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Fogo, parte dois

Dois dias depois de publicada a coluna sobre queimadas, o cerrado preservado em nosso sítio foi destruído pelo fogo. Coincidência ou crime, só me resta chorar.

14 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Na minha penúltima coluna em O Eco, eu falei sobre o fogo, ou melhor, sobre os reais motivos e métodos dos incêndios florestais, tentando desmistificar a voz corrente da propaganda enganosa que passa a idéia que o fogo é muito mais casual do que na realidade é. A matéria entrou no ar num domingo, e na terça meu marido e eu viajamos para o exterior. Coincidência ou maldade, naquela terça-feira queimaram nossa chácara de apenas 50 hectares, que vínhamos com enorme sacrifício tentando proteger, principalmente do fogo, este vilão destruidor.

Foram doze anos sem incêndios, desde que compramos as terras. A mudança na paisagem foi tão grande que os que conheceram o sítio anos atrás não conseguem reconhecê-lo. Onde só existiam gramíneas ralas apareceu uma floresta e em alguns lugares densa. A diversidade de plantas tinha se multiplicado várias vezes. As árvores maiores das matas ciliares tinham se regenerado e já tínhamos alguns pequenos animais silvestres, especialmente tatus, macacos, preás, perdizes e codornas, que lá encontravam comida e abrigo. O solo, devidamente coberto, mantinha a umidade por longo tempo, favorecendo o verdor da paisagem. Os cajus silvestres, cobertos de flores e frutos incipientes, anunciavam uma coleta excepcional. Mas tudo isso acabou.

Ainda não fui ver os estragos. Estou como Ari Barroso, que, quando transmitia um jogo de futebol de seu time predileto e este tomava um gol, dizia: não quero nem olhar. Meu marido já me disse que hoje teremos de ir lá ver os estragos, mas eu não quero nem olhar, pois sei que vou chorar. Chorar pelas árvores que não mais terei a chance de ver, mesmo que viva mais duas décadas, chorar pelos animais pequenos, mas importantes para mim e para aqueles que apreciam a natureza; chorar pelas flores, orquídeas rasteiras dos cerrados e pelos ovos dos pássaros torrados nos ninhos ou no solo. Sei que não vou chorar pelos prejuízos econômicos, como a destruição das cercas e sinais, ou a queima dos canos que transportavam água de nossas próprias nascentes para nosso uso. Mas vou ainda chorar pela insensibilidade de quem cometeu este ato, pela ineficiência das autoridades e pelo descaso dos bombeiros, que chamados pelo caseiro não quiseram ir apagar o fogo.

É sempre voz corrente por aqui, como de resto em todo o centro-oeste, que o cerrado “agüenta os incêndios” e são muitos os meus conhecidos que me consolam: “O cerrado voltará depois com as chuvas”. Acontece que eu sei que não vai voltar como era nos próximos anos ou décadas. A cinza será lavada e algumas plantas rebrotarão valentemente. Mas, por anos, a roupa ficará manchada pelas cortiças carbonizadas e, claro, muitas árvores terão morrido irremediavelmente, ao contrário do que o pessoal quer acreditar, para desculpar sua inércia. Assim é que a aparência pode melhorar sim, mas muito do que existia não voltará nem nos próximos anos e algumas outras nunca mais. A paisagem jamais será a mesma.

Destruir-se somente 50 hectares, quando os jornais noticiam os enormes incêndios florestais de Portugal, que destruíram dois terços das matas daquele país, ou quando no Peru leio que 50.000 hectares de matas foram queimados em poucos dias, pode parecer pouco. Meu sofrimento pode parecer frescura de uma ambientalista conhecida como radical, mas deixem-me pelo menos lamentar, pois aquele era meu mundo, meu paraíso e não foi fácil construi-lo. Viver em Pirenópolis foi uma decisão mastigada por anos e a esperança de ter um pedaço do cerrado protegido parecia ser uma missão e um gozo, principalmente porque estamos em uma APA, que circunda o Parque Estadual da Serra dos Pireneus e que, na teoria, deve ser sua zona de amortecimento.

Conservar a natureza, ou apenas achar gente que compreenda que isso é importante, não são coisas comuns por aqui. Ao contrário, são muito raras. A tal ponto que os que vão visitar o sítio não conseguem entender por que não temos cavalos, galinhas, porcos ou vacas. Não compreendem tampouco porque gastamos para proteger o cerrado, em detrimento de plantar seja lá o que for, mas pensam seguramente mais nas frutíferas, comuns em chácaras do interior. Quando dizemos que nós e também os animais silvestres gostamos mais das frutas nativas como cajuí, mangaba, pequi, gabiroba, buriti, jatobá, nos olham como se estivessem conversando com loucos. Tampouco compreendem por que não deixamos matar cobras, ou como conseguimos conviver com sapos, morcegos, aranhas e os inevitáveis carrapatos.

De outra parte eu não consigo compreender por que essa gente ou seus familiares, que a cada ano entram de forma descarada na nossa propriedade para roubar as frutas nativas ou arnicas, o que toleramos com simpatia, são os mesmos sujeitos que a incendeiam. Será que não conseguem dominar seus impulsos incendiários? Ou são tão cegos que não percebem que as queimadas que provocam destroem suas possibilidades de fazer negócio vendendo frutas em conserva de doces aos turistas?

Não sabemos enfim se o incêndio do nosso sítio Jatobá Já-tá-aí foi colocado ou se “pulou” de outra propriedade devido ao forte vento e à baixa umidade relativa do ar, aliados à grande biomassa seca que lá tinha se acumulado durante os últimos anos. Só estamos estranhando a coincidência dos dois fatos ditos: a matéria do O Eco sobre o assunto e a viagem no mesmo dia ao exterior. Se nós desconfiamos é porque sabemos que não somos benquistos pelos destruidores, que até de morte já nos ameaçaram. Por mais que se fale em educação ambiental ou em proteção das matas, bichos e águas, poucos ajudam aos que querem salvar bichos e plantas das queimadas comuns por aqui nestas épocas do ano.

Pirenópolis e seus arredores são uma das mais ricas áreas em biodiversidade dos cerrados. Mas esse título pode ser citado em tempo pretérito, pois o uso contínuo e indiscriminado do fogo deixa suas marcas indeléveis, quer seja na evidente diminuição de indivíduos da fauna silvestre, ou no empobrecimento de suas outrora belas paisagens, principalmente das veredas com grandes buritizais e belas araras e papagaios. E não falamos hoje das pedreiras que corroem as montanhas, nem das urbanizações sem controle que acabam com as paisagens.

Sentir tanto a destruição de apenas 50 hectares pode parecer egoísmo, e talvez o seja perante tanta tragédia que o mundo vive, mas eu acredito que a maioria destas tragédias poderia ser evitada se os seres humanos, cada um e também coletivamente, respeitassem mais a natureza e a destruíssem menos.

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