O presidente George W. Bush é um homem sem qualidades e sem atributos marcantes. Isto é perigosíssimo. Esse tipo de gente pode fazer qualquer coisa, inclusive as mais impensáveis. Há dois tipos de lideranças que podem deixar marcas indeléveis na história: as que são capazes de criar condições políticas para que sua sociedade dê um salto de qualidade, mude de patamar na escala das nações; e as que são capazes de perseguir obstinadamente o retrocesso. Bush, nem precisava dizer, se enquadra no segundo tipo. O governante que lidera progressos, sempre articula de forma inovadora as idéias e os recursos de seu tempo, com o olhar no futuro. O mandatário que opera retrocessos retira sua capacidade de mudar a realidade da forma tradicional com que articula os recursos presentes, com o olhar no espelho retrovisor, para restaurar a ordem perdida.
Ambos são tipos fazedores. Nos últimos dias, George W. orquestrou uma série de investidas sobre o meio ambiente, trazendo para esse campo de ação a disposição guerreira com a qual já devastou o Iraque e o Afeganistão, até agora sem colocar nada que preste no lugar. George W. encara tudo que faz como uma guerra. E guerra de destruição, tipo invasão bárbara, que não deixa pedra sobre pedra, porque tem a intenção de colocar outra coisa no lugar. Marcos Sá Corrêa lembrou bem, em nossa conversa editorial dessa sexta-feira, que ele tem os olhos de predador, enfiados próximos ao nariz. Não foram feitos para olhar para os lados, defensivamente, mas para a presa apenas, ofensivamente. O olhar do guerreiro tem a bitola estreita e focalizada. Compatível com as limitações do comandante em chefe. Já o olhar ideológico tem os olhos nas costas. E é dessa forma, olhando ideologicamente para trás e com os olhos fixados na presa que põe diante de sua mira, que George W. vai à guerra.
Robert Musil, em determinado momento, diz o seguinte de Ulrich, seu Homem sem Qualidades, “se lhe dizem que alguma coisa é de um determinado jeito, ele pensará: bom, então provavelmente pode ser de outro jeito”. George W. é assim. O “outro jeito” que ele gosta, é aquele que caracterizou o mundo da Guerra Fria. Só que agora, melhorado, porque sequer tem que dividir o poder com a URSS. Bush é um restaurador. Mas não quer restaurar a velha ordem, como ela era, quer refazê-la, “do seu jeito”, agora sob a hegemonia incontrastável do EUA.
George W. é consistente. Outra característica dos “homens sem qualidades”. Era previsível que após passar o tanque por cima do Conselho de Segurança da ONU, de desprezar a OMC, se voltasse para o Banco Mundial. Era, também, de se esperar, que resolvesse desfazer todos os avanços na área da regulação ambiental, para repor a ordem anterior. Ele vê tudo com o mesmo olhar ideológico e, portanto, com uma visão holística do mundo. Detalhe importante é que o todo, para ele, que pouco conhece do resto do mundo, se resume à sua pátria. O resto terá que se enquadrar no seu todo. Tudo tem que estar sob controle e “do outro jeito”.
Conseguiu que o Senado abrisse o Alaska à exploração petrolífera, fez a EPA, a agência ambiental do EUA, alterar as regras sobre concentração de mercúrio na água e passar a aceitar a mistura da água de esgoto com níveis baixos de tratamento, à água tratada, para ser despejada nos rios e lagos. Indicou para presidir o Banco Mundial o vice-chefe do Pentágono, um dos arquitetos ideológicos da invasão do Iraque, uma das mais toscas operações militares recentes que só pela pura superioridade armada conseguiu devastar e ocupar. Articulada por uma estratégia primitiva, não conseguiu dominar e se retirar. Ficou atolado na “zona verde”, mal controlando o território e perdendo vidas, numa espera que não tem um fim predeterminado. Nem pode ter. Não é exatamente uma operação que recomende seus arquitetos para outras empreitadas que envolvem visão e talento.
As Investidas Ambientais de George W.
O site do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais (Natural Resources Defense Council) faz uma apreciação preocupante desse estilo guerreiro de George W.: “Não importa a força das proteções ambientais da nação, nossas leis e regulações só podem ser efetivas se forem tão protetoras quanto possível e adequadamente implementadas e aplicadas. Infelizmente, a administração Bush tem sido criticada – e com razão – por distorcer a ciência para enfraquecer a regulação, para servir a seus propósitos políticos. As táticas preferidas da Casa Branca incluem a interpretação errônea da informação, ignorar a evidência científica, amordaçar os cientistas e censurar os estudos do governo, remover especialistas independentes dos painéis consultivos federais ou enchê-los de consultores da indústria. Essas táticas não só atropelam proteções ambientais básicas para favorecer a indústria, mas enfraquecem a autoridade da própria ciência”. Por um momento achei que estava escrevendo sobre a CTNBio.
O site cita perto de 50 atitudes do governo do EUA, de 2002 a 2004 – portanto as medidas mais recentes não estão incluídas – que mostram claramente que ele já obteve razoável retrocesso na regulação ambiental em todas as áreas: elementos tóxicos e saúde; água, ar e aquecimento global; terras públicas, parques, florestas e vida silvestre. Ele está mexendo na chamada “legislação administrativa”, que são as regras que regulamentam as leis, feitas pela burocracia e independentemente do Congresso. É onde as principais definições ganham concreção e aplicabilidade. Portanto, a regra que vale e que pode reinterpretar o escopo da lei. Mas, com a maioria que tem no Congresso, a não ser em determinados casos muito gritantes, George W. provavelmente conseguiria fazer as coisas do seu jeito também no front parlamentar. Como aconteceu com a nova regra para o Alaska. Foi um voto apertado, mas vitorioso: 51 a 49.
A artilharia de George W. está mirando em todas as frentes ambientais ao mesmo tempo. Quem achar que é barulho de ambientalista, basta dar uma lida na lista de coisas que já fez. Qualquer pessoa sensata ficaria preocupada. Essas medidas foram todas noticiadas pela imprensa e comentadas por cientistas e especialistas. Mas, como foram saindo no fluxo das rotinas das agências ambientais, umas após as outras, perde-se a noção da cadeia causal. Elas estão saindo porque George W. quer fazer política ambiente “de outro jeito”. Um jeito que põe em risco a população do EUA e do mundo. Michael Oppenheimer, da universidade de Princeton, reagiu da seguinte maneira: “se você acredita em um universo racional, no esclarecimento, no conhecimento e na busca da verdade, esta Casa Branca é um absoluto desastre”. O advogado ambientalista Robert F. Kennedy Jr. escreveu um duro artigo contra a política ambiental do governo Bush, contando inúmeros casos que não podem ser enquadrados no capítulo dos exageros fundamentalistas. Nas áreas de segurança nacional e ambiental, o clima anda muito próximo ao do macarthismo. Quem não se lembra do que aconteceu com a imprensa durante a invasão do Iraque?
No último dia 15 de março, por exemplo, a EPA reduziu as exigências para as termeletréticas a carvão no controle das emissões de mercúrio. Elas, agora, podem comprar “créditos de mercúrio”, desobrigando-se de aumentar os controles sobre o metal tóxico, desde que comprem bônus de quem está reduzindo. Em 2000, a mesma EPA, sob outra administração, considerou emissões de mercúrio por termelétricas são uma “ameaça à saúde pública e ao meio ambiente” e decidiu, por isso, que elas adquirissem a maior capacidade de controle de emissões possível tecnicamente, até 2008. Agora, essa ordem foi relaxada e substituída pelo cupom. O problema, dizem os especialistas, é que as termelétricas são a principal fonte de emissão ainda sem regulação adequada sobre mercúrio. O governo diz que essa medida eliminará, rapidamente, os “hotspots” de mercúrio. Mas não há nenhuma regra no novo enquadramento que remeta aos “hotspots”. Um regulador ambiental republicano, John Paul, que serviu como co-presidente do comitê consultivo sobre mercúrio da EPA, disse ao Los Angeles Times que está preocupado com esses pontos mais críticos: “eu alerto a qualquer um que coma peixe que pegou em lago ou rio perto de uma termelétrica, que ele está correndo risco e essa regra nada fará para protegê-lo, elas pioram as coisas”. Os especialistas reclamaram, do que consideram inaceitável relaxamento das regras, que “desconsidera os riscos para a saúde das crianças e das mulheres criado pelo mercúrio”.
No dia 17 de março, o Los Angeles Times publicou uma matéria contando que cientistas do Centro de Ciências da Saúde da universidade do Texas, em San Antonio, encontraram um alto índice de correlação entre diagnósticos de autismo e presença de mercúrio no ar e na água. Estudando 1200 distritos escolares no Texas, o quarto maior emissor de mercúrio do país, os epidemiologistas descobriram que aqueles distritos com maiores níveis de mercúrio no ambiente, também têm as maiores taxas de educação especial. Cada 450 quilos de mercúrio a mais, estão associados a um incremento de 43% nos serviços de educação especial e 61% na taxa de autismo na população. “O estudo não prova que mercúrio causa autismo”, disse um dos autores, Raymond Palmer, mas dá uma pista que precisa ser investigada a fundo. O Dr. Isaac Pessah, do MIND Institute da Universidade da Califórnia, em Davis, que não participou do estudo, disse ao LA Times que o mercúrio é uma neurotoxina conhecida e que ficou intrigado com uma correlação tão alta, “significando que há uma relação forte e direta entre níveis de mercúrio e de autismo. Dá para ficar muito preocupado”.
A justificativa do governo é que mercúrio é um “problema global”. No entanto, os diplomatas de George W. forçaram um acordo aguado sobre poluição por mercúrio na Reunião do Conselho de Governança do Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP), no dia 25 de fevereiro deste ano, em Nairobi. O EUA se opôs a um protocolo regulador e forçou um acordo de “parcerias”, encomendando ao UNEP mais um estudo. O UNEP publicou um estudo concluindo que o mercúrio é altamente lesivo à saúde humana, principalmente de mulheres e crianças, em 2003. Agora, pretendia que os países concordassem em definir um marco regulatório global. Para quem entende linguagem diplomática, meia leitura do comunicado do UNEP basta. Ela não esconde a contrariedade de seus especialistas com a decisão, metida nas entrelinhas do comunicado dos burocratas comemorando os “avanços” obtidos na reunião. O que houve foi paralisia do processo de decisão. O EUA quer que sua visão particular do problema se transforme na medida global.
A Guerra chega ao Banco Mundial
Quem acompanha o trabalho do Banco Mundial na última década, sem paixão ideológica, sabe que ele tem contribuído de maneira muito significativa em várias áreas: redução da pobreza e da desigualdade, combate à discriminação e à intolerância, programas de melhoria da governança e diminuição da corrupção e meio-ambiente, entre outros. O banco financia e faz estudos, financia programas e dá consultoria a países, estados e municípios. O australiano James Wolfenson, fez diferença, para o bem, nos seus 10 anos como o nono presidente do Banco Mundial. Um banqueiro de investimento, que saiu da posição de sócio sênior do Salomon Brothers, tinha e tem amplo envolvimento em atividades culturais e voluntárias. Foi diretor do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável. Recentemente, quem o procurasse, iria encontrá-lo no Egito, com o ministro Patrus Ananias, explicando às autoridades locais o melhor caminho para aplicar políticas de transferência de rendas na redução da pobreza e das desigualdades. Ele é daqueles que sai do gabinete, arregaça as mangas e põe o pé na estrada. Mas tem uma atitude mais parecida com a de missionário, do que com a de explorador ou guerreiro correndo o mundo.
Não creio que Wolfenson seja um santo, nem digo que o Banco Mundial na sua gestão não errou. Mas ele certamente criou um novo padrão de qualidade e de orientação social e ambientalmente responsável para o banco. Não conheço organizações sérias, comprometidas com o desenvolvimento social e ambientalmente sustentável, que não tenham uma história de parceria proveitosa com o Banco Mundial na última década ou que, no mínimo, tenham sido ouvidas e escutadas por alguém da hierarquia do banco sobre suas pesquisas, atividades e idéias.
A escolha de Paul Wolfowitz, secretário-adjunto de Defesa, para sucedê-lo, é não apenas emblemática, mas típica do comportamento de George W. Bush. Ele não esconde que tem a intenção de politizar a administração do Banco Mundial, submetendo-a à ideologia de segurança nacional do EUA. Faz parte da sua guerra.
Wolfowitz é um falcão, com instintos predadores da estirpe de seus chefes, George W. e Donald Rumsfeld. Foi o principal advogado da estratégia no Iraque e o autor dos maiores erros de previsão. Foi ele que insistiu na idéia de que as receitas de petróleo cobririam a reconstrução do Iraque. Como eles ainda continuam destruindo o Iraque, nem dá para dizer que ele errou nessa. Wolfowitz tem mais linhagem acadêmica que seus comandantes. Ele foi deão da Escola de Estudos Internacionais da universidade de Johns Hopkins e tem se destacado como principal ideólogo da nova administração. Ele defende o uso da mão armada do EUA para implantar no globo a democracia liberal e a economia de mercado. Parece coisa dos anos 60 e é mesmo. Só eles acreditam que democracia e mercado podem ser realizados na marra. Vai dar retrocesso no Banco Mundial. Como George W. gosta.
Wolfenson, após uma reunião com o desavisado presidente da Comissão Européia, disse a jornalistas que Wolfowitz não era mais “parte do exercício, portanto não penso que tenha necessidade de comentar”. Não era bem assim: o ideólogo do Pentágono não conta com a simpatia dos europeus. Mas é o nome de Washington e George W. não gosta do exercício de negociar e ceder aos aliados. Wolfenson disse que seu sucessor deveria ser alguém apaixonado pelo combate à pobreza e promover o desenvolvimento humano. George W. respondeu dizendo que “Paul [Wolfowitz] é piedoso e fará um bom trabalho no Banco Mundial. Ele é comprometido com o desenvolvimento”. Essa troca do “passionate” (apaixonado), pelo “compassionate” (piedoso), não foi ironia. Ele não é disso. Era a sério e casa com a supressão de humano do conceito de desenvolvimento. O presidente do EUA sabe o que ele quer: que o Banco Mundial cuide do desenvolvimento “do outro jeito”.
O Homem sem Qualidades
O título da estória de Robert Musil contém uma ambivalência, quando traduzido para o inglês ou o português. Qualidade pode tanto se referir a atributos, características, quanto a valores positivos. Musil queria dizer que Ulrich era uma pessoa sem características, sem atributos. Quando George W. tomou posse escrevi para Veja (N. 1896) que ele pensava com os conceitos da Guerra Fria e que faria um governo ultraconservador e tinha toda chance de cair na tentação militarista para resolver suas próprias fragilidades. Não era difícil prever o que seria seu governo. Foi durante seu segundo mandato e a repetição interminável do mesmo discurso, da mesma atitude, dos mesmos gestos e da mesma expressão facial, que passei a associá-lo ao “homem sem cara”, Ulrich, como o definiu tão bem o sociólogo Peter Berger. O personagem de Musil era o ícone do “homem moderno”, do primeiro terço do Século XX. Nisso Bush não se parece com ele. Onde eles começam a se aproximar é na caracterização do “homem do possível”, capaz de qualquer coisa ou outra coisa e na propensão destrutiva, que se pode divisar no fundo daqueles olhos de predador. Quando perguntam a Ulrich o que faria se lhe dessem o poder universal, responde: “Eu me sentiria compelido a abolir a realidade”. É o que George W. tem feito. Ele não se conforma com essa realidade complexa e problemática do Século XXI. Prefere os modos mais simples dos anos 1960, quando tudo se resolvia com uma troca de chineladas entre a Casa Branca e o Kremlin. Ele não quer a realidade como ela é. Ele a quer “do outro jeito”.
Musil descreve essa pessoa sem qualidades da seguinte forma: “sua aparência não dá pista de qual seria sua profissão e, no entanto, ele não se parece, tampouco, a um homem sem profissão. Considerem como ele é: ele sempre sabe o que fazer. Ele sabe como olhar nos olhos de uma mulher. Ele pode colocar sua cabeça para trabalhar em qualquer questão, a qualquer tempo. Ele pode boxear. Ele é hábil, voluntarioso, cabeça aberta, destemido, tenaz, ousado, circunspecto – para que discutir, suponha que lhe atribuamos todas essas qualidades – no entanto, ele não tem qualquer uma delas! Elas fizeram dele o que ele é, traçaram o curso para ele, e ainda assim elas não lhe pertencem. Quando se diz que ele vai fazer algo, quando algo o emula, ele se torna contra isso. Ele sempre verá um bom lado de toda má ação. O que ele pensa de uma coisa sempre dependerá de algum contexto possível – nada para ele é o que é… Logo, toda resposta que ele oferece será sempre uma resposta parcial, cada sentimento, apenas uma opinião… Ele adotará cursos de ação que para ele significam algo diferente do que significam para os outros, mas ele está em paz consigo mesmo sobre qualquer coisa, se consegue juntar tudo numa boa idéia… Ele é bastante capaz de ver o crime que causa danos a outras pessoas como um mero lapso do qual não se deve culpar o criminoso, mas a sociedade que o gerou. Mas é duvidoso que aceite uma bofetada no rosto com o mesmo desprendimento ou a recebesse como se nada tivesse de pessoal, como se encara a mordida de um cão. A chance maior é que revidasse ainda que depois, pensando melhor, decidisse que não deveria tê-lo feito.”
Pessoas desse tipo, marcadas pela falta de qualidades, têm não apenas a compulsão de “abolir a realidade”, mas como disse Thomas Rentsch sobre Ulrich, de recuperar uma nova segurança para o mundo e restituir a ordem. O perigo está, justamente, nesse desprendimento da realidade como ela é, do mundo como ele é e do fato de que, para mudá-lo toda ação, mesmo má, se justifica pelo seu contexto. Não é sequer o fim que justifica a ação, mas o seu contexto, ou, melhor, a visão contextualizada que ele faz dessa ação.
Por isso George W. nunca acha que erra. Por isso ele determina que se reinterprete as conclusões científicas, manda abolir a realidade e calar os “outros”, porque ele está determinado a fazer as coisas de outro jeito e de acordo com sua opinião naquele contexto. É uma pessoa virtualizada, que só existe no contexto. Ele usa vocábulos que se referem a sentimentos, como se falasse de atributos físicos e os utiliza para contextos totalmente disparatados entre si. Por isso ele é capaz de dizer que Wolfowitz, o frio ideólogo da nova guerra, é “piedoso”. Ele gosta de descrever pessoas muito diferentes com o termo “11compassionate”. Como gosta de repetir, em vários contextos, o termo “resolve” – determinação – sempre com um tom de ameaça e novidade. Como se a determinação para agir fosse algo inesperado, mesmo em se tratando do presidente de um país poderosíssimo. Uma resolução que se dissolve em si mesma e tem pouca eficácia – como no Iraque – porque é um revide a uma bofetada virtual, criada por ele mesmo. Como se viu, nunca importou que as razões que levaram ao revide fossem inverídicas. No contexto eram suficientemente reais. Saddam Hussein era um inimigo virtualizado. Só interessava enquanto parecia que era muito poderoso. Por isso sua prisão, naquele estado lastimável, foi um anticlímax inútil. Fora de contexto. Ficou evidente demais a desproporção entre a força usada para combatê-lo e seu tamanho real. Por isso Saddam teve que desaparecer da história. Mais uma vez, a realidade foi abolida. A questão deixou de ser o líder diabólico do eixo do mal e passou a ser a “libertação” do Iraque. Um objetivo tão etéreo como o inimigo sem cara, amorfo, que mata os soldados estadunidenses às pencas, explode carros-bomba e desmoraliza, diariamente, a força de ocupação.
George W. Bush não existia antes de se eleger presidente e deixará de existir ao sair da Casa Branca. Mas enquanto está lá, tem o poder quase universal que foi oferecido simbolicamente a Ulrich e lhe propiciou o sonho de ser capaz de abolir a realidade. A personagem se dissipará nos seus contornos reais. Para isso serve a história: para dar às pessoas sua dimensão não em função dos contextos imediatos, mas da cadeia contextualizada dos eventos de toda uma época. George W. será lembrado, mas não pelas razões que gostaria e sim pelas qualidades que não tem e, ao exercê-las, ter detonado eventos que serão mais duráveis que sua persona virtual de presidente-comandante-em-chefe.
Tanto na ordem mundial, quanto no meio-ambiente, ele está produzindo retrocessos e perdas significativas. Fracassará no seu intento de criar uma nova ordem, de transformar o mundo e a realidade, para que fiquem do “seu jeito”. Mas logrará destruir, desconstruir e desfazer. George W. está aquém da nova direita, na sua visão do mundo. Mas está muito além dela, na sua capacidade de fazer valer sua própria visão do mundo. Por ser um homem sem qualidades, acaba prevalecendo, onde uma pessoa com cara marcante, não venceria.
Aqueles olhos hiperfocados, olham todo o mundo e todas as coisas, a partir de sua visão estreita e singular da segurança da pátria e o espaço de ação para garantir essa segurança é o mundo todo. É esta mesma visão que agora chega ao meio-ambiente.
Um Homem de Interesses
A diferença mais marcante entre o homem sem qualidades de Musil e George W. é que o presidente do EUA é um homem que, embora sem qualidades precisas, é portador de interesses muito precisos. Suas decisões no campo ambiental trazem as impressões digitais da indústria interessada, como mostrou o Washington Post, em reportagem sobre a recente flexibilização das regras sobre emissões de mercúrio. A comparação entre a regulação publicada pela EPA e memorandos enviados pelo escritório de advocacia ambiental Latham & Watkins – um dos maiores na área de advocacia ambiental empresarial, que teve papel dos mais ativos no lobby da indústria, ano passado, contra a expectativa de elevação das exigências de controle de mercúrio – mostra que um dos atos copiou ipsis literis dúzias de parágrafos dos memorandos.
Quem descobriu primeiro as pegadas dos interesses privados no documento governamental, foi a cientista especializada em elementos tóxicos, Martha Keating, que já trabalhou na EPA e agora está na Clean Air Task Force. O diretor do departamento de políticas para o ar da EPA, Jeffrey Holmstead, perguntado sobre a adoção do interesse privado como princípio de política pública disse que “não é tipicamente como fazemos as coisas, tomando emprestado a linguagem de outras pessoas, mas isso veio por meio do processo interagência”. Ou seja, veio de um espaço virtual, indefinível, onde público e privado são a mesma coisa. Não sem razão, a principal autora dos memorandos da Latham & Watkins, Claudia M. O’Brien, disse que foi gratificante ver suas idéias transportadas para o documento oficial. Mas “não pedimos para eles fazerem um corte e cola de nossa análise” para o documento deles. Esse pode não ser o jeito típico da EPA fazer as coisas, mas é certamente o jeito de fazer as coisas dessa administração. No caso da abertura do Alaska à exploração de petróleo as relações promíscuas entre a família Bush e essa indústria são conhecidas.
Essa historinha final é ilustrativa do modo pelo qual se faz a política ambiental de George W. Não é uma política afirmativa, é uma política desconstrutivista. Ele desconstrói, desfaz os avanços e restaura a “ordem de mercado”, em áreas onde o comportamento privado desregulado é fonte de riscos fatais. George W. no contexto, oferece mais perigo para o mundo, na área ambiental, do que o aquecimento global, para o qual tem contribuído ativamente, em todos os sentidos.
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