O café-da-manhã oferecido a seis pescadores de Sobradinho naquela manhã de janeiro não poderia ser mais generoso. Eram nada menos do que dez marrecos, torrados, com cuscuz. Fartura demais para a beira do rio São Francisco. E dois comensais preferiram engolir a conversa de que as aves aquáticas deram ultimamente para aparecer mortas, boiando na represa. Quatro atacaram o farnel. E dois pescadores passaram as 24 horas seguintes com secura na boca, dôr de estômago, diarréia e febre, os indícios clássicos da intoxicação alimentar.
A história soa como um contraponto popular às 36 páginas essencialmente técnicas da “Investigação de Epizootia em Aves do Remanso”, relatório preparado este mês para a Secretaria de Vigilância do Ministério da Saúde. Seus autores, Francisco Anilton Alves Araújo e Aramis Cardoso Beltrami, foram escoltados na visita à região por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia e especialistas da Cetrel, empresa que cuida do meio ambiente no Polo Petroquímico de Camaçari e, entre outros serviços extras ao governo, monitora no Nordeste a epidemia de gripe aviária.
Deprimidas, apáticas
Eram, ao todo, dez pessoas. A equipe chegou lá no fim de janeiro, levada pela notícia de que havia em Sobradinho, a essa altura, pelo menos quinhentas aves mortas. Confirmou 270 baixas, “45 por quilômetro quadrado”, na borda da represa, além de 50 “aves debilitadas” – ou seja, “deprimidas, apáticas, com edema nos olhos”, com sintomas de que morreriam “em, no máximo, 48 horas”. Nas aves que tiveram as vísceras coletadas para exame laboratorial pelo instituto Evaldo Chagas, de Belém do Pará, o fígado estava amarelo ou “descorado”, com sinais de lesão hepática. Eram irerês, garças, pombas, jaçanãs, paturis, biguás ou quero-queros, dezesseis espécies diferentes. Delas, 62% são migratórias. Costumam viver em águas rasas. E todas têm relação estreita com a barragem do rio São Francisco, em plena caatinga.
As aves de Sobradinho aparentemente caíram na mesma armadilha por comer peixes e moluscos do lago artificial, ou ingerir sua água para filtrar nutrientes. O resultado dos exames ainda não saiu, mas o reservatório estava, na ocasião, reduzido a 19% de sua capacidade. Com o recuo das margens, as plantações de feijão – que, junto com a pesca artesanal e a criação de cabras ou carneiros, é o prato forte da economia local – avançaram no leito seco. Com o feijão, pelo menos seis tipos de venenos agrícolas, como Folidol, Folisuper ou Karate, devidamente fichados no relatório como suspeitos, invadiram o reservatório.
“Aparentemente existe alguma correlação entre o evento e a água do local”, adianta prudentemente o dossiê, apesar da cautela para não passar suas conclusões à frente dos diagnósticos encomendados aos laboratórios. O certo é que há qualquer coisa de podre no lago de Sobradinho, bem na hora em que o bispo Luiz Cappio conquistou de uma vez por todas, com seus jejuns, a fama de aluado e o governo vai deixando na poeira das máquinas de terraplenagem os debates sobre a transposição do São Francisco. É isso que o Ministério da Integração Regional chama de “Revitalização das Bacias do São Francisco”, pelo visto mais um blefe de Brasília, como o da certificação do rebanho brasileiro para os importadores de carne europeus ou a queda recorde no desmatamento da Amazônia.
Leia relatório completo sobre mortandade de aves no São Francisco
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