Colunas

Fogo apagou

Começa este mês a temporada de fogo no Cerrado. Outra vez hectares inteiros vão queimar, animais vão fugir, morrer, árvores vão virar carvão. Para quê?

9 de maio de 2006 · 19 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

Sempre me desperto com o canto de indivíduos desta espécie de pomba: a “fogo apagou”. Ela não é nem muito madrugadora, nem tardia. Começa a cantar lá pelas 06:30 horas, com precisão militar. O ornitólogo brasileiro Paulo Zuquim Antas diz que elas gostam muito das horas quentes dos dias. Segundo Helmut Sick, um famoso especialista em aves, elas vivem no campo seco, cerrado e jardins. Eu também vivo no Cerrado e minha casa tem um jardim cheio de plantas. Meu companheiro acorda com o “bem te vi”, ou seja, um pouco mais cedo. Mas hoje quando a “fogo apagou” começou a cantar, me lembrei exatamente da ameaça que a cada ano, a partir destes dias, passa a dominar o Cerrado: o fogo.

Preocupo-me justo agora, a época mais bonita do bioma, pois começando a seca concomitantemente começam os incêndios. O Cerrado está no seu esplendor. Verde ainda e com os pepalantus, sempre vivas, canelas de emas e muitas outras plantas, todas floridas mesclando o branco com o lilás, o rosa de leguminosas e o amarelo de compostas e de outras leguminosas como as cássias. É a explosão da vida e de toda biodiversidade do Cerrado. Embora muito da fauna já tenha desaparecido pela destruição dos seus habitats, ainda se vê tucanos, seriemas, papagaios, saíras, sanhaços, japuíras e muitas outras belas aves. Já mamíferos são bem mais difíceis de serem vistos, a não ser os mais promíscuos, como o macaco prego, os sagüis e outros que tais. Cobras e serpentes, pelo contrário, são bem comuns. Por duas vezes encontrei belas cobras no meu quarto de dormir. No sítio que temos, sempre tropeçamos em algumas. A maioria não venenosa, mas que dá certo calafrio, isso dá! Na natureza é sempre assim: as espécies mais sofisticadas são mais raras e mais ameaçadas. Já as vulgares, as mais sem vergonha têm mais chances de se adaptarem às mudanças de habitats proporcionadas pela nossa espécie. Os rios e demais corpos de água estão translúcidos, os poços das cachoeiras verdes ou azuis convidando-nos a um banho bem geladinho em dia muito quente e seco. Dizem as más línguas que faz muito bem para a saúde, sempre quando não se comparta a água com uma jararacuçu.

Toda esta beleza de um cerrado razoavelmente bem protegido aonde a soja ou o algodão ainda não chegou prenuncia a catástrofe anual, tão inevitável e precisa como o canto do “fogo apagou”: os incêndios colocados pelos ignorantes e mal intencionados. Aí tudo se transforma. A luta contra o fogo no Cerrado é na maioria das vezes inglória; pior, ela é perdida de antemão ou antecipadamente frustrante. Mesmo quando alguns abnegados conseguem apagar alguns focos de incêndios, outros surgem, graças ao vento inocentemente perverso. Não há esforço humano capaz de deter o fogo colocado por outro ser humano quando usa sua inteligência maldosa.

É tão triste ver a fumaça e o fogo consumindo a vegetação, os animais silvestres correndo ou morrendo calcinados, os outrora imponentes buritis tostando, as flores se acabando, bem como a cor negra resultante do espetáculo pirotécnico, que então predomina sobre todas as demais. No ano passado, nestas mesmas páginas, descrevi a destruição da minha pequena porção do Cerrado. Muitos me falaram que não me preocupasse que em poucos meses nem daria para ver o rastro do fogo. Hoje sei que eles são mentirosos ou são muito pouco observadores. Não menos de 30% das árvores de meu Cerrado protegido durante dez anos simplesmente morreram, para sempre. Jamais rebrotou como os ignorantes me diziam. Pior ainda, o “fogo apagou” é quase o único pássaro que sobreviveu ao desastre e que ainda prolifera na parte queimada do meu sítio. Os outros não se recuperaram da desgraça.

Como já é muito bem sabido e divulgado, o Cerrado está acabando para dar lugar eminentemente à agricultura de grãos, em especial à soja. Quando os agricultores e fazendeiros agora dizem que estão abandonando os plantios de soja pelo baixo preço do dólar a gente se pergunta: porque então tudo foi destruído, poluído, violentado? Porque o Cerrado tem somente 2% de sua extensão em áreas protegidas? Porque se deixou que em três décadas 2/3 desse importante bioma fossem arrasados? E a gente se pergunta mais: onde estão as belas araras que a gente via sempre quando viajava no cerrado? E os lobos guarás, os catetos, os veados, os tatus, as pacas, os coatis, as iraras, os tamanduás, as emas e seriemas e até os felídeos, onde estão? Será possível que vamos ter de ir a jardins zoológicos para ver estes bichos que eram bem comuns há poucos anos?

Porque, se parece que o brasileiro gosta tanto da natureza, ou pelo menos de vê-la na televisão, não há uma reação popular a tanta e tão célere destruição? Se nem as legislações de áreas de preservação permanente e da reserva legal são obedecidas pelos agricultores e pecuaristas, por absoluta inércia ou falta de recursos humanos e financeiros das agências governamentais e ninguém ou quase ninguém paga ou responde por isso?

Os avisos da natureza que as coisas andam muito mal estão muito evidentes agora. O efeito estufa e as mudanças climáticas provocados por atividades humanas como a queima de combustíveis fósseis e os incêndios em geral, já estão assustando a humanidade e provocando grandes desastres naturais. Não obstante, as queimadas continuam e agora é a época do início das mesmas, até as próximas chuvas.

Como eu gostaria que o canto da pomba “fogo apagou”, além de me despertar todas as manhãs, fosse realmente um presságio que os focos de incêndio tivessem sido apagados. Oxalá assim fosse, para que a vida das plantas e animais nativos continuasse seu rumo, sem ser interceptada pelo fogo tão terrífico quanto estúpido.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.