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Uma heroína diferente

Para ajudar o meio ambiente não precisa gostar de mato. Muito trabalho pode ser feito na cidade. Em Brasília, uma heroína é prova disso há mais de 30 anos.

14 de dezembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

A conservação da natureza é feita, no campo, por heróis, verdadeiros soldados desconhecidos, em especial esforçados guardas parques que, esquecidos e maltratados pelas autoridades, lutam dia a dia enfrentando todo tipo de dificuldades, com a única recompensa de um mísero salário. Mas, hoje, contrariando o anteriormente dito, quero falar de uma heroína que detesta o mato, tem medo de cobras, pererecas ou de qualquer bicho que não seja doméstico e que teve nos últimos 30 anos, e ainda tem um papel fundamental na conservação da natureza no Brasil.

Ela chegou a Brasília, há mais de trinta anos, fugindo de uma mísera chácara do interior de Minas Gerais, em busca de melhores oportunidades. Sem um centavo, carregando a família e também um persistente mal de Chagas, dormiu ao relento durante alguns dias, até conseguir um emprego de empregada doméstica. Sabendo que seu futuro não melhoraria com esse trabalho, amenizou sua vida de doméstica na casa dos seus patrões e, claro, no seu próprio lar, com penosos estudos de português e de datilografia, quando ainda não existiam os benditos computadores. Tão trabalhadora quão inteligente e aguerrida, com seu modesto diploma de datilógrafa na mão, foi procurar emprego no extinto Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e o obteve.

Foi então, nos anos 1970, que tive o prazer de conhecê-la e com ela trabalhar por 18 anos. Não havia melhor datilógrafa na instituição. Não havia nenhum ser humano que trabalhasse como ela. Não importava os horários, os finais de semana, nem tampouco as condições. O seu negócio era ajudar aos técnicos e cientistas que trabalhavam com parques nacionais ou fauna silvestre. Soube fazer com que todos começassem a dela depender, cada dia mais, cada vez mais, pois ela que é diminuta, embora com memória de elefante, tem um enorme e genuíno prazer em ajudar. Não conheço outra secretária que esteja tantas vezes mencionada como participante de planos de manejo de áreas protegidas e de fauna como ela. Quando se busca uma publicação do IBDF ou do Ibama, nos últimos 30 anos, o nome dela ou figura na equipe ou pelo menos nos agradecimentos.

Uma vez resolvemos sortear, entre o pessoal administrativo, uma viagem ao Pantanal. Qual não foi a alegria da equipe quando ela ganhou. Eu era sua chefa na ocasião e fiquei ansiosa para saber o resultado do passeio ao Pantanal. Quando regressou todos queríamos saber quanto ela havia usufruído das oportunidades de conhecer aquele magnífico bioma, com todos seus interessantes e fartos bichos. “E então, como foi a viagem?” perguntamos. “Cruz credo, doutora, que fim de mundo. Fiquei morrendo de medo das cobras e dos bichos. Nunca mais volto lá!”

Não que ela não compartisse nosso amor por áreas remotas ou pelos bichos, mas à distância. Até escrevia todos os nomes científicos, sem erros. A verdade mesmo é que nem em chácaras ela gosta de ir. Sua vida é a cidade. Mas como ajudou e como ajuda a causa ambiental! Fez trabalho gratuito para muitas organizações não governamentais e não mede esforços para ajudar até hoje todos os técnicos e cientistas que conheceu. Mantém o endereço de todos. É um arquivo ambulante. O que se necessita é só perguntar para ela. Sabe tudo e quem é quem na área ambiental. Sofre com os acidentes, com as mortes, com as injustiças de que são vítimas os ambientalistas. Sofre com os desastres ambientais. Detesta o mato, mas o protege como pode. Briga pelos parques nacionais e pela fauna silvestre, como se tivesse enorme intimidade com o assunto. Ela acredita na causa ambiental, embora acredite principalmente na causa de seus amigos ou colegas.

Suas virtudes muito conhecidas fizeram dela a secretária mais cotizada do Ibama. Tanto assim que o inevitável aconteceu. Foi designada secretária da Presidência. O normal é que as secretárias da Presidência cheguem a essa posição com um presidente e que saiam com ele, às vezes até devem sair da instituição. Pois é lá novamente que essa moça baixinha, briguenta, com bom humor quando é necessário, é secretária. Foi de todos os presidentes que passaram pelo Ibama. Os teve de toda cor, sexo e partido político, muito diferentes uns dos outros, porém nenhum a dispensou, pois ela é indispensável. Nessa posição, se confirmou como uma mestra da discrição, própria de uma secretária de primeira, absolutamente imprescindível para todos os chefes para os quais sempre demonstrou lealdade sem limites e, acima de tudo, é uma fada protetora evitando que os superiores caiam em armadilhas tão comuns nas altas esferas da política. Dessa posição ela tem realizado muitos serviços para a causa ambiental que só suas memórias, que oxalá escreva, poderão um dia comprovar.

Essa moça saída da roça, pobre, enferma e sem educação, arrastando sua família, demonstrou o que a vontade de triunfar na vida e a falta de preguiça, podem fazer. Ela é um exemplo para tantos que crêem que a sociedade lhes deve muito e que esperam sentados ajuda divina ou governamental. Pior, ainda, que com o pretexto de serem miseráveis, roubam sabendo que a impunidade domina. Hoje ela tem além do respeito e da gratidão de tantos, um patrimônio, uma ampla e feliz família e já entrando na terceira idade, não dá o braço a torcer. Casou-se outra vez recentemente. Tem sérios problemas de saúde, mas só se preocupa com os problemas de outrem. Seu nome? Creuza Ramiro.

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