiental. Mais uma razão para sermos otimistas.

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