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A Madrinha das Araras Azuis

Na junção entre o acaso e a paixão, com ajuda de poucas instituições, Neiva Guedes tornou-se, sem que ela mesma suspeitasse, a madrinha das araras azuis.

17 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

“Não consigo ver minha vida sem as araras, nem as araras sem mim”, essa frase, dita pela bióloga Neiva Guedes, enquanto mantém os olhos fixos na estrada que liga Aquidauana a Miranda e dirige a picape Toyota 4×4, resume o resultado de 15 anos de trabalho com as araras azuis do Pantanal de Mato Grosso.

A primeira vez que Neiva pôs os olhos nas araras-azuis (Anodorynchus hyacinthinus) foi em 1989. Amor à primeira vista. Ela viu um bando de araras-azuis pousadas nos galhos secos de uma pequena árvore. “Quando o professor Álvaro Fernando de Almeida disse que estavam ameaçadas de extinção e poderiam acabar, algo aconteceu dentro de mim”. Naquele dia, um final de tarde de novembro, tomou a decisão de fazer alguma coisa para impedir que aquela espécie desaparecesse. Elas viraram seu projeto de vida. Não que ela tivesse decidido estabelecer, no ato, essa relação que as tornou inseparáveis. Mas, algo se passou que a ligou de forma tão profunda à maior espécie de psitacídeos do mundo entre nós – chegam a ter 1,5 metros de envergadura – à época desconhecidas e gravemente ameaçadas de extinção. Em janeiro de 90, matriculou-se para o mestrado em Ciências Florestais, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. Quando contou que decidira escrever sua tese de mestrado sobre as araras, causou estranheza. Engenheiros florestais nada têm a ver com isso, argumentavam. Mas ela contestava dizendo que tinha sim: era um tema de ecologia aplicada e queria aprender manejo de fauna e conservação da natureza. Toparam. Deu certo.

Quando ainda cursava as disciplinas do mestrado, voltou ao Pantanal, em um curso promovido pela Smithsonian Institution, pelo WWF e pela Embrapa, sobre manejo de fauna e flora. Ficou conhecendo, então, o ornitólogo Lee Harper, que seria decisivo para seu projeto. Ele lhe ensinou técnicas de campo, principalmente escalada de árvores utilizando métodos similares aos do montanhismo.

Começou o trabalho com uma bolsa de pesquisa e o apoio do WWF. Compensava a inexperiência nesse tipo de trabalho de campo com a vontade de conhecer as araras. Nem havia conseguido ainda desenhar, com método, um plano de observação. Escreveu a vários ornitólogos, pedindo orientação metodológica e as respostas eram insuficientes. Ninguém havia, ainda, estudado seriamente a arara-azul. Ficava, então, do amanhecer ao anoitecer, em frente a um ninho, anotando tudo que via acontecer. Foi quando um amigo mais experiente, biólogo como ela, lhe disse que ela precisaria de dados comparativos, de um número razoável de ninhos, para poder obter padrões de comportamento. Aquele ninho, no qual estava fixada, poderia ser uma exceção. Alertada para a necessidade de comparar e ter essa visão da média das observações, saiu a caçar ninhos e terminou por localizar 52 deles. Embora fosse final do período reprodutivo, ainda havia filhotes em vários e Neiva pode obter informações que seriam preciosíssimas, no futuro, para o manejo e a redução da mortalidade infantil.

Para visitar os ninhos, fazia de tudo, pegava carona em avião, carro, caminhão, trator, barco, cavalo, carroça. Ia até a pé. O problema das caronas é que elas não coincidiam com o horário das araras. Neiva sabia que não conseguiria levar o projeto adiante, sem um mínimo de estrutura para seu projeto.

Mas, correndo riscos e gastando mais tempo do que precisaria para obter seus dados, conseguiu terminar a tese de mestrado: o primeiro trabalho sistemático sobre as araras azuis. Na verdade, sua tese continha praticamente tudo que se sabia do comportamento delas. Era o passo inicial para salvá-las da extinção. Os passos seguintes teriam que ser muito mais ambiciosos, envolvendo mais pesquisa e um plano de manejo, pois Neiva já identificara alguns dos principais problemas que as ameaçavam. A captura para comercialização era, sem dúvida, a maior delas. Mas a ação de predadores e o desmatamento também eram muito importantes. Em sua tese havia demonstrado que as araras fazem 95% de seus ninhos em uma única árvore, o manduvi (Sterculia apétala), uma árvore de madeira macia, na qual as araras podem abrir cavidades onde fazer as “camas” para a cópula e a postura dos ovos. “São verdadeiras engenheiras ambientais”, diz Neiva. As camas são feitas com lascas da própria árvore, que elas retiram com os fortes bicos. O manduvi dá um fruto, que muitos animais comem. A arara azul não. Ela só se alimenta da castanha de dois tipos de coquinhos: o acuri (Scheelea phalerata) e a bocaiúva (Acrocomia aculeata). Só em casos extremos, de falta de seu alimento, comem outros. O restante dos ninhos foi encontrado no angico branco (Albizia niopioides). Essa dependência extrema a pouquíssimas espécies para reproduzir e se alimentar é uma de suas fragilidades. Talvez por seu tamanho, elas não ficam dentro da mata, apenas nas bordas e nas copas das árvores altas. São capazes de fazer dormitórios que reúnem centenas de indivíduos toda a noite. Tudo nos seus hábitos, Neiva foi descobrindo, as tornava vulneráveis aos predadores, particularmente o ser humano.

As araras são objeto de cobiça e interesse. A principal ameaça à sua sobrevivência é a captura para comércio e cativeiro. A própria Neiva se sentiu muito atraída, ao visitar um amigo nos EUA, que mantinha um casal de araras azuis em cativeiro. “Tê-las tão perto, ao alcance da mão, era uma emoção tão grande. Elas são tão lindas e tão inteligentes. A convivência com elas é uma festa. Mas, ao mesmo tempo, vendo-as, ali, enormes, e me lembrando de como são, quando livres no campo, o quanto voam, todo o espaço que precisam, me dei conta da imensa crueldade que é confiná-las em um espaço tão restrito”. Ela se tornou inimiga radical da manutenção de aves em cativeiro. “Quem as admira deve ir vê-las na natureza, em liberdade, felizes”.

A visita ao amigo nos EUA, não foi a única vez que Neiva teve uma arara azul adulta ao alcance de suas mãos. Houve duas outras ocasiões. Uma, quando, ao atirar a linha de nylon com chumbada na ponta, usando um estilingue, para passar a corda no galho do manduvi e instalar o ascensor, assustou um macho pousado próximo, que voou, se emaranhou no fio de nylon e caiu. Tiveram que ajudá-lo, com cuidado, para que não machucasse a asa. Quando pôs a mão na ave, Neiva sentiu uma onda de emoção: “era enorme”. Nunca mais se esqueceu da experiência. A segunda vez, foi quando fizeram uma descoberta surpreendente: os pais haviam alimentado até a idade adulta – abandonam as crias ainda infantes – um filhote que ficara preso em um ninho muito fundo. Não o conseguiam tirar de lá e ele não podia sair voando, porque era estreito demais. Estava com as asas prejudicadas de tanto batê-las contra as paredes estreitas do oco de árvore. Não sabia se alimentar, pois não havia aprendido a quebrar coco. Tomava leite de coco regurgitado pelos pais, como os bebês. Ele ficou dois anos se recuperando até que pudesse ganhar a liberdade.

Para que tudo isso fosse possível e ela chegasse a essas duas experiências marcantes, foram precisos muitos anos de trabalho, aprendizado e manejo de ninhos e filhotes. Tese pronta, o projeto arara azul mal engatinhava. Tinha apoio da WWF para equipamento e outras despesas de campo, mas não tinha salário, nem condução. Precisava de um veículo, para visitar os ninhos e explorar o pantanal da Nhecolândia e tinha que sobreviver. Conversando com seu orientador, o professor Álvaro Fernando de Almeida, decidiu escrever a todas as montadoras existentes no Brasil à época e apresentar o projeto, na esperança de obter apoio, com o empréstimo ou doação de um veículo. Ninguém respondeu.

Alguns meses depois, em 1990, seu orientador encontrou um engenheiro da Toyota, numa palestra, e lhe contou o caso. Ele se interessou, contou para seu chefe, que comandava o departamento de engenharia de produção da empresa. Deram a Neiva um Toyota Bandeirantes, já usado, que servia para testes na fábrica. Em troca deveria mandar relatórios sobre o seu desempenho no Pantanal, para orientar melhoras no carro. Mal havia aprendido a dirigir em seu Chevete e Neiva virava piloto de provas de um jipão duro, possante e valente. Passou a dirigi-lo para cima e para baixo no trabalho de campo. Ia na madrugadinha, às vezes voltava depois das 22:00, sozinha. Quando os fazendeiros recolheram seus veículos, com a cheia subindo rápido, Neiva continuou o off-road no seu Bandeirantes. Até que um dia, atolou, muito longe do primeiro socorro. Deixou o jipe no atoleiro, motor ligado, e foi a pé, em busca de ajuda.

Caminhou algumas horas até a fazenda mais próxima, mas não encontrou trator para rebocar o jipe. Levou um peão para ajudá-la. Acabou forçando demais e o colar da embreagem colou. O peão, por inexperiência, desligou o motor, que encheu imediatamente de água. No dia seguinte, resgatado pelo trator, lavaram o motor com óleo diesel, tiraram a areia que estava por todo lado e o motor pegou. Neiva continuou, por três semanas, sua busca de ninhos, tendo só primeira, segunda, terceira marchas e a tração. No retorno para Campo Grande, a biela bateu. Deixou o que restara do Bandeirantes na oficina autorizada de Campo Grande e escreveu circunstanciado relatório sobre o episódio para os engenheiros da Toyota. Resposta: “sabemos que se trata de um trabalho de campo, com um veículo usado para testes. Mas ele não é anfíbio”. Junto, um motor novinho, lacrado de fábrica. Foi só trocar e partir, novamente, para o campo.

“Eu era muito afoita. Não tinha noção do perigo. Dirigia com os olhos postos nas araras. Hoje estou muito mais calma”, diz, a quase 80 por hora, numa picada de terra, e quase topa com o degrau formado pela depressão no solo, que deixava à mostra as grades de um mata-burro. Mais adiante, quase entra numa valada, a quase 100 por hora, distraída, admirando um gavião-pato a voar. Hoje, é uma motorista experiente e segura, que dirige off-road quase diariamente, atravessando rios e atoleiros, passando por pontes improvisadas, cortando savanas e campos naturais e artificiais, em busca de suas araras. Em 1998, ganhou da Toyota duas picapes 4×4, com manutenção gratuita garantida na concessionária local, em troca do velho Bandeirantes, sucessivamente reformado até a troca. Enquanto fazia um roteiro de campo, para mostrar a rotina de monitoramento e manejo de ninhos e fotografar as araras, a picape que Neiva dirige completou 100 mil quilômetros rodados. A outra, de campo, já tem quase 160 mil. Em breve serão trocadas por duas do novo modelo. O projeto cresceu muito, desde a primeira cortesia e Neiva continua tendo seu apoio, mas já não precisa mais servir de piloto de provas. Conquistou a continuidade do patrocínio por mérito. Foram oito anos de relatórios minuciosos.

Foi logo depois de receber o jipe, que a Fundação Boticário entrou na sua vida: “essencial para que eu pudesse seguir em frente e o projeto virar o que virou”. Ela já conseguira o carro para o campo, faltava o salário para sobreviver. A Fundação não costumava dar recursos para o sustento dos seus patrocinados. Mas abriu uma exceção para Neiva que pôde, dessa forma, continuar seu trabalho com as araras. Ela já estava há seis meses sem bolsa e qualquer rendimento. Está lá, nos registros do projeto: 12 meses de “bolsa/salário”, no valor de R$ 880,00 mensais, para a coordenadora e executora do projeto que, até então só obtivera recursos para pesquisa e estagiário totalizando, US$ 10 mil, contando as despesas de administração da SODEPAN, o órgão repassador. Um salário mensal, equivalente a pouco mais de R$ 2000,00, em dinheiro de hoje, um projeto de menos de R$ 25 mil. Dá uma boa medida dos milagres que a pesquisa brasileira consegue fazer.

O trabalho avançava, já eram 94 ninhos naturais registrados e 12 artificiais. Ao final daquele ano, Neiva foi contratada como pesquisadora pela UNIDERP – Universidade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal, uma entidade privada que vem se destacando no apoio à pesquisa biológica e ações de preservação e conservação na região. O empurrão da Toyota e da Fundação Boticário, permitiram que o projeto de Neiva desse um salto de qualidade e escala e, hoje, é possível dizer que conseguiu salvar a arara azul da extinção, embora ela não possa sair da lista de espécies ameaçadas, porque só houve repovoamento comprovado na região do Pantanal, nas demais regiões de ocorrência, não. E as ameaças que geraram o risco ainda não desapareceram, embora tenham diminuído. A perda ainda é maior que o incremento de filhotes vivos. Hoje, são 362 ninhos naturais e 98 artificiais, 47 fazendas com ninhos cadastrados. O manejo é feito na Fazenda Caiman, no Pantanal de Miranda, que lhe deu uma casa na propriedade, para montar sua base de campo, na pousada Ararauna, da UNIDERP e em mais cinco outras. O restante é monitoramento. O projeto já não se limita mais ao estudo das araras e ao manejo e monitoramento. Faz educação ambiental, trabalha com crianças, começa a estimular o estudo de outras espécies, como a arara vermelha (Ara Chloptera), mais abundante, mas hoje muito mais desconhecida que a arara azul.

As duas estagiárias que a estão ajudando, hoje – os estágios duram um ano – são entusiasmadas. Ambas fizeram biologia por vocação. Andréia Carvalho Macieira, procurou o estágio. Hoje é a administradora do projeto, dirige a picape quando Neiva está cansada e fica adiando a saída para o mestrado, porque há sempre alguma emergência para atender. Mas vai fazer o mestrado e dificilmente sairá das asas agora largas do projeto arara azul. Provavelmente iniciará estudo sobre as araras vermelhas, comparando-as com as azuis. Grace Ferreira, uma carioca, formada em biologia pela UniverCidade, conheceu Neiva num Congresso de Zoológicos, adorou a idéia do projeto, desembarcou direto no Pantanal, onde está há nove meses. Até hoje, só deixou o campo por quinze dias. Depois desse ano de estágio, pretende fazer mestrado e doutorado em conservação e meio ambiente.

Mas a biologia não foi sempre assim, uma vocação que empolga cada vez número maior de jovens, com oportunidades de trabalho em projetos cativantes como o da arara azul. A própria Neiva virou bióloga por contingência de vida, não por escolha ou vocação. Queria fazer medicina, mas sua família não podia pagar cursinhos. Fez escola pública, era boa aluna, mas não passou no vestibular. Acabou fazendo exames para biologia, enquanto se preparava mais, para tentar novamente a faculdade de medicina. Gostou, foi ficando, mas só descobriu, mesmo, que esta era sua vocação, naquele encontro decisivo, quando se apaixonou pelas araras. A biologia, naquele começo, formava basicamente professores para o segundo grau, uma pequena parcela encontrava emprego em laboratórios de pesquisa de empresas e uma mínima proporção fazia pós-graduação para seguir a carreira universitária e de pesquisa. Foi a chegada das ONGs ambientais estrangeiras ao Brasil e o surgimento das nacionais, como a Fundação Boticário, atraídas pelo maior interesse pela questão ambiental, que mudou a profissão no Brasil, tanto pelo lado da demanda, como da oferta. Cresceu a demanda por biólogos, para projetos de pesquisa, manejo e conservação. Ampliou-se a oferta de profissionais, com o crescimento do número de jovens interessados em trabalhar pela ecologia, em geral, ou em biologia especificamente.

Andréia e Grace, as estagiárias de Neiva são parte dessa onda vocacional, suscitada pelo ambientalismo. Um jovem biólogo, especialista em morcegos, George Camargo, que também pesquisa no Pantanal, entrou na biologia no início da onda e diz que a Rio ’92 foi decisiva para este salto de interesse dos jovens pela biologia e pela ecologia e das ONGs e empresas, pelo meio ambiente brasileiro.

Foi nessa junção entre o acaso e a paixão, com a ajuda das poucas instituições que então existiam, que Neiva Guedes iniciou essa longa caminhada, que já dura 15 anos, para se tornar, sem que ela mesma suspeitasse, a madrinha das araras-azuis.

* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.

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