“Chico” Mendes e Dorothy Stang foram brutalmente assassinados porque os interesses que defendiam se opunham frontalmente aos de fazendeiros locais com poucos escrúpulos. O que estava em disputa era, incontestavelmente, o direito ao uso e usufruto de uma porção de terra. Então, cabe perguntar se o uso a ser dado a essa terra e aos seus recursos, por ambos os grupos de interesse, teria sido tão diferente, transformando uns em protetores da natureza e os outros nos seus inimigos. Qualquer resposta honesta a essa pergunta é que pouca coisa mudaria no destino final da floresta, ou seja, a exploração da madeira seguida por sua conversão a usos agropecuários. Então, porque Chico Mendes virou um herói ambiental de tanta significância no seu país e no mundo e a irmã Dorothy Stang é proclamada, até na CNN e na BBC, como defensora da floresta amazônica?
Chico Mendes não era, nem pretendeu ser, um “ambientalista” até que seus assessores intelectuais (norte americanos e brasileiros) descobriram ser essa a melhor tática a empregar na sua luta contra os fazendeiros, que reclamavam a mesma terra e recursos, para assim receber o apoio das autoridades do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que financiava a construção de uma estrada no Acre. A justificação era curta e grossa: Naqueles dias, onde trabalhavam os seringueiros existia mata, consequentemente “ficava demonstrado que eles a exploravam, conservando-a”. A diretoria do Banco, acusada de contribuir para o desmatamento da Amazônia, favorecer os seus depredadores e preocupada com a sua imagem, decidiu ameaçar o governo com a paralisação do empréstimo se não se atendesse os reclamos. Constatado o sucesso da ação, Chico Mendes, que era um orador notável, passou a explorar o tema ambiental em todas suas intervenções públicas, aportando muito à mitologia da intimidade harmoniosa entre o ambiente e o desenvolvimento social.
O resultado prático da luta de Chico Mendes foi a adoção no Brasil de uma nova categoria de “unidade de conservação”: as reservas extrativistas. Em honra à verdade, as reservas extrativistas não se iniciaram como unidades de conservação. Era uma alternativa tecnocrática que resolvia o conflito, legalizando o uso da terra pelos seringueiros, transformados em “extrativistas”. A idéia, então já aplicada em outros países da América do Sul, era que sob circunstâncias especiais populações indígenas e tradicionais poderiam, com planos de manejo de aplicação supervisada por entidades especializadas do governo, explorar com exclusividade os recursos naturais renováveis diferentes da madeira (por exemplo, borracha e castanha do Pará) e/ou caçar e pescar em áreas públicas definidas e demarcadas, próximas a suas comunidades. Essas áreas eram conhecidas como reservas comunais e nelas não se permitiam populações residentes. Era reconhecido que o outro objetivo dessas reservas era ampliar o espaço vital à disposição de comunidades pobres, garantindo exclusividade de uso dos recursos naturais para elas e, por isso, essas áreas não eram consideradas “unidades de conservação” e, sim, apenas um insumo a mais de uma estratégia de conservação da natureza.
Ou seja, as reservas extrativistas nasceram sem pecado original. Tratava-se de uma estratégia válida em termos sociais e interessantes para a natureza, pois implicava em um freio à expansão desenfreada da pecuária e da agricultura, embora se pudesse duvidar da sua viabilidade econômica e ambiental no longo prazo. O problema surgiu quando seus promotores passaram a advogar sua transformação em unidade de conservação, o que foi consolidado no ano 2000, com a lei do sistema de unidades de conservação que, no mesmo ato, também transformou as florestas nacionais e estaduais em outra categoria de unidade de conservação. As unidades de conservação de verdade são propostas e estabelecidas para proteger a perpetuidade (se possível) amostras representativas da natureza, dos ecossistemas naturais e da biodiversidade contra a ação humana (de quem mais seria?). As reservas extrativistas, pelo contrário, se estabelecem onde existem presença e atividade humana, para resolver um problema social concreto, baseado na exploração direta, sustentável se possível, dos recursos naturais. Seu valor para o objetivo de preservar a natureza é, evidentemente, menor e, é usualmente, apenas temporário.
O anterior fica evidente considerando o que já se observa com as florestas transformadas em reservas extrativistas. Das muitas que foram estabelecidas no Brasil, as mais antigas já perderam amplas porções dos seus territórios para a expansão agropecuária dos próprios extrativistas, que como muitos especialistas previam, mal conseguem sobreviver catando castanha (sem deixar nada para a regeneração das árvores) ou sangrando (muitas vezes até a morte) as seringueiras. Existem provas incontestáveis, visíveis até a olho nu, para quem queira saber a verdade, sobre a situação cada vez menos natural dessas “unidades de conservação” onde, ademais, agora se está tolerando a exploração florestal, obviamente sem manejo efetivo. A caça e a pesca, já não apenas para sustento familiar, têm sido de práxis nessas reservas e, atualmente, a fauna de interesse comercial já foi praticamente eliminada. O apoio do governo federal ou estadual (também existem reservas extrativistas estaduais) tem-se limitado a subsídios generosos e a infra-estrutura social. De fato, na sua maioria, essas reservas não dispõem de plano de manejo e, de qualquer modo, estes não são respeitados. O governo não tem controle efetivo sobre o que acontece nessas áreas. Apesar de tudo é verdade que, se comparado ao que aconteceu em outras áreas sem proteção sequer legal, o que subsiste da natureza está melhor nelas que fora delas. Mas, por quanto tempo?
Hoje, os extrativistas que ganharam a posse da terra que antes exploravam sob a sombra dos fazendeiros têm a certeza absoluta que nunca mais será discutido seu direito a ficar nela. Podem até não cumprir ostentosamente a já tão permissiva legislação, como no caso dos muitos deles que criam gado para comercialização de carne, sabendo que ninguém poderá tirar-los de lá, nem evitar que ano após ano derrubem mais mata que estorva a expansão de pastagens e cultivos. Na prática, estes ex-seringueiros ou, por enquanto, pequenos fazendeiros, são agora os “donos” da terra e, claro, estão politicamente muito bem organizados e preparados para rejeitar, com eficiência, qualquer intenção de por ordem ou aplicar a lei, que limita a expansão agropecuária. Em muitas das reservas extrativistas de hoje já se superou longamente os 20% de desmatamento para fins agropecuários que a lei permite em qualquer propriedade rural da Amazônia. Assim sendo, no final das contas, Chico Mendes foi o artífice de uma grande reforma agrária branca ou branda e é por isso que deveria ser reconhecido e, com sinceridade, também admirado e respeitado.
O caso de Dorothy Stang como ambientalista é ainda mais curioso. Ela nem sequer usou ou abusou de discursos esverdeados, como os que sugeriam os intelectuais que assessoravam Chico Mendes. O objetivo da freira, muito louvável sem dúvida, era ajudar os pobres a viver melhor, vencendo flagrantes injustiças no campo. Ela, como Chico Mendes, era uma lutadora social. Ela queria terra para os sem terra; queria terra “improdutiva” ou “abandonada”, ou seja, com cobertura florestal, para seus pobres. Nada errado tem essa intenção; bem ao contrário, é louvável. Mas, o triunfo das suas idéias não implicaria nenhum beneficio para a natureza ou o meio ambiente. As árvores derrubadas e os ecossistemas transformados em campos de cultivo ou pastagens para gado não sentem, nem apreciam a diferença entre os machados dos pobres e os tratores dos ricos. Apenas morrem irremediavelmente e deixam de dar seus serviços ambientais para a sociedade. Porque, então, Dorothy Stang está virando heroína ambiental?
Os que foram assassinados no Brasil por defender a floresta, tão só em 2006, como Eduardo Marcelino Ventura Veado, em Minas Gerais ou Dionísio Júlio Ribeiro, no Rio de Janeiro, apenas mereceram um breve comunicado nos jornais e, certamente, seu nome nem sequer será dado a uma praça da localidade. Como tantos outros que deram toda a vida para defender o patrimônio natural (oito foram assassinados apenas na mesma unidade de conservação onde Dionísio Júlio Ribeiro trabalhava), não serão reconhecidos como heróis nacionais ou internacionais e não terão manifestações públicas, bandeirolas e depredação de locais públicos, para que a condenação dos seus assassinos seja a máxima que a lei (e a pressão política) permite. O assassinato brutal de Eduardo Marcelino e da sua esposa, disfarçado como acidente, ficou sob a tutela do mesmo assessor da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República que conseguira fazer atender, brilhantemente, o caso de Dorothy Stang, mas que nada obteve no caso do ambientalista. Bem no contrário, não faltaram os pensadores sociais que justificaram a ação dos assassinos, obrigados pela pobreza e a injustiça, a matar para sobreviver, cortando palmito ou caçando muriquis, também já quase extintos, nas áreas protegidas por ambientalistas insensíveis. É exatamente o mesmo critério que transforma as mulheres estrupadas e os seqüestrados torturados em culpáveis das misérias a que são submetidos e que, pelo mesmo artifício, faz dos delinqüentes apenas vítimas trágicas da sociedade.
À margem das vantagens táticas de construir uma imagem de ambientalistas e defensores da floresta amazônica para Chico Mendes e Dorothy Stang, cabe perguntar por que existe tanto empenho nessa pretensão. Obter simpatia e apoio internacional é importante, mas, parece ter algo mais. Provavelmente a resposta seja que o chamado socioambientalismo, tendência agora importante no cenário ambiental, esteja precisando de novos heróis para fomentar suas teorias que incluem a extravagante idéia de que a natureza se beneficia das agressões dos seres humanos, sempre e quando eles sejam pobres. Assim, desmatamentos feitos por populações “tradicionais” e indígenas enriquecem a biodiversidade e mantém o funcionamento dos serviços ambientais. Desmatamentos feitos por ricos destroem a biodiversidade e anulam os serviços ambientais. Essas idéias são agora dogmas que alimentam uma nova teologia que parece estar necessitando também de santos. E não se deve acreditar que isso é uma invenção latino americana. O socioambientalismo tem suas raízes nos mesmos ambientes europeus e norte americanos que são denunciados pelas esquerdas como imperialistas. Nasceu no mesmo berço dos ricos e poderosos que financiam a muitas das organizações não governamentais transnacionais que agora racham suas vestiduras verdes mostrando o vermelho por baixo.
O mundo precisa, sim, de mais pessoas como Chico Mendes e Dorothy Stang. Lutadores como eles, inclusive sem ter sido vítimas mortais da estupidez, merecem todo o respeito e o reconhecimento da sociedade. Eles são heróis, sim, mas não são heróis ambientais. Nem precisam sê-lo.
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