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A nacionalização dos parques nacionais

Bolívia encampará o que por direito já era seu: as áreas protegidas do país. Trata-se de uma bobagem que significa recusar o financiamento internacional para a conservação.

19 de outubro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

O governo da Bolívia pretende nacionalizar, por decreto, todos seus parques nacionais. Também se nacionalizariam todas as outras áreas protegidas que, desde o dia de seu estabelecimento pelo Estado, também eram absoluta e radicalmente nacionais. Essa será uma a mais de tantas nacionalizações redundantes do governo do Presidente Evo Morales que, como bem se sabe, antes de ser eleito para esse cargo, era o líder máximo dos produtores de coca.

Na verdade, a única explicação para esse ato, é o fato de ser Evo Morales um camponês astuto, viciado na política e muito bem dotado nas suas artes, especialmente no uso da demagogia. Assim, para ganhar mais apoio popular fez acreditar aos bolivianos pouco ilustrados que eles não são donos de suas áreas naturais protegidas apesar de que, pela constituição e pelas leis, elas são nacionais e administradas pelo Estado. À primeira vista parece uma jogada inócua, mas, no fundo não é assim.

Estado e governo ausentes

As unidades de conservação da Bolívia, como em muitos outros países da América Latina, eram e são pouco ou mal protegidas pelo Estado. Existe lá, como em todos os países do mundo, uma entidade pública encarregada da administração das unidades de conservação. Ela se denomina Servicio Nacional de Áreas Protegidas (SERNAP), uma dependência do Ministério del Desarrollo Rural, Agropecuario y Medio Ambiente, que como tantas outras na região, tem uma missão gigantesca e praticamente nenhum meio à sua disposição para executá-la. Por isso, desde os anos 1960s, a maior parte dos recursos econômicos para o manejo do sistema nacional de áreas protegidas da Bolívia provem de organizações não governamentais (ONGs) internacionais, dentre elas as bem conhecidas World Wide Fund for Nature (WWF), Conservation International (CI) e The Nature Conservancy (TNC) e, claro, de fundações como Mac Arthur e Moore. Outra porção importante dos recursos das unidades de conservação é a doação de fontes bilaterais, em especial dos EUA, Alemanha, Holanda, Suíça, Canadá, Japão e do sistema da ONU e; às vezes, sob a forma de empréstimos brandos, provem dos bancos multilaterais como o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A porção do financiamento nacional, no caso da Bolívia, é ínfima.

Procurando pretextos

O fato de ser o financiamento do manejo das áreas protegidas essencialmente de origem internacional é o pretexto usado para a sua “nacionalização”. Só que, na realidade, o que é “estrangeiro” é unicamente o dinheiro aplicado nas áreas naturais da Bolívia. As áreas naturais, exceto as poucas que são privadas, são 100% nacionais e sempre estiveram no poder do Estado. Os funcionários das áreas protegidas, excetuando alguns voluntários forasteiros aceitos pelo Governo, são todos bolivianos e obedecem exclusivamente as autoridades do SERNAP, embora, na sua maioria, sejam pagos com dinheiro de fora. É óbvio que essa não é uma situação desejável e é evidente que as ONGs e organizações bilaterais que financiam o sistema exercem influência nas decisões e ações. Mas, na verdade, tal influência se limita ao que é considerado universalmente um manejo razoável e desejável das unidades de conservação, para garantir a sobrevivência de amostras de ecossistemas e da biodiversidade que contém.

O bom manejo de qualquer área protegida, como seu nome indica, passa por evitar que os recursos biológicos da área, que são a sua razão de existir, sejam destruídos pelas atividades humanas, as únicas que podem acabar com a natureza. Consequentemente se evita o desmatamento para se fazer agricultura ou pecuária, se evita ou limita a exploração mineral ou de hidrocarbonetos, as infra-estruturas excessivas, a caça e a pesca predatórias e a exploração florestal anárquica. Também, como é lógico, se proíbe o cultivo de plantas que podem ser usadas como entorpecentes como a coca, o cânhamo e a papoula. E assim se fecha o circuito da explicação de por que o Governo de Evo Morales nacionalizou os parques nacionais. Ele, como líder cocaleiro teve, muitas vezes, que enfrentar as autoridades do SERNAP e do antigo Ministério do Desenvolvimento Sustentável, para facilitar a invasão dos cultivadores de coca nas áreas protegidas. Evo Morales sabe melhor que ninguém, que se o SERNAP não tivesse os recursos econômicos dos “gringos”, hoje todas as áreas protegidas do oriente boliviano estariam totalmente ocupadas por produtores de coca e por outros produtores agropecuários, precedidos pelos madeireiros e seguidos pelos garimpeiros, entre outros invasores.

Evo não está só

Evo Morales tem, obviamente, razões pessoais para não gostar das unidades de conservação de seu país e, por isso, faz o necessário para destruí-las. Mas, deve se esclarecer que ele não está sozinho nessa tarefa. Os camponeses cultivadores de coca, embora na sua maioria sejam andinos e não amazônicos, são considerados indígenas na Bolívia, como o próprio Evo. Assim, a luta pela ocupação das áreas protegidas teve e tem o apoio evidente do socioambientalismo nacional e internacional que, no seu extravio, acredita firmemente ser possível explorar a natureza sem destruí-la. Pior ainda, apregoa que o uso dos recursos naturais é benéfico para a conservação da biodiversidade. Tiraram isso de uma leitura viciosa da utopia do desenvolvimento sustentável e lá vão eles…. Os defensores dos direitos supostos ou reais dos indígenas sobre a terra encontraram o ponto fraco do Governo na proteção das áreas protegidas e, contraditoriamente, se somaram à corrente ultranacionalista, sócio-nacionalista, de Chavez e Morales, acusando gratuitamente as ONGs internacionais de colonialismo e imperialismo.

Não é que as ONGs internacionais sejam santas. O autor desta nota já escreveu nestas mesmas páginas um artigo criticando seu comportamento “transnacional” (Peixes grandes comem os pequenos), mas a acusação de que apenas existem para roubar o patrimônio natural dos indígenas e do povo da região é francamente risível. Os socioambientalistas que, são majoritariamente de esquerda, unem seus argumentos e suas forças aos mais recalcitrantes elementos da direita, esses que vociferam ser a Amazônia cobiçada pelos países desenvolvidos e que atrás de cada doação se esconde uma armadilha. Não podem compreender que existe no mundo muita gente que real e honestamente acredita que conservar a natureza é necessário para o bem estar de todos, começando pelos indígenas. Os socioambientalistas adoraram o apoio que as ONGs internacionais deram para a cruzada de Chico Mendes ou, recentemente, para esclarecer o assassinato da freira Dorothy Stang. Eles não acham que essas ações são intervencionismo. Curiosamente, as ações para conservar a natureza são todas de origem diabólica. Esquecem que o socioambientalismo também é uma invenção de países desenvolvidos, especialmente do império norte-americano.

Diversas ONGs bolivianas felicitam ou justificam a decisão de “nacionalizar” as áreas protegidas nacionais, pois não gostam de “gringaiadas” como são os “corredores de conservação” que unem os “hot spots” e outras iniciativas semelhantes. Pretendem ignorar que essas técnicas ou terminologias que, se preferem podem ser citadas em espanhol, quéchua ou aymara, respondem a novos conhecimentos científicos universais e que têm por única finalidade conservar a tão apreciada biodiversidade. Mais ainda, inventam mil teorias conspiratórias, cada uma mais ridícula que a outra, para sugerir que os doadores de recursos para as áreas protegidas apenas escondem atos de biopirataria. Esquecem que ninguém precisa investir por décadas muitos milhões de dólares por ano, no manejo de áreas naturais, para roubar segredos genéticos da mata. Basta, para isso, sair da Bolívia ou ir para o país vizinho, ou comprar o “segredo” do INBIO da Costa Rica. O roubo de material genético é, na prática, muito mais fácil de fazer que traficar cocaína, que a Bolívia não consegue controlar.

Futuro previsível

Tudo bem. E agora o que? A “nacionalização” das áreas protegidas da Bolívia provocará um corte drástico das doações “imperialistas” que, evidentemente, não será compensado por maiores aportes do orçamento da República, que não tem dinheiro nem para atender problemas do dia a dia. Portanto, a resposta clara é que o plano do Governo é simplesmente a entrega formal, ou de fato, das unidades de conservação aos grupos interessados em ocupá-las, que rapidamente destruíram a natureza restante. Dito de outra forma, a estratégia é aniquilar, provavelmente em poucos meses, o esforço de décadas de muitos bolivianos inclusive dos que, como Noel Kempff Mercado, sacrificaram suas vidas para isso. Transformarão a Bolívia no primeiro país da América Latina a não ter nenhuma ferramenta nas mãos para preservar sua biodiversidade. Mas, a propaganda socioambiental dirá ao mundo que a Bolívia é o primeiro país que conserva a natureza, com o apoio direto das forças vivas da nação….. e o mundo acreditará que isso é verdade, pois assim tudo é mais fácil e quiçá, a Bolívia servirá de exemplo para que as Nações Unidas promovam essa opção em outros países.

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