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Aquecimento global no paraíso

Entre o deserto e as montanhas com mais de 6 mil metros, Mendoza, a capital do vinho argentino, é um endereço perfeito para aprender o que significa mudança climática.

5 de janeiro de 2007 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Aos olhos de um brasileiro, o mundo em Mendoza parece virado pelo avesso. Ali, verde é sinal de gente. Ou seja, quanto mais gente, mais verde, porque ele é a marca da presença humana, como na história do escritor Marq De Villiers com sua tia sulafricana. “Aqui você sabe onde tem uma fazenda por causa da clareira”, ela disse ao sobrinho, que a ciceroneava pelas estradas canadenses. “Lá, você sabe quando está diante de uma fazenda porque é onde tem árvore”.

Não foi à-toa que De Villiers escreveu “Water”, um livro muito persuasivo sobre a crise geral de falta d’água neste planeta que continua encharcado como sempre. Ele cresceu numa fazenda na África do Sul, vendo o moinho de vento bombear do fundo da terra cada gota que mantinha, no chão estéril, o oásis particular de seu avô. Adulto, morando em Maynooth, no Canadá, encantou-se com a nascente que encontrou de mão beijada no terreno. Ela, para os padrões canadenses, não passava de um córrego, gorgolejando nas bordas da floresta. Mas, para espanto dos vizinhos, De Villiers “costumava botar uma cadeira do lado de fora no sol do verão só para ver a torrente em movimento”.

Mancha verde

Em Mendoza, no oeste da Argentina, o forasteiro aprende depressa a reconhecer de longe a próxima cidade, no meio do deserto ofuscante, pela mancha verde que brota à sua frente, cintilando sob o céu quase sempre sem nuvens. Sabe que, adiante, poderá contar com largas ruas profusamente arborizadas e chafarizes jorrando nas praças, como é de praxe naquela província de centros urbanos reticulados e subúrbios que parecem jardins.

Nem é preciso entrar na cidade urbana para valorizar as marcas do suor humano na paisagem. Nos vales férteis que a irrigação tornou habitáveis, as estradas correm sob as copas de plátanos e salgueiros centenários, que cobrem o asfalto como um túneis farfalhantes. E tome campos de girassol, pomares, olivais e vinhedos a perder de vista. Toda porteira parece ter alguma coisa para vender, de cereja madura a compota feita em casa. Só nos arredores de Mendoza são 150 mil hectares de parreiras abastecendo as 700 bodegas de Luján de Cuyo, Maipú e outros nomes que o mundo conhece em rótulo de garrafa.

Tudo isso praticamente sem um pingo de chuva, sob um sol de rachar, porque verão é tempo de estiagem na região que produz, aos pés do Aconcágua, não só os melhores vinhos da Argentina, como as marcas de água mineral mais famosas do país. A luz no deserto pode ser estonteante. A poeira marca no ar seco a passagem de carros pelas estradas de terra muito depois que eles sumiram no horizonte. Ao meio-dia não se vê um cachorro em beira de cerca. Mas as cidades só param para a sesta da tarde. Faltam vagas nos hotéis. Há filas nos restaurantes.

Grande negócio

Mendoza vive da extração de petróleo. E foi o vinho que a botou no mapa do turismo internacional, coisa que, por sinal, ela não deixa ninguém esquecer em nenhum momento, desde que, desembarcando no aeroporto internacional, o recém-chegado percebe que as parreiras ao lado da pista foram postas onde estão especificamente para saudá-lo. Mas seu grande trunfo econômico está fora da cidade, dos parques que ocupam mais ou menos a metade de sua malha urbana e das vinículas que, a cada passo, fazem de tudo para tirá-lo do bom caminho.

O grande negócio de Mendoza é água que desce dos Andes na primavera, enchendo os reservatórios que se aninham nos vales entre as montanhas para garantir o abastecimento de um milhão de habitantes e sua próspera agricultura. Outras cidades podem ter a ilusão de bastarem a si mesmas. Mendoza, não. Nela não dá para ignorar o contraste do deserto circundante com “o extraordinário oásis de cultivo”, cantado nos guias turísticos. Para isso está a seu lado a cordilheira, coroada pelo Aconcágua, um pico de quase sete mil metros, “o mais alto das Américas”. Basta olhar para oeste, que os Andes explicam tudo.

Este ano, mesmo de longe, dá para ver à distância, com olhos leigos, que sobra menos neve nos cumes do que seria de esperar num começo de verão. Poderia ser uma alucinação provocada pelo calor, se pesquisadores da mudança climática não andassem lá por cima da cordilheira, colhendo dados sobre a ablação das geleiras andinas, onde tradicionalmente o verão esculpe “penitentes” – blocos de gelo com vários metros de altura, que lembram procissões de encapuzados nas encostas, batizam estações de inverno e marcaram o diário de Charles Darwin, quando ele passolu pelos Andes no começo do século 19.

Os penitentes retardam o processo de degelo durante o verão. Mas ultimamente estão se liquefazendo mais depressa do que nunca. “Como mudará a distruibuição de penitentes como resultado da possível variação climática?”, perguntam os autores de um desses estudos. Resposta: nem eles sabem. Só têm a certeza de que está na hora de saber, “dada a importância da água de degelo para a economia e as populações do Chile e da Argentina”. E, apesar do mau agouro, não deixa de ser um alívio ler esses relatórios, numa semana em que a alternativa, nos jornais brasileiros, é discurso de posse com bla-bla-blá de político. Pelo menos em Mendoza ainda se fala de assuntos sérios.

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