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Caramujos

Vida de ecologista não é fácil. Tente explicar a um neto pequeno por que é certo acabar com a praga dos simpáticos caramujos mas não se deve matar uma cobra...

23 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Um caramujo é bonito, cinco chamam a atenção, cem é demais. No jardim da minha casa, com pouco mais de mil metros quadrados, estimo que existam uns cinco mil. Depois das chuvas, sobem pelas paredes e pelas plantas mais elevadas deixando excrementos grossos, fruto do seu enorme apetite pelas nossas plantas ornamentais. Apareceram há um ano atrás e nunca foram embora. Na luta contra os bonecos usamos todas as armas disponíveis, que não são muitas, pois na região não existem produtos químicos disponíveis contra esta praga. É uma praga nova, um molusco importado de longínquas terras, um invasor que se tornou vencedor.

Observando o combate aos caramujos do qual participam ativamente meus pequenos netos, que estão de visita nestes dias de festas, coletando os bichos um a um, com tal competência que a cada dia fica uma pesada carga de biomassa caçada por trabalhador e pela promessa de algum prêmio proporcional, penso no enorme impacto ecológico que essas espécies introduzidas pelo descuido humano têm no ambiente natural.

Na nossa chácara, com algumas dezenas de hectares, sempre pretendemos que a natureza seja a rainha absoluta. Comprada há quase 10 anos, havia vegetação de cerrado, algo degradada, em cerca de 60% da sua extensão. O restante tinha sido desmatado para implantar pastagens, como braquiária, colonião e capim gordura. O nosso esforço se orientou desde o primeiro dia para recuperar a área dessas pastagens para o cerrado. Realmente parte da área de pastagens foi substituída por vegetação natural, mas o vento, pássaros e os cavalos, que os vizinhos introduzem na nossa terra, se encarregaram de continuar dispersando as sementes desses pastos indesejáveis e mesmo utilizando métodos radicais como herbicidas seletivos, estamos longe de erradicá-los.

Possivelmente o maior impacto ambiental da nossa presença (dois ambientalistas) seja provocado pela casa de campo. Durante os períodos de revoadas de cupins e formigas, se as luzes não são apagadas, acumula-se mais de 5 kg desses insetos apenas em uma noite, alterando seu padrão de distribuição natural e sua capacidade de sobrevivência, além de influenciar na avifauna e conseqüentemente em outras espécies. As construções rurais, além de oferecer comida adicional para sapos e morcegos, graças à luz que convida insetos são, também, ótimos refúgios para pássaros e especialmente para morcegos e pererecas, muitos dos quais se mudaram de forma definitiva para a nossa casa.

É impressionante constatar, na vida diária, o impacto humano sobre a natureza. Por exemplo, nosso amor pelos pássaros nos fez plantar uma espécie exótica de frutos muito apreciados, a calabura. Realmente as aves se concentraram nessas plantas e algumas já se reproduzem nos vasos de samambaias da varanda, tamanha é a intimidade. Mas os frutos de calabura também são adorados pelos morcegos que a cada noite chegam para comê-las. Assim, os morcegos cultivaram, através de seus dejetos, vários arbustos de jaborandi provenientes de outro canto da chácara que, ao constatarmos que os passarinhos também as utilizam, não foram eliminadas. Assim, se desejássemos manter as paredes limpas, teríamos de pintar a casa pelo menos anualmente, graças ao enorme volume de excrementos que adornam as paredes externas, pois os morcegos preferem se instalar na casa para comer. Nossa casa virou restaurante do proletariado da ordem dos quirópteros.

Nunca plantamos uma goiabeira na chácara, assim mesmo talvez existam atualmente uns cem pés de goiaba junto à casa ou nas redondezas. Supomos que os pássaros são os responsáveis por esta floresta pouco estética e que, na época da frutificação, concentra qualquer quantidade de mosquito. Tampouco plantamos cítricos no local, mas agora estes proliferam com seus longos espinhos, sendo provavelmente originados dos resíduos das caipirinhas consumidas.

Tem mais. A partir de uma horta de apenas 10 metros quadrados temos observado a proliferação na mata de versões de tomates e alfavacas, entre outras plantas exóticas. Dos poucos vasos de plantas ornamentais trazidos da cidade, surgiu toda classe de ervas daninhas, que chegaram do mesmo modo que os caramujos do meu jardim, ou seja, sem serem convidadas.

Claro que xampus e perfumes foram eliminados, quanto mais não seja pelo ataque das abelhas jataí, mas também para proteger nosso riozinho. A pequena micro-bacia abrange outras propriedades, entre elas uma cujo proprietário explora as pedras de Pirenópolis no próprio leito do rio e outra que se tortura anualmente cultivando milho numa pendente quase vertical. Assim sendo, vemos, a cada chuva, uma overdose de assoreamento. Quiçá seja devido a essas ações que observamos que todas as árvores grandes da nossa mata ciliar estão morrendo paulatinamente.

Assim é a vida no campo de dois ecologistas que querem proteger um pedacinho do tão maltratado cerrado. Mas o pior seguramente é ter de explicar aos netos, de 2 a 10 anos, porque queremos acabar com os caramujos, que eles acham lindos, no nosso jardim na cidade, ao mesmo tempo em que não permitimos que se mate uma cobra na chácara e que protegemos todo e qualquer animal autóctone, mesmo que seja sapo, perereca ou morcego. Que estamos extirpando a braquiária e que não permitimos que se tire uma planta nativa.

São dois desafios parecidos: como proteger realmente, com a nossa presença e tudo o que ela significa de impacto ambiental, um resquício de cerrado e como, ao mesmo tempo, não parecer incongruente para um neto de 2 anos apenas.

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