Colunas

Quem conserva as florestas tropicais?

Sob o pretexto de defender os direitos indígenas, artigo ataca as reservas ambientais. Na verdade, ambos são vítimas da ganância econômica e do caos social.

6 de janeiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Um artigo de White, Khare e Molnar (2005), que discute o tema da propriedade das florestas (Who owns, who conserves and why it matters ou “Quem é dono, quem conserva e por que isso importa”) assinala que cerca de 377 milhões de hectares de florestas de países em desenvolvimento (22% das florestas desses países) estão atualmente em poder de comunidades indígenas ou tradicionais, como donos ou como administradores, e aponta o fato de que a tendência de repassar as florestas públicas a estas populações incrementa dia a dia.

Os autores estimam que para o ano 2015 essas comunidades possuam ou administrem de 700 a 800 milhões de hectares. Evidentemente a maior parte dessas florestas está e estará na América do Sul, especialmente na Amazônia. Apenas no Brasil, somando as terras que já estão em poder de indígenas, as reservas extrativistas, os assentamentos extrativistas e as reservas de desenvolvimento sustentável, já se alcança a metade de toda a extensão de florestas atualmente em poder de comunidades indígenas e tradicionais de países subdesenvolvidos. E a isso devem se somar as grandes extensões de terra indígena de Colômbia, Peru, Equador e Bolívia.

Conseqüentemente, não cabe duvidar que grande parte do futuro das florestas dos países em processo de desenvolvimento, em especial das florestas tropicais, está e estará cada dia mais nas mãos dos povos indígenas da América do Sul. Esse é um fato indiscutível e que justifica a outorga da máxima atenção dos governos e das agências internacionais, assim como das organizações não-governamentais. O próprio autor desta coluna tem reconhecido esse fato em inúmeras publicações, inclusive neste mesmo jornal.

Meias verdades

Não obstante, no citado artigo existem muitas outras afirmações, assim como uma tendência geral, que não resultam tão aceitáveis. As afirmações são, resumidamente: (1) que de 1 a 1,5 bilhões das pessoas mais pobres do mundo vivem em ou ao redor dessas florestas (80% das quais com menos de US$ 1/dia); (2) que os direitos humanos e a propriedade dos habitantes dessas florestas são minimizados ou negados; (3) que a natureza “não é natural” e que, pelo contrário, é fruto de milênios de intervenção humana; (4) que os governos não foram eficientes na proteção das florestas, nem sequer nos seus “parques de papel”; (5) que as comunidades indígenas preservaram as florestas bem melhor que os governos; (6) que os indígenas gastam mais dinheiro que os governos para defender as florestas. Concluem invocando que se passem as florestas aos grupos indígenas, que se reorientem os investimentos nacionais e internacionais para essas terras, onde se deve continuar promovendo o aproveitamento sustentável dos recursos. Ainda que não esteja claramente escrito, todo o texto se orienta evidentemente a sugerir que as áreas protegidas pelos estados não servem para nada e que devem ser entregues aos indígenas que as cuidaram melhor.

Como sempre, as piores mentiras são as meias verdades. Além disso, neste caso, existe uma abusiva generalização para a América do Sul de fatos que podem ser válidos para Ásia, África ou América Central, mas que não refletem a realidade regional. Na América do Sul não existem de “1 a 1,5 bilhões” de pessoas morando nas florestas ou ao redor delas. Toda a população da Amazônia não deve superar, generosamente falando, 50 milhões de habitantes e a maior parte deles (80% ou mais) é de residentes urbanos. E, diga-se de passagem, em todos os países do mundo tropical, os que vivem “ao redor das florestas” são os piores inimigos dos nativos e das suas florestas. Os indígenas das florestas, o tema de fundo do artigo, somando os dos oito países amazônicos, quiçá totalizam 3 milhões de pessoas. Os habitantes tradicionais (ribeirinhos e extrativistas, embora pelo menos os primeiros nunca tenham cuidado da floresta) podem representar, generosamente, outros 5 milhões.

De outra parte, isso de que os povos da floresta são os “mais pobres do planeta” também se presta a muita confusão. Os indígenas, claro, são pobres porque na sua grande maioria não têm ou têm muito pouco dinheiro. A pobreza, no caso indígena, não pode ser medida em termos de dólares/pessoa, pois sua qualidade de vida é, em grande proporção, independente do dinheiro. Os índios que mais cuidaram da floresta, em geral, nem precisaram de dinheiro para fazê-lo. Suas terras são cuidadas pelo isolamento e nelas se vive como séculos atrás. Os outros precisam de cada vez mais dinheiro na mesma proporção em que seus contatos com a maioria nacional, e a sua dependência dela, aumentam. Mas, quanto mais dinheiro eles têm, menos protegem suas florestas. Os índios totalmente aculturados não dependem mais da floresta e tampouco cuidam dela.

O argumento de que os direitos humanos e a propriedade dos povos indígenas não são respeitados fica destruído pela própria informação que os autores reuniram. De fato, no Brasil, por exemplo, menos de 900.000 indígenas (uma porcentagem significativa dos quais são urbanos), possuem muito mais de 100 milhões de hectares (ou seja, mais de 100 hectares por pessoa de qualquer idade ou sexo) com riquezas consideráveis que incluem muita terra fértil, madeira, minérios e outros recursos naturais. É verdade que no passado foram perseguidos e maltratados e que ainda poderiam ser mais bem tratados, mas, há duas décadas, são a minoria mais favorecida do país. Exatamente a mesma situação ocorre nos outros países da América do Sul.

O seguinte argumento é o bem conhecido e pouco científico reclamo de que as florestas naturais de hoje têm sido manipuladas pelo ser humano por milênios. Esta teoria, que foi criada a partir da constatação de que as selvas de Yucatan, no México, sofreram intervenção pelos Maias, são quiçá válidas para os lugares onde se desenvolveram grandes culturas, embora, como numerosas pesquisas demonstraram, não pode ser generalizada, por exemplo, para a Amazônia como um todo. De outra parte, concluir através desta teoria que a presença humana, dependente da substituição ou da exploração da floresta, é favorável para a mesma, é simplesmente absurdo.

O quarto argumento é que os governos e suas agências não foram eficientes para conservar a floresta. Isso é uma verdade irrefutável, como fica demonstrado pelo avanço do desmatamento. Não obstante, deve-se diferenciar, como foi feito por vários autores, entre a eficiência das áreas protegidas de uso indireto (ou unidades de conservação de proteção integral) e as unidades de conservação de uso sustentável, como as florestas nacionais e as reservas extrativistas ou, em geral, com a situação do desmatamento nos países subdesenvolvidos. Feito isso, fica evidenciado que, apesar de que as áreas protegidas de uso indireto estão mal cuidadas pelo poder público, elas estão quase intactas em termos de desmatamento, se comparadas às de uso sustentável ou às florestas em geral. Os autores, como argumento, citam uma tese de pós-graduação que teria comparado 80 reservas indígenas com 19 áreas protegidas na Amazônia brasileira, encontrando que não existe diferença significativa no desmatamento entre ambas, o que de fato seria um resultado neutro. De outra parte, não foi possível saber quais são as categorias de “áreas protegidas” incluídas nesse trabalho, pois, como é bem conhecido, algumas das categorias nacionais não preservam nada.

O último argumento esgrimido nesse artigo é que as comunidades indígenas investem tanto ou mais na preservação e no manejo sustentável das florestas que os governos e que a cooperação internacional juntos. Menciona-se que os nativos investem de 1,3 a 2,6 bilhões de dólares por ano apenas para manejo sustentável. O cálculo, ainda que ousado, tem certo valor. Parte do conceito que o trabalho na proteção (patrulhas) das florestas tem um custo. Existem casos, no México e na Índia, onde isso realmente acontece. Os autores dizem que os índios da Amazônia brasileira economizam para o governo milhões de dólares a cada ano, evitando seu desmatamento. Mas, na verdade, o que limita o desmatamento das terras indígenas na Amazônia é, primeiramente, o fato de que são terras legalmente protegidas (como no caso das unidades de conservação) e que os invasores preferem não assumir o risco de ter confrontos com a autoridade (Funai, Ibama, Ministério Público, judiciário, polícia). Em segundo lugar, essas florestas são freqüentemente defendidas pelo isolamento que as caracteriza. E não se deve esquecer que também são defendidas pela falta de recursos dos índios para investir na sua transformação ou exploração. Qual é, dentro desta gama de fatores, o valor em dólares da “defesa” do território pelos próprios índios? Deve existir, ainda que numa proporção mínima, pois essa defesa só se materializa na medida em que seja respaldada pela autoridade que, de qualquer modo, assume o grosso do custo.

As áreas protegidas podem conviver com os indígenas

Em conclusão, sobre a base de um fato importante e confirmado, ou seja, a enorme e crescente extensão de florestas de países em desenvolvimento que estão direta ou indiretamente em poder dos indígenas devido ao sucesso de suas reclamações, os autores concluem implicitamente que os governos devem abandonar as suas áreas protegidas e transferir toda a responsabilidade de conservar a biodiversidade para os indígenas. Possivelmente os próprios indígenas considerem que isso seria um presente de grego. Do mesmo modo que esse artigo não faz nenhum bem aos justos reclamos dos indígenas.

De outra parte, existe evidência demais sobre o fato de que os indígenas podem conviver perfeitamente, lado a lado, com unidades de conservação de uso indireto. Na América do Sul ainda existe terra para ambas as finalidades que, de outra parte, são coadjuvantes e não competitivas, se existe um mínimo de boa vontade dos dois lados. As áreas protegidas intangíveis devem aportar benefícios tangíveis aos povos da floresta, através do turismo e as terras indígenas, muito maiores em extensão e manejadas sustentavelmente, podem conformar parte dos corredores ecológicos tão necessários para a manutenção da biota. Não há necessidade de destruir umas para manter as outras. O uso, pelos autores, do pejorativo termo “parques de papel” confirma o caráter tendencioso de toda a sua argumentação.

O mais raro do artigo de divulgação comentado é que, após ler tais despropósitos, o autor desta nota foi procurar as publicações originais que deram lugar ao mesmo. Estes trabalhos foram publicados em 2002 e 2004 pela ONG norte americana Forest Trends. Seus autores são os mesmos que em 2005 prepararam o artigo comentado. A primeira conclusão do trabalho de 2004 foi que “Community conservation is clearly not a panacea for biodiversity conservation any more than are public protected áreas” ( “A conservação através das comunidades não é, claramente, a panacéia para a conservação da biodiversidade, não mais que as áreas protegidas pelo estado”). No resto das conclusões, tanto como no texto dos trabalhos, não existe nenhum argumento como os utilizados no artigo de divulgação. Trata-se da descrição de uma situação feita desde uma perspectiva unilateral, embora fique dentro do razoável e, por outra parte, as recomendações são igualmente aceitáveis. No essencial, como corresponde, invocam para se dar mais atenção aos povos da floresta e a ajudá-los a consolidar sua posse da terra e a utilizar melhor os recursos naturais. Em nenhuma parte pretendem demonstrar que as áreas protegidas não são de utilidade ou que não devem mais existir, nem que os indígenas devem ficar como donos exclusivos das florestas e como únicos responsáveis da conservação da biodiversidade. Tampouco invocam governos e outras agências a não dar recursos para as áreas protegidas pelo estado.

Difícil é entender por que os autores de um trabalho importante, que quantifica um problema real e faz propostas sensatas, um ano após, publicam, com base no mesmo estudo, um artigo de divulgação muito promovido, onde no lugar de sisudos argumentos apelam a clichês demagógicos. Assim, sem necessidade, eles se somam aos que decidiram, sem nenhuma evidência social, nem fundamento científico, que o principal inimigo dos indígenas e dos pobres rurais são as áreas protegidas do planeta.

Leia também

Notícias
20 de dezembro de 2024

COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas

Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial

Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa

Reportagens
20 de dezembro de 2024

Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia

Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.