“O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído…”
Epitáfio – Titãs
Não é preciso ser um politólogo para saber por que, sai ano entra ano, é destruída uma porção da mata amazônica equivalente à área de estados brasileiros inteiros. Basta ser um grileiro profissional, como o personagem de muitos nomes e sem nome, de quem Manoel Francisco Brito ouviu essa lição de politologia aplicada, no aeroporto de Vila Rica, norte do Mato Grosso: “o governo nunca está aqui. Só aparece para dar porrada e depois some. Se ele quer manter a floresta de pé, tem que provar para as pessoas que estão na região que isso vai valer a pena.”
O governo divulgou, na semana passada, uma tragédia e um avanço. A tragédia foi a constatação de mais de 26 mil quilômetros quadrados de perda florestal, só na Amazônia e só o que a metodologia do INPE – que é boa, mas não é perfeita – consegue captar. Provavelmente, a análise mais detalhada mostrará, até o final do ano, que a estimativa foi inferior ao dado real. O avanço foi o anúncio da redução do trabalho escravo no país e o lançamento de um pacto nacional para erradicá-lo. O trabalho escravo é uma das piores facetas de uma grande parte de nosso país que vive na clandestinidade e na informalidade criminosa. É o Brasil ilegal, com o qual o Brasil legal tem convivido com desconforto, mas vergonhosa tolerância.
Pouco antes de escrever esse parágrafo, ouvi quase cinco minutos de tiroteio, no território Rocinha/Vidigal, Rio de Janeiro, onde pistolas 9 mm cuspiram dezenas de balas, num diálogo furioso. Pistolas que não foram obtidas em roubos de residências, furtadas do porta-luvas de carros particulares ou subtraídas de cidadãos distraídos. Armas que não se compra nas lojas autorizadas e cidadãos raramente têm. Pistolas que circulam do Brasil ilegal para o Brasil ilegal. Mas que matam nos dois Brasis, indiscriminadamente.
Todos já esperávamos esse resultado – ou pior – sobre o desmatamento, menos o Ministério do Meio Ambiente, que vinha insistindo na sua “estabilização”. Coisa de fé, porque nada foi feito de concretamente relevante para interromper ou mesmo mitigar o processo. Em parte é culpa do próprio ministério, que demora demais a tomar decisões e implementar ações. Parte é culpa da incapacidade política do governo, que tem produzido sucessivos ciclos de paralisia no Legislativo, bloqueando a aprovação de medidas provisórias e projetos de lei que poderiam ajudar no esforço de coibir o desmatamento desenfreado que está ocorrendo, agora, sob nossos olhos, no país inteiro, mas, principalmente na Amazônia legal. É lá, hoje, um centros nervosos de atividade do Brasil ilegal. Parte é culpa da crise fiscal do estado, que deixa na penúria as agências governamentais. Parte é culpa do péssimo desenho da área regulatória do estado brasileiro em geral, e do marco regulatório ambiental, em particular. O Ibama é enorme e está caindo aos pedaços por todo lado. Parte é culpa do presidente e seu núcleo duro, que não conseguem arbitrar os conflitos de interesses entre os ministérios, nem estabelecer diretrizes comuns para as áreas de atuação comum, por exemplo, Minas e Energia/Meio Ambiente, Agricultura/Meio Ambiente. Deixarei aos leitores a tarefa de listar mais meia dúzia de culpas. Nenhuma delas isenta o governo do pecado da omissão de responsabilidade.
Por que avançamos no combate ao trabalho escravo? Porque o poder público esteve presente. Mas não seria suficiente. Porque a OIT – Organização Internacional do Trabalho – estava ativa. Mas também não seria suficiente. A presença do poder público é uma condição necessária para qualquer avanço sobre o Brasil ilegal. Ele tem o monopólio do uso da força legítima, os instrumentos legais e legítimos de repressão, o poder de polícia e o braço judicial. A cooperação de um organismo multilateral, como a OIT, é um fator interveniente estratégico, que traz recursos, credibilidade e experiência, além da pressão internacional. Mas o complemento indispensável foi a pressão de uma parte da elite empresarial sobre as outras partes dessa elite que aceitam o Brasil ilegal.
O Instituto Ethos, estava lá, nessa aliança trina, para mostrar que um pedaço da elite de negócios não está mais disposto a conviver com o Brasil ilegal. Não basta, porém, focalizar só o trabalho escravo. Ele está intimamente associado à grilagem e ao desmatamento. Não é só a força de trabalho empregada na produção que é ilegal. A terra grilada onde se cultiva ou se alimenta o gado também é. A madeira roubada das matas, a mão armada de moto-serra também. Licença poética, porque hoje o desmatamento já não é nem só a fogo, nem só a serra. É com tratores e correntes.
Demanda-se ordem ao estado, todos querem ver os que matam inocentes sejam punidos, mas não se dispõem a fazer a sua parte. Nesta guerra, há duas partes: do setor público, único que pode punir, e do setor privado e da sociedade civil, que podem ajudar o estado a vigiar e não podem manter relações de comércio com o lado ilegal. Portanto, vamos falar sério: trata-se de um caso impressionante de omissão de responsabilidade pública e privada.
A única forma de erradicar as práticas principais do Brasil ilegal é o Brasil legal fechar as portas e deixar de ser conivente com o Brasil informal também. Do Brasil ilegal fluem produtos que, após passarem pelo Brasil informal – atravessadores, transportadoras, maquiladores – são absorvidos pelo Brasil legal. É assim, com os produtos feitos com trabalho escravo: parte do álcool que abastece os carros flexpower, ou a madeira da grilagem e do desmatamento, que acaba nas construções e no mobiliário que o Brasil legal vende e o Brasil legal compra, por exemplo.
O leitor já deve ter percebido que é essa rede de tolerância e cumplicidade que arma o Brasil ilegal, escraviza o trabalhador – maior e menor, homem e mulher – grila as terras e as desmata. Uma rede que nos envolve a todos e que transforma esses eventos aparentemente isolados em peças componentes da mesma síndrome. Grilagem, desmatamento e trabalho escravo são as contrapartes no Brasil ilegal, da facilidade com que o Brasil legal transita nas fronteiras da ilegalidade e da informalidade. Não dá para separar, depois que entrou no tanque do posto de gasolina e chegou ao tanque de nossos carros, o combustível legal do ilegal. Não dá para dissociar a madeira ilegal da legal nas mesas em que o Brasil come, trabalha, discute e estuda. Não dá para subtrair a quantidade de trabalho escravo que entrou em cada produto cuja matéria prima foi extraída no Brasil ilegal, que escraviza pessoas humanas.
Essa rede enorme de conivência prospera na ausência do estado. É o princípio número um da filosofia política. Está lá em Hobbes (1588-1679), um de seus fundadores. Sem o estado político, prevalece o estado da natureza, a chamada lei da selva, a guerra de todos contra todos, o olho por olho, o homem lobo do homem, ou seja, o ser humano como seu próprio predador. Essa quantidade de expressões, que se tornaram lugares comuns, expressa uma lei da política, mais forte do que muitas das leis da economia: onde não há estado, as pessoas vivem em guerra. E não é qualquer estado: só o estado democrático, legítimo, que pode e sabe usar a força legitimamente e sem abuso, quando necessário, é capaz de proteger a sociedade civil com um mínimo de equanimidade.
Outro dia, conversando com Wanderley Guilherme dos Santos, sem dúvida o mais importante politólogo brasileiro da atualidade, sobre a crise do estado e os problemas para a democracia brasileira, ele lembrava que a crise nos faz a todos perceber a ausência do estado, mas esta constatação nos leva a demandar mais estado, o que, na prática, significa demandar mais omissão, dado que ele já é incapaz de cumprir a sua agenda atual. O Brasil é viciado em estado e no seu braço federal, principalmente. Qualquer problema, ele olha para Brasília e acha que o setor público tem que resolver, ajudar, pagar, subsidiar, providenciar. Ao mesmo tempo, reclama, o tempo todo, da carga tributária elevada – e é mesmo – e dá um jeitinho para pagar menos impostos. O desempregado aceita a oferta de trabalho sem carteira, do empresário que compra e vende sem nota e paga a fiscais venais para ficar à margem. Os mais ricos gastam fortunas para comprar segurança privada – e ilusória – e blindagem contra balas perdidas, assaltos, seqüestros. É nessas fissuras da informalidade que prospera o Brasil ilegal. Cada passo a mais na informalidade, cada propina paga, cada bagulho comprado, irrigam o Brasil ilegal. Cada atividade legítima, no Brasil legal, que prospera em função da existência e ampliação do Brasil ilegal, aprofunda essa nossa sócio-patologia. É um só e o mesmo Brasil que grila, desmata, contrabandeia, pirateia, escraviza e trafica. São elos de uma mesma cadeia, como gosta de definir Míriam Leitão.
O Brasil legal consome Brasil ilegal a torto e a direito e depois reclama. O custo não é só em desmatamento, mas em trabalho escravo, na morte de nossos jovens de 15 a 25 anos, desaparecendo em proporções só registradas em países em guerra, em seqüestros, assaltos, tirania nas favelas, no asfalto e na terra. Seja nas grandes cidades, seja nas terras conflagradas do interior, forças privadas tiram dos cidadãos o direito de ir e vir. Vão se espalhando nossas faixas de Gaza domésticas Brasil a fora. E o Brasil legal vai ficando mais assustado, menor, mais discriminatório e mais preconceituoso. Seria pior, se heróis da resistência, como o Júnior do Afroregae, no Rio de Janeiro, os ambientalistas nas faixas conflagradas de nosso meio ambiente, não se esforçassem o dia todo para construir pontes entre os Brasis legais: o que vive longe das faixas de Gaza e os que habitam essas faixas. Para mostrar que as coisas são muito misturadas no Brasil mesmo: há Brasil legal nos miolos do Brasil ilegal, como há Brasil ilegal nos miolos do Brasil legal. E como os há.
“Lá não tem ninguém inocente”, disse o grileiro profissional de vários nomes e nome algum – “nome pra quê?” – do relato de Manoel Francisco. Sua lição de politologia aplicada dois vale para todos nós: em um país com esse grau absurdo de desmando, informalidade e ilegalidade, “não tem ninguém inocente”. Somando as duas lições de politologia da selva: “o governo nunca está aqui, só aparece para dar porrada e depois some”; e “não tem ninguém inocente”, chegamos ao fecho do problema: estamos assim, porque somos assim. O Brasil virou um caso de omissão pública e privada de responsabilidade. E o acaso não vai nos proteger enquanto andarmos assim, distraídos.
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