Colunas

Amazônia e xenofobia

Políticos querem proteger a natureza contra o interesse estrangeiro, mas se esquecem que a Amazônia é multinacional. Inimigos internos são mais ameaçadores.

8 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Faz-me rir sempre quando leio, vejo ou ouço dizer que os países do primeiro mundo já destruíram seus ecossistemas naturais e agora querem impor a nós, brasileiros, restrições de uso dos nossos recursos naturais, em especial na Amazônia. Parece que até mesmo o Itamaraty esquece que a Amazônia pertence a oito países e muitas das espécies vegetais e animais que ocorrem na região, ocorrem nos países vizinhos e até mesmo em outros tão longínquos como Costa Rica e o sul dos Estados Unidos da América. Rio, ainda mais, cada vez que um obscuro deputado do baixo clero procura ganhar fama, denunciando os mais estapafúrdios complôs dos países ricos contra o Brasil para roubar as riquezas da Amazônia.

Esta xenofobia com relação à Amazônia já parte de um princípio errado, pois se países do primeiro mundo arrasaram grande parte de seus ecossistemas naturais primitivos, vêm fazendo, desde os tempos de Napoleão Bonaparte e dos imperadores austro-húngaros e em especial desde o último século, um esforço gigantesco para recuperar suas florestas e aumentar suas áreas naturais ou semi-naturais. Pagaram e pagam muito por isso. Muitos deles já conseguiram, em termos de extensão de florestas e até de unidades de conservação versus extensão territorial, ter índices bem melhores que o nosso. Conseqüentemente, o pretexto de que esses países não podem ensinar-nos nada é falso e pior ainda é pretender justificar a destruição da Amazônia com a meia-verdade de que eles já usaram à exaustão seus próprios recursos para se desenvolver.

A velocidade com que estamos devastando nossa natureza é o que mais assusta. Os europeus, por exemplo, destruíram a sua ao longo de dois a três mil anos de história, começando antes das grandes culturas grega e romana e acelerando-se depois, com as necessidades da conquista dos oceanos. Finalmente, aprenderam a lição de que é preciso preservar seus recursos naturais e tomaram as medidas adequadas que os fatos atuais demonstram. Mas, em nosso caso, quem teve o privilégio de conhecer a Mata Atlântica ou o Cerrado há trinta ou quarenta anos, presenciou sua avassaladora destruição.

Agora é a hora e a vez da Amazônia. Nós, sul-americanos (pois em matéria de aniquilação estamos iguais aos nossos vizinhos), devastamos em menos de um século, especialmente nos últimos 40 anos, muito mais natureza que qualquer outra civilização no planeta. Como no futebol, embora ao longo da história da humanidade, somos indiscutíveis líderes mundiais da destruição de florestas. E nós estamos no século XXI, fazendo aquilo que os diplomatas reiteram muitas vezes com relação ao primeiro mundo: acabando com tudo. Eles têm dito que não querem que a Amazônia se transforme no jardim botânico do mundo. Oxalá se transformasse. Seria muito mais inteligente para o futuro de nossa espécie e de muitas outras. Ao invés de se queimar e arrasar, redistribuindo miséria e injustiça, seria melhor deixar essa região como está para que nossos descendentes, talvez mais sábios, possam aproveitá-la sustentavelmente.

A balela de que outros países estão muito interessados nos recursos genéticos da nossa biodiversidade esbarra no argumento acima mencionado. Os outros países donos da Amazônia também os detêm. E entre esses países existem os que não têm nenhuma lei ou capacidade de controle da exploração do patrimônio genético natural e os que sabem que a biodiversidade tem pouca utilidade se é desconhecida. Por isso, ao contrário do Brasil, facilitam a pesquisa científica na Amazônia. O resultado é muito simples: quem quer roubar o patrimônio genético natural da Amazônia não precisa vir ao Brasil. Para isso existem Guiana e Suriname. E não se deve esquecer que a França tem um departamento de ultramar na Amazônia, aberto a todos os pesquisadores da Comunidade Européia. De outra parte, quem quer estudar seriamente a biodiversidade, sem risco de ser preso por biopirataria, pode ir a qualquer dos outros cinco países, onde os cientistas estrangeiros são recebidos com os braços abertos.

Igualmente pouco evidente é a viabilidade de satisfazer a expectativa de que os recursos genéticos da Amazônia vão garantir uma vida melhor para as comunidades locais e indígenas. O problema de pagamento de royalties é inacreditavelmente complexo e sua aplicação é quase utópica. Talvez, se aplicado esse princípio, nós tenhamos que pagar mais royalties do que receber.

Até mesmo para termos um turismo receptivo expressivo na Amazônia, há que se vencerem muitas barreiras. Não é brincadeira competir, por exemplo, com os países que detêm a Amazônia Alta, com relevo acidentado que oferece mais belezas cênicas ou que, como o Peru, combinam em uma viagem só o patrimônio arqueológico com o natural. É bom lembrar que a famosa Machu Picchu e muitas outras cidades pré-hispânicas do Peru, Colômbia e Bolívia estão na bacia amazônica. Antes de desenvolver o turismo receptivo na Amazônia é preciso enfrentar as doenças tropicais, que assustam visitantes, em especial os estrangeiros. Dispor de infra-estrutura adequada, principalmente nos Parques Nacionais, que são as áreas mais belas que já estão protegidas; treinar pessoal para a hotelaria e demais atendimentos e controlar o banditismo, entre tantos outros problemas. A Amazônia do Brasil tem, sem dúvida, um potencial turístico muito importante, não obstante esteja diretamente oposto ao desmatamento massivo em curso. Nenhum turista que ficou parado por vários dias, esperando avião num aeroporto fechado pelas fumaças das queimadas, vai voltar ao país. Menos ainda se suas malas são reviradas pela polícia à procura de uma borboleta ou de uma folha ou flor seca.

O que se quer dizer é que não significa que não exista cobiça internacional sobre os recursos da Amazônia. Existe, sem dúvida, muito interesse nos recursos minerais que, de outra parte, estão sendo explorados por empresas internacionais e sem muitas restrições no Brasil ou em outros países. Existe interesse nos hidrocarbonetos que o Brasil ajuda a explorar na Amazônia dos países vizinhos. Há, ainda, interesse nos recursos potenciais da biodiversidade. Mas, neste aspecto, o interesse pode ser dirigido a qualquer outro país, com regras menos absurdas. Apenas com caráter de excepcionalidade, poderia existir alguma espécie exclusiva do Brasil que obrigue os interessados a enfrentar as draconianas normas. Não obstante, a verdade é que o principal interesse internacional na Amazônia é pela sua conservação como último reduto natural tropical do planeta e pelos serviços ambientais que ela presta. Os países desenvolvidos, reconhecendo seu erro no passado, recomendam aos países em vias de desenvolvimento não repetir os mesmos erros. Grande parte dos cidadãos desses países está disposta a pagar pela conservação da Amazônia e o Brasil é o país da América Latina que mais doações recebeu, na última década, para fazê-lo. Creio ser legítimo pedir mais, muito mais dinheiro, para salvar a Amazônia. O que não julgo correto, nem inteligente, é dizer que nós temos o direito de acabar com nosso futuro porque outros cometeram o erro, séculos e milênios atrás.

Não acredito mesmo que haja um resquício de perigo de se perder a soberania nacional na Amazônia. Os problemas com os países vizinhos já foram há muito superados e a defesa de nossos limites é inconteste. Penso que este é um outro argumento fajuto para justificar-se a contínua “ocupação, através do desenvolvimento sustentável”. Pena que este desenvolvimento sustentável esteja muito longe da realidade. O que se vê são os incêndios, as estradas rasgando as matas, as hidroelétricas, a extração de madeiras, o comércio ilegal da fauna silvestre, um completo abandono das unidades de conservação do Poder Público. Poucos são os projetos desenvolvimentistas de menor impacto ambiental. Poucos são os turistas. Pobre é a infra-estrutura receptiva. Pobre é a cabeça daqueles diplomatas que querem defender a Amazônia de ataques fantasmagóricos, através de maior uso ou leia-se maior devastação.

Em conclusão, os argumentos xenófobos para justificar a destruição cada vez mais acelerada da nossa Amazônia são apenas pretextos para garantir o lucro indecente de poucos, em detrimento dos pobres da Amazônia, índios, ribeirinhos e de todos os brasileiros. Esses poucos incluem muitos dos grandes fazendeiros, a maior parte das empresas madeireiras da Amazônia, os grileiros grandes e pequenos, os empresários que financiam os garimpos, os narcotraficantes e, claro, muitos dos políticos, como esses que agora propõem criar estados novos na Amazônia, com o exclusivo propósito de lucrar. Quem tem inimigos internos tão poderosos e mesquinhos não deveria se preocupar com quiméricos inimigos externos.

Leia também

Reportagens
12 de novembro de 2024

Um Parque Nacional da Tijuca que poucos conhecem

Por oito anos, o fotógrafo de natureza Vitor Marigo se dedicou a fotografar lados pouco conhecidos do parque nacional mais visitado do país, resultado do trabalho pode ser conferido em novo livro

Podcast
11 de novembro de 2024

Entrando no Clima#31 – Mais uma COP do Clima começa em berço de petróleo

Podcast de ((o))eco começa a cobertura da COP29 diretamente de Baku, no Azerbaijão

Colunas
11 de novembro de 2024

As COPs sob o jugo do petróleo

Estamos revivendo nas COPs a velha fábula da raposa no galinheiro, onde os países mais envolvidos com a produção de petróleo sediam conferências climáticas em que um dos grandes objetivos é justamente eliminar os combustíveis fósseis

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.