Uma coisa é ouvir dizer, de longe, que uma ONG chamada Preserve Amazônia defende a construção de ferrovias, para salvar das rodovias a floresta na região. Outra, muito diferente, é ouvir de perto o engenheiro agrônomo Marcos Mariani falar do assunto longamente, porque o trem, em si, só chega na última parte da conversa. Primeiro, ele conta o que tem visto no Pará há mais ou menos uma década. É tanta história, que quase se perde pelo caminho a primeira impressão, meio leviana, de que na briga entre as estradas de ferro e as de asfalto é melhor não tomar partido, por ser só mais um desvio da inaptidão nacional para deixar a Amazônia em paz.
Dez anos, lá em cima, não passam como aqui embaixo. Dez anos de Amazônia deram de sobra para Mariani acompanhar o recuo da floresta à sua frente, na beira do Araguaia. Ele viu a mata retroceder, nesse tempo, 200 quilômetros lineares, empurrada pela devastação sem-fim. Numa viagem recente a Casiara, no Tocantins, o barco de alumínio em que ele estava encalhou num banco de areia. E todo mundo sabe que aquele rio não era assim. Onde sobraram árvores, crescem à sombra das copas acampamentos da reforma agrária, de olho na safra de madeira nativa que, sem grandes máquinas e investimentos na produção, é o fruto mais garantido daquelas terras.
Nos quase 60 mil hectares da fazenda que administra, a floresta original aguarda há anos a aprovação de um processo no Ministério do Meio Ambiente para se tornar efetivamente uma Reserva Particular do Patrimônio Natural. São treze quilômetros de matas bem conservadas numa das margens do Araguaia. E se estendem por dezoito quilômetros terra adentro. Mas, em Brasília, essas miudezas nunca têm pressa.
Cuiabá-Santarém
Mariani também está ali a negócio. Mas acha que o desenvolvimento da Amazônia não precisa ser exatamente este que está aí. Na paisagem que já se degrada rapidamente, aprendeu a temer os projetos para pavimentação de estradas, executados a toque de caixa, geralmente sem licença ambiental, inclusive por máquinas do Exército. Acelerar as rodovias da Amazônia virou prioridade do governo federal bem na hora em que estudos incontroversos, como os do Imazon, provaram que as estradas são atalhos do desflorestamento. A malha viária que mais se expande no Brasil é a do Pará. Vai sendo ampliada por grileiros, madeireiras e outros desbravadores que, com suas queimadas, classificaram o Brasil em quinto lugar na corrida internacional das emissões de carbono. Tudo isso sem as autoridades moverem uma motoniveladora.
Uma das rodovias que o governo trata como inadiáveis é a Cuiabá-Santarém, que em nome do asfaltamento o governo apelidou de “BR-163 Sustentável”. Por quê, não adianta perguntar ao relatório de impacto ambiental do projeto, feito pela Ecoplan, uma firma de Porto Alegre. Quarenta técnicos da Ecoplan trabalharam na avaliação. Mas partiram do princípio de que a Cuiabá-Santarém, existe. Logo, é insubstituível. Sem levarem conta que um caminho mal e mal carroçável que, segundo o documento, a população local chama de “inferno”, não é exatamente as mesma coisa que uma pista de asfalto. O relatório do Ministério do Meio Ambiente também não menciona opções à BR-163, exceto pela ligeira menção à hidrovia Tapajós-Telles Pires, que ocupa quatro linhas e meia de suas 74 páginas. Como no estudo da Ecoplan, de quase setenta páginas, contornaram-se todos os obstáculos à política do fato consumado. É BR-163, e pronto.
A estrada conecta 71 municípios que vivem da madeira, da pecuária e da agricultura. Sua área influência está orçada em quase 15% do Brasil inteiro. Existe precariamente desde a década de 1970, quando foi rasgada na selva por batalhões de engenharia do Exército, em ritmo de Brasil Grande, sob o lema de “ocupar para não entregar”, que levou ao extremo norte a megalomania do regime militar. E a obra promete transformá-la num corredor de 1.756 quilômetros, por onde trafegarão até 1.400 veículos por dia a 100 quilômetros por hora, nos trechos planos. Asfaltada, reduzirá em 20 reais por tonelada o custo de levar a soja ao terminal graneleiro de Santarém.
É esse o principal argumento do Ministério do Transportes para pavimentá-la. E poderia servir de lenha para a locomotiva do Preserve Amazônia, porque a ferrovia faz o mesmo serviço por metade do preço. Aliás, a hidrovia corta por quatro os gastos com o transporte de carga e gente na região, como dizia em 1992 o último programa de desenvolvimento que o Brasil levou mais ou menos a sério. Leva a assinaturado então ministro Eliezer Batista, da Secretaria de Estudos Estratégicos. É, portanto, obra do governo Collor. Deve ser por isso que não se fala mais nele.
Dois anos atrás, a simples notícia de que a Cuiabá-Santarém viraria a “BR-163 Sustentável” potencializou seus estragos – com o Incra, para variar, à frente das invasões de reservas por assentamentos. A pressa é, sim, inimiga da perfeição. E, diante da aceleração das obras rodoviárias na Amazônia, Mariani pergunta por que o governo, pelo menos desta vez, não cumpre a resolução do Conselho Nacional de Meio Ambiente, que manda avaliar alternativas aos projetos impactantes. No caso, as ferrovias não abririam alas para a ocupação descontrolada da floresta, como fazem as estradas. Essa pergunta, aparentemente tão simples, foi encaminhada à ministra Marina Silva mais de um ano atrás. Ela deve estar pensando muito no problema, porque até agora não respondeu.
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