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Solução de mercado

Existem soluções de mercado para comportamentos ilegais, como produzir gusa com carvão de desmatamento ou álcool com trabalho degradante e queima de canaviais.

22 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Quando alguém propõe solução de mercado para algum problema, geralmente está dizendo que é algo que não deve ser resolvido pelo estado, sobretudo se envolver subsídio de alguma forma. “Deixa que o mercado resolve”, costuma-se dizer. De fato, o Brasil tem mania de subsídio. Agora mesmo, está aí, a bem sucedida indústria do açúcar de do álcool, com o preço dos dois produtos explodindo no mercado internacional, pedindo ao governo dinheiro para fazer estoque regulador, na maior cara de pau.

Quando produtores querem subsídio estatal para formar estoques, usam o álibi da garantia de preço ao consumidor. Mas o estoque serve, mesmo, é para protegê-los de quedas abruptas nos preços. Estoque tem custo direto e custo de oportunidade. O dinheiro empatado em sacas de açúcar ou galões de álcool, poderia estar dando lucros de curto prazo, remunerados pelas taxas brasileiras estratosféricas de juros. Seria um absurdo concentrador de renda dar dinheiros aos ricos usineiros, para fazerem estoques para sua proteção. Ainda mais um setor que tem enorme passivo ambiental e práticas degradantes de trabalho, portanto já devem um montão à sociedade. Também não faz sentido o governo pagar, com dinheiro do povo, para os produtores manterem um preço artificialmente baixo. No momento, além de absurdo distributivo, é puro populismo eleitoreiro. Combustível é e deve ser caro.

Mas tem solução de mercado para o problema dos usineiros. Eles podem buscar proteção no mercado de futuros, solução que todo produtor de commodity no mundo civilizado sabe usar e usa. Pelo que informa Míriam Leitão, em sua coluna de O Globo, da quarta-feira, 22 de fevereiro, eles já estão negociando um mecanismo de mercado futuro com a BM&F. Mas, como o hábito é irresistível, não custa tentar uma garfadinha no Tesouro. Como dizia, Armínio Fraga, quando era presidente do Banco Central, e o Ancelmo Góes celebrizou em sua coluna no Globo, tentar resolver o problema privado com o meu, o seu, o nosso dinheiro e não com o deles.

Essa é uma indústria que nasceu no regaço do estado. Foi cevada no subsídio. As autoridades públicas fizeram, a vida toda, vista grossa para o sacrifício que impunham aos bóias-frias, para a queimada dos canaviais, para as agressões ambientais. Agora, fingem que não vêem que a indústria formou um cartel, uma associação de produtores, que tem a desfaçatez de se chamar Única, ou seja cartel. Eles são os “acertadores” de preço: ”deixa que a gente acerta o preço”.

A indústria teve avanços inegáveis. Modernizou seus métodos de produção, conseguiu diminuir a intensidade de algumas das agressões ao meio-ambiente, melhorou as relações trabalhistas. Mas ainda tem um passivo que as devia desqualificar para receber qualquer apoio oficial. E nem todas as empresas ficaram boas nessas áreas. Eu, pessoalmente, só acredito na vantagem competitiva de custo dessa indústria, o dia que puder examinar os dados de uma auditoria independente e séria sobre o processo de trabalho. Os chineses também produzem muita coisa a baixo custo, porque pagam salário vil e adotam práticas repressivas de trabalho.

Não nego os ganhos de produtividade, mas nego, até prova em contrário, a qualidade da competitividade alcançada. Sei, também, que muitos usineiros argumentam que são forçados a adotar determinadas práticas, inclusive a queima da cana, por causa da chantagem social. A alternativa à queimada é a mecanização da coleta. Tenho opinião clara a respeito: empregos dessa qualidade não devem existir. A mecanização é preferível. Ao mesmo tempo, aí sim, caberia ao estado investir na qualificação dessas pessoas, para que tenham acesso a empregos de melhor qualidade. O outro argumento dos usineiros é que, quando os canaviais crescem, absorvem carbono, logo criam para eles o direito de queimar e emitir carbono. Esse é o argumento que chamo lambão. Ninguém tem mais o direito de emitir gases de efeito estufa. A idéia do crédito de carbono está associada, para ser legítima, ao limite tecnológico das atividades. Aquelas que têm alternativa não poluente disponível, não deveriam poder adquirir direitos de emissão sem prazo e sem quotas setoriais. Depois, queria ver o balanço seqüestro/emissão dessa indústria.

A repórter Carolina Elia conta aqui em O Eco, que os produtores de ferro-gusa de Carajás continuam como uma grande e crescente ameaça à floresta Amazônica, operando em uma outra frente de desmatamento, nos estados do Maranhão e do Pará. Além de desmatarem, sonegam informação, mascaram estatísticas, manipulam informações. Transformam uma atividade econômica em uma operação na fronteira da contravenção e do crime. O que mais não farão, naquelas paragens ermas do país, onde falta estado e a autoridade pública praticamente foi erradicada pelo mandonismo privado, pelo clientelismo político e pela conivência?

Quando o estado aparece, flagra: nos últimos cincos anos oito das 13 empresas produtoras daquele nicho sonegaram a origem de 7,7 milhões de metros cúbicos de carvão. Tudo indica que feito com madeira amazônica nativa. Uma atividade ilegal que movimentou R$385 milhões. Quem desmata, adultera ATPFs, consome produtos ilegais e descumpre todas as leis, optou por habitar a fronteira desse Brasil que transgride todas as leis: desmata, mata, escraviza, trafica, contrabandeia. Nele, todos os gatos são pardos, ou gatos. Não existe pecado venial. Esse Brasil é, hoje, o principal obstáculo a nosso progresso civilizatório. Jamais nos tornaremos uma Nação civilizada, se continuarmos a tolerar a ilegalidade, a informalidade e a falsidade, sobretudo na escala em que existem entre nós, de Norte a Sul.

Carolina Elia conta, em outra matéria para O Eco, que os produtores de ferro-gusa do Pará e do Maranhão, têm se reunido para negociar uma saída honrosa para a autuação do IBAMA. Vamos cair, novamente, no uso conivente de um mecanismo do tipo “termo de ajuste de conduta”. Só mesmo no Brasil, onde se tolera o intolerável, o estado patrocina formas lenientes de solução para o comportamento ilegal. Não existe outro caminho moralmente admissível, se não a punição da ilegalidade, na forma da lei. O que se pode negociar, é o futuro. Jamais o passado ilegal. O crime no Brasil compensa, porque ele gera benefícios e não custos. A lei que mais se cumpre no país é “vamos esquecer o passado” e seu parágrafo primeiro, “o que passou, passou”. Por isso nos locupletamos todos e não se restaura a moralidade. Eu escrevi restaura?

Mas nenhum desses casos se refere, estritamente, a uma questão de regulação estatal. Quando olhamos todo o contexto verificamos que essas duas commodities – álcool e gusa – estão no miolo de importantes cadeias produtivas brasileiras, em cuja ponta final estão algumas das estrelas brasileiras de competitividade mundial. A indústria brasileira produz, hoje, carros flex-fuel, que ganham mercado por causa da vantagem de preço obtido no uso combinado ou alternado de gasolina ou álcool, mas que são anunciados como mais “limpos”. A siderurgia brasileira é campeã mundial de competitividade e qualidade. Nenhuma delas escapa ao teste da cadeia: se a cadeia for suja, as empresas, por melhores que sejam, se consomem produtos sujos na cadeia, são sujas. Tornam-se vulneráveis ao boicote do consumidor internacional, preocupado com a mudança climática e a destruição da Amazônia. Mais cedo ou mais tarde, serão cobradas pelas emissões e pela devastação que patrocinam. Quando acontecer, a queda da demanda introduziria um elemento de mercado, nesse caso negativo, a queda da demanda, que induziria a mudança de comportamento. Mas com um enorme passivo acumulado.

Há, entretanto, dois outros componentes que precisam ser levados em consideração. Um, a obrigação moral de qualquer empresa séria, que deve impedí-la de fazer negócios com empresas que exerçam qualquer tipo de atividade ilegal. O outro, um elemento de responsabilidade corporativa. Toda empresa deseja o máximo de liberdade de mercado e o mínimo de interferência do estado. Só os liberais mais radicais são capazes de acreditar que o mecanismo de preços é infalível e tem solução para todos os problemas. A maioria sensata sabe que o mecanismo de preços é imperfeito, que não há informação perfeita no mercado e que há desvios de conduta, perfeitamente racionais do ponto de vista privado e inaceitavelmente lesivos do ponto de vista coletivo. Nesses casos, as correntes social-democráticas indicam a regulação estatal como solução. Em alguns casos, a regulação estatal é a única solução aceitável.

Mas não é assim, em nenhuma das duas situações descritas acima. Ambos são casos em que é perfeitamente possível combinar soluções privadas e regulação estatal, de modo a reduzir o peso desta última, transformando-a em recurso de última instância. A noção de responsabilidade corporativa existe para criar alternativas privadas à ação estatal, nos campos econômico, social e ambiental. Os dois casos, do álcool e do ferro gusa, se prestam a um outro tipo de solução de mercado que não é via mecanismo de preços: a auto-regulação. Um protocolo firmado pelas empresas sérias, de que não transacionarão mais com as empresas transgressoras, impondo padrões de conduta empresarial, trabalhista e ambiental ao longo de toda a cadeira produtiva que comandam. Há empresas sérias em todos os pontos dessa cadeia. Reunidas por um compromisso moral de boa conduta são capazes de expulsar de seu meio aquelas que preferem a ilegalidade.

Está acontecendo, uma experiência dessas, com as formas mais condenáveis de relações de trabalho, que a OIT denomina de trabalho escravo. Não implicam em grilhões de ferro, nem açoites, mas em formas degradantes e repressivas de trabalho, incluindo amarras financeiras que, na prática, anulam a liberdade de ir e vir dos trabalhadores e dão a justificativa, aos patrões, de usar segurança própria para garantir o pagamento das dívidas contraídas no barracão da empresa. Tudo ilegal e ilegítimo. Recentemente, uma articulação que reuniu a OIT, o Ministério do Trabalho, uma ONG jornalística e o Instituto Ethos, criou um pacto contra o trabalho escravo. Um protocolo de compromissos assinado por associações empresariais, como a Firjan – Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, ou empresas individuais, como Wal-Mart, Carrefour, Pão de Açúcar e Petrobrás. Quem assina se compromete a examinar sua cadeia produtiva e interromper relações com empresas que usem trabalho escravo. Essa prática já vem sendo objeto de ação de grupos internacionais, com o objetivo de convencer as autoridades e consumidores de seus países e os organismos multilaterais a adotarem medidas contra empresas e países que adotem ou tolerem essas práticas. Já houve eventos concretos derivados desse protocolo. Os supermercados que assinaram chamaram seus milhares de fornecedores para rever procedimentos. Pelo menos em um caso, do Wal-Mart, um frigorífico teve que provar que não comprava carne de um pecuarista na lista suja, para continuar fornecendo seus produtos. A Petrobrás cortou as compras de uma usina de álcool na lista suja, cheia de pistolões no Congresso Nacional.

Um protocolo entre as empresas sérias desses setores, forçaria produtores em duas cadeias críticas para a economia brasileira, a adotarem práticas adequadas de comportamento empresarial, trabalhista e ambiental. Evitariam o risco de dano moral a suas imagens, cada vez maior, o risco de perdas econômicas e o risco regulatório setorial, com o simples compromisso de serem legais, literalmente. Uma contribuição privada – e de mercado – à busca de padrões civilizados de organização econômica, social, política e ambiental para o Brasil. Atitude compatível com a imagem internacional que ainda têm.

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