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Nada é por acaso

Não é por acaso que a MP 239 está ameaçada de perder a validade por decurso de prazo ou o PL de Gestão das Florestas de ser desfigurado pelos ruralistas.

15 de maio de 2005 · 20 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

A Amazônia e o meio ambiente estão com suas poucas chances atoladas na pauta da Câmara dos Deputados. Como mostra a reportagem de Manoel Francisco Brito, a medida provisória 239 corre o risco de cair por decurso de prazo e o PL de Gestão de Florestas Públicas pode ser desfigurado pelo bisturi dos interesses ruralistas que dominam a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável. Nada disso é por acaso. A agenda ambiental vai mal na correlação de forças dentro do Executivo e no Legislativo. Quando os ambientalistas do governo, francamente minoritários, conseguem enviar alguma medida ao Congresso, batem em duas muralhas. A primeira, a coalizão de interesses contrários a medidas de preservação e ordenação fundiária para proteger reservas e ecossistemas. A segunda, a inépcia política do governo, que produziu inédita paralisia no Congresso.

O sistema político brasileiro tem várias características bastante peculiares. Primeiro, ele é presidencialista, como o do EUA. Mas o presidente se apóia em uma maioria multipartidária, como em alguns sistemas parlamentaristas europeus. Segundo, ele é federativo, como no EUA. Mas o poder financeiro e político está concentrado na União. Lá, os estados têm muita autonomia legislativa e regulatória. Aqui não. Aqui, eles dependem demais de verbas federais. Lá não. O eixo nacional da política brasileira é controlado pelas lideranças partidárias que têm prestígio nacional ou que controlam as máquinas nacionais dos partidos. Ele predomina quando as questões não dizem respeito a interesses poderosos localizados nos estados da federação. Mas, quando interesses locais ou regionais estão em jogo, predominam as bancadas estaduais e a força se transfere para os governadores e outros políticos com poder local (ex-governadores, senadores, ex-ministros, secretários) com extensas relações com a elite econômica de seus estados ou que dela fazem parte. Terceiro, ele é multipartidário, o presidente não consegue se eleger e, ao mesmo tempo, conquistar a maioria no Congresso para seu partido. Quarto, é um sistema com inúmeros pontos de veto, que precisam ser conquistados, para que as políticas públicas sejam aprovadas e possam ser implementadas.

A dominância do eixo federativo sobre o eixo nacional, nos temas que envolvem interesses dos entes federados, é que explica, por exemplo, porque o Congresso nunca conseguiu votar uma reforma tributária proposta pelo Governo Federal. Como ela é formulada a partir da lógica de Brasília, descontenta muitos estados, cujas bancadas bloqueiam a tramitação da reforma. Esse impasse no jogo interfederativo é muito comum, porque a correlação de forças entre os estados se expressa de forma diferente na Câmara e no Senado. A Câmara, que é proporcional, tem a maioria dominada pelos estados maiores e mais ricos. No Senado, que é majoritário e os estados têm três senadores cada, a maioria é composta pelos representantes dos menores e mais pobres. Quando uma matéria divide os estados em torno de interesses contrários, formam-se coalizões que cortam as linhas partidárias, em ambas as Casas do Congresso, aumentando muito a chance de um empate. Se não há acordo, o que a Câmara aprova, o Senado desaprova, e vice-versa. Dá-se o impasse e a matéria acaba no arquivo morto.

Se o tema não envolve conflitos muito intensos de interesses entre os estados da federação, as lideranças de corte mais nacional têm mais influência. Mas aí, as bancadas não se organizam apenas em linhas programáticas e setoriais. As coalizões entre os parlamentares se dão não só em função das afinidades partidárias, mas principalmente do alinhamento a determinados tipos de interesses setoriais ou corporativistas. Daí as várias “bancadas” transpartidárias: ruralistas, evangélicos, industrialistas, trabalhadores, do funcionalismo, da saúde, da educação pública, da educação privada, da construção civil, “farmacêutica” e, claro, ambientalistas. Essas bancadas operam em relacionamento com grupos de pressão, lobbies, ONGs, sindicatos e por aí vai. São o grupo mais poderoso, sempre que seu tema está em jogo. Nos outros, praticamente desaparecem, até porque o mesmo deputado pode fazer parte de várias delas: por exemplo, da evangélica, votando contra o aborto ou contra a lei do silêncio, que poderia calar seus alto-falantes, e da ruralista, ou da ambientalista.

No caso do meio ambiente, da Amazônia, de temas como madeira, água, poluição, os ambientalistas abrigados nos grandes partidos (PSDB, PT, PMDB, PFL) enfrentam alianças muito poderosas, que comandam o voto da maioria das bancadas de seus partidos. Na esquerda, contam com a oposição de setores ligados aos sem terra, a sindicatos de trabalhadores de indústrias que podem ser afetadas por medidas ambientais e a movimentos sociais que preferem o “desenvolvimento” ou o combate à pobreza, à preservação de árvores e bichos.

Quem comanda a pauta legislativa é o Poder Executivo. O regime brasileiro é presidencial imperial. O presidente é o centro do poder político. Mas isto não significa que ele pode tudo. Porque ele precisa de uma maioria multipartidária para governar, o presidente sempre tem que formar uma coalizão ampla, que inclui muitos partidos com os quais tem pouca afinidade. É o que chamo de presidencialismo de coalizão. O presidente precisa saber se relacionar com seus aliados, como um primeiro-ministro faz com os membros de sua coalizão multipartidária, nos regimes parlamentaristas de coalizão europeus. Mas, como ele não é primeiro-ministro e o sistema não é parlamentarista, além de trazer os partidos para o governo, compartilhando com eles o comando sobre as políticas públicas nos ministérios, ele precisa ter bom esquema de articulação Executivo-Legislativo, geralmente conduzido pelo Chefe da Casa Civil, que é uma espécie de “ministro-coordenador”, um bom grupo de líderes partidários, negociando a pauta diretamente, no Congresso, e saber negociar seus projetos de modo a eliminar pontos de veto.

Se não for capaz dessa articulação negociada e não souber exercer, diretamente e por meio dos lideres do governo e do partido do presidente, o controle do processo legislativo, enfrenta um impasse praticamente incontornável, que paralisa o Congresso. As medidas passam a sair a conta-gotas, após negociações demoradas e com custo elevado, sob a forma de concessões nas matérias dos projetos – que muitas vezes os desfiguram – de nomeações e de liberações de verbas. Nesse processo, é muito importante, também, a atuação dos ministros das áreas de interesse da matéria a ser votada e suas equipes.

Já deve ter dado para perceber que os interesses ambientais ficam muito mal nessa confusão toda. Primeiro, porque eles não são considerados uma prioridade pelo núcleo do poder no governo Lula. É um governo que dá prioridade ao desenvolvimento a qualquer custo. O Ministério do Meio Ambiente é politicamente fraco dentro do governo e acaba tendo que ceder à pressão de ministérios como os das Minas e Energia, da Agricultura, do Desenvolvimento Regional, do Desenvolvimento, Comércio e Indústria. No Congresso o número de bancadas com interesses, em princípio, contrários aos do ambientalismo é majoritário. Por outro lado, os parlamentares ambientalistas ou estão em partidos periféricos ou não exercem liderança em suas bancadas e não têm mostrado capacidade de formar alianças mais amplas.

Já seria difícil defender os projetos de interesse do meio ambiente, se a pauta andasse. Mas ela não anda. E não anda por duas razões principais. A primeira é a incapacidade política do governo à qual já me referi. O PT – e o chamado núcleo duro – não compartilha o poder. Ocupa todos os espaços no governo e hostiliza os aliados, em Brasília e nos estados e municípios. Por isso a coalizão se rompeu. Ela controla 350 cadeiras e o governo não consegue quorum de 257 deputados para abrir uma sessão, nem maioria de 130 votos para aprovar um projeto de lei, com quorum mínimo. O ministro da Articulação, Aldo Rebelo, vive debaixo de fogo cruzado, não tem acesso ao presidente nem por telefone, não participa das discussões do núcleo político palaciano, onde a entrada é restrita aos petistas José Dirceu, Antônio Palocci, Luiz Gushiken, Luiz Dulci e Jaques Wagner. Logo não articula, só conversa. Os líderes do PT e do governo são figuras menores no Congresso, sem influência pessoal e sem peso político. A única liderança do governo, com peso específico no PT, o senador Aloizio Mercadante, trabalha mais contra do que a favor, por causa de sua atitude personalista. Negocia, muitas vezes, sem consultar o presidente e seu núcleo dirigente e, depois, tem que voltar atrás, o que lhe tira credibilidade e influência.

Além disso, o governo, porque não confia nos aliados e não sabe atuar no Legislativo, prefere legislar por Medidas Provisórias. Tem uma média de 5 MPs por mês, mais que Collor (3), FHC I (3) e FHC II (4); a mesma de Itamar Franco e apenas inferior à média de Sarney (7). Medida Provisória perde a eficácia se não for convertida em lei no prazo de 60 dias, automaticamente prorrogado por mais 60 dias. Êta Brasil. A prorrogação é automática porque o Presidente da República não pode retirar MP do Congresso Nacional, só editar uma nova, suspendendo os efeitos da outra. O Congresso deve converter uma delas em lei de e regulamentar as relações jurídicas decorrentes das normas rejeitadas. O problema é que se, em 45 dias, contados de sua publicação, a MP não for apreciada pela Casa por onde tramita, entrará em regime de urgência, trancando a pauta até que seja votada. Quanto maior o número de MPs e menor a capacidade do governo de articular e negociar sua votação, maior o tempo que a pauta ficará trancada e maior o número de MPs que perderão sua eficácia por decurso de prazo. É o que ameaça a MP 239, que permite ao governo restringir administrativamente a exploração de terras que serão transformadas em reservas, para evitar o desmatamento antecipado, por exemplo. O relator da Comissão Especial que a examinou protelou a emissão de seu parecer, ela está para cair em decurso de prazo.

O PL de gestão de florestas enfrenta dois problemas. O primeiro é a pauta bloqueada. Mesmo que passe incólume pelas comissões, não teria como ser apreciado pelo plenário da Câmara dos Deputados, porque a pauta está trancada pelas MPs. O segundo é a coalizão de interesses contrários ao PL, que tem dado muito trabalho aos ambientalistas do governo. Tentam, de toda maneira, evitar que ele seja desfigurado nas comissões. Mas, quanto menos anda a pauta, mais tempo têm os interesses madeireiros e seus aliados, para passar a motoserra das emendas deturpadoras do projeto. E, se o projeto conseguir escapar da lâmina afiada dos ruralistas nas comissões, encontrará a pauta bloqueada no plenário, que lhes dará, novamente, a chance de destruí-lo no essencial.

Fazer avançar os interesses da preservação do meio ambiente e da regulação ambiental no presidencialismo de coalizão brasileiro já é difícil. No atoleiro político que o governo Lula criou, quase impossível. Daí a necessidade de conquistar todos os aliados possíveis e a importância de que os ambientalistas pressionem o Congresso e alimentem a mídia, para evitar o corte das medidas que sabem ser necessárias.

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