Quando saiu a síntese do relatório do IPCC de 2001, a BBC deu uma nota fria, na seção de “Ciência e Tecnologia”, dizendo que “um rascunho de um relatório escrito por consultores das Nações Unidas diz que a decisão sobre como lidar com a mudança climática está envolvida em incertezas. Ele recomenda fortemente uma estratégia prudente de gestão de risco e cuidadosa consideração das conseqüências ambientais e econômicas”. Hoje, ao noticiar o mesmo evento, a BBC estampava a seguinte chamada na primeira página: “Humanos culpados pela mudança climática. A atividade humana provavelmente elevará as temperaturas globais entre 1,8C o e 4 C o no próximo século, alertam cientistas”. No texto da matéria, o IPCC já aparece com identidade certa, a cobertura é muito menos fleumática e muito mais extensa.
O que aconteceu com a BBC aconteceu com toda a imprensa global. Em 2001, o IPCC ainda era visto como um grupo de cientistas que ficava se preocupando com essas coisas longínquas como o aquecimento global. O relatório já afirmava claramente que o mundo estava aquecendo mais rápido que o previsto, que isso se devia em parte à ação humana e que se não se agisse com rapidez, o processo se tornaria irreversível, com conseqüências em grande medida imprevisíveis mas, provavelmente, muito negativas para a humanidade.
O espaço da mídia era dividido entre os que apoiavam as conclusões do relatório e os que a negavam, como alarmismo sem base científica suficiente. Autodenominados “céticos”, eram na verdade apenas defensores empedernidos do status quo, das indústrias do carbono. Entre um relatório e outro, os “céticos” viraram os “contra” (“contrarians”) e a mídia havia descoberto a realidade da mudança climática e sentido a demanda de seu público por informação – e opinião – a respeito.
Hoje, apenas certo neopopulismo conservador, como o de Bjorn Lomborg, continua negando o inegável. Lomborg ainda é capaz de bobagens do tipo: é melhor gastar dinheiro combatendo a malária nos países subdesenvolvidos, um problema de hoje, do que a mudança climática que vai acontecer daqui a 100 anos. Tanto seus textos atuais, como seu livro, O Ambientalista Cético, estão cheios de “pegadinhas” desse tipo e manipulações de estatística. Lomborg ensinou estatística no Departamento de Ciência Política da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Quando eu fazia carreira acadêmica, um colega não muito bem dotado, cientista político, costumava dizer aos alunos que eles deviam estudar estatística para não serem “empulhados com números”. Lendo Lomborg achei que ele tinha um ponto.
Consenso científico
Entre 2001 e 2007, o que aconteceu foi uma importante mudança científica. Houve muita controvérsia sobre o relatório de 2001. Muita dúvida sobre suas bases científicas e seus fundamentos empíricos. A maioria absoluta das principais dúvidas foi adequadamente respondida por estudos científicos usando metodologia de ponta e recursos tecnológicos que também foram aperfeiçoados nessa meia década. Um dos marcos desse consenso foi a divulgação pelas Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos, de um relatório fazendo a reconstrução do comportamento da temperatura na superfície da Terra nos últimos dois mil anos.
Um dia antes do lançamento do relatório, um estudo assinado por sete climatologistas de primeira linha, publicado na revista Science mostrava que as previsões do IPCC, desde seu lançamento, em 1990, foram muito precisas quando confrontadas com os dados efetivamente medidos, tanto para o avanço da concentração de CO2 na atmosfera, quanto para a mudança de temperatura média global. Os modelos só foram imprecisos – para menos – em relação à elevação do nível do mar, uma área de maior incerteza e complexidade. A química atmosférica Susan Solomon, co-presidente do Grupo de Trabalho I, responsável por essa parte do relatório do IPCC sobre a ciência do clima, disse na apresentação do relatório que os modelos da versão 2007 são mais “robustos”, seus resultados mais “precisos” e, como os modelos foram rodados 8, 10 vezes, mais “seguros”.
A melhor avaliação em tempo real do relatório está no blog de climatologistas RealClimate.com, que, entre outras coisas, diz que a conclusão de que o aquecimento recente de larga-escala excede o intervalo observado em séculos passados saiu de “nos últimos mil anos”, para “nos últimos 1.300 anos” e a confiança nesta conclusão saiu de “provável”, indicando uma probabilidade superior a 66%, para “muito provável”, correspondendo a uma probabilidade superior a 90%.
Hoje, as principais incertezas científicas, segundo eles, envolvem a natureza precisa das mudanças que se pode esperar, particularmente com relação à elevação do nível do mar, mudanças no El Niño e mudanças hidrológicas regionais – freqüência de secas e derretimento de neve, tempestades em latitudes médias e furacões.
Preocupação popular, sensibilidade política
Uma coisa é certa. Quando se entra em um táxi, em qualquer cidade do mundo em que os motoristas de táxi falem com os passageiros e o motorista dá uma opinião sobre um determinado assunto, é porque ele virou um tema popular. Os politólogos denominam “public issue”, o primeiro passo para a produção de novas políticas públicas.
Algumas semanas antes do relatório do IPCC, fui a São Paulo, e no trajeto do aeroporto de Congonhas aos Jardins, comentei com o motorista que havia saído do Rio de Janeiro debaixo de chuva e chegado a São Paulo com sol aberto. Ele respondeu que era “por causa disso que estão falando aí que está deixando o clima enlouquecido, esse esquentamento global”.
Uma semana antes do relatório sair, dois motoristas esperando passageiros conversavam sobre o tempo, e um deles saiu-se com esta: “o clima tá ficando doido e o povo lá em cima não houve os científicos”.
É conversa para deixar os cientistas de cabelo em pé. Tudo que eles não querem é ver esses erros se repetirem, principalmente na mídia, atribuindo qualquer pequena ou grande variação local no tempo à mudança climática.
Mas a mudança climática caiu na boca do povo e isso é irreversível. Até porque, de agora em diante, as notícias de novos estudos, novas evidências, novos blocos de gelo se desprendendo nos pólos, neve desaparecendo nas altas montanhas do mundo, ondas de calor, secas mais intensas se sucederão na imprensa do mundo todo. Vai ser assim porque o volume de estudos, observações e descobertas está aumentando, resultado dos investimentos na ciência do clima nos últimos 15 anos. Vai ser assim porque virou pauta da grande imprensa. Quando começamos O Eco, há pouco menos de três anos, não era.
Quando um tema cai na boca do povo, acaba entrando na boca dos políticos. Foi tanta a pressão, por exemplo, que George Bush foi obrigado a pronunciar, no seu discurso sobre o Estado da União, a frase que considerava impronunciável e que censurou nos textos e entrevistas dos cientistas das agências federais: “o sério desafio da mudança climática”.
O relatório que saiu é apenas uma síntese política do relatório científico completo, que sairá em março. O relatório sobre os efeitos da mudança climática nas várias regiões do mundo sairá em meados do ano. Cientistas e diplomatas passaram dias inteiros debruçados em cada frase do texto, para chegar a um consenso sobre o fraseado exato que atendia às idiossincrasias de cada parte. Em 2001, o bloqueio foi comandado pelos Estados Unidos, que criou muito caso e teve uma atitude negativa. Dessa vez, foi a China, houve um momento que produziu uma hora de discussão em torno de uma frase de nove palavras. O Canadá e a Arábia Saudita também atrapalharam. Mas, os participantes atestaram um avanço importante desta vez: uma atitude geral mais construtiva e colaborativa, inclusive do EUA.
O relatório completo, com mais de 2.000 páginas sairá no final do ano. Pauta garantida. Nesse meio tempo, também veremos mudanças importantes no clima político em relação à mudança climática. Hoje há consenso de que o Protocolo de Kyoto não é uma boa resposta. Ele teve seus resultados ainda mais prejudicados pela não adesão do EUA, pela resistência do Canadá em observar as cotas e pelo crescimento destemperado da China. Cresce, também, o consenso de que o mecanismo de governança da Convenção do Clima é inadequado. A Convenção, o IPCC e o novo acordo que sucederá Kyoto não cabem no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O presidente Jacques Chirac tem defendido uma “ONU Ecológica”, com toda razão. No mesmo momento em que era lançado o IPCC, Chirac recebia em Paris celebridades científicas, intelectuais e políticas de todo o mundo para discutir uma nova governança global para o clima.
Resta pouca dúvida de que o mundo precisa de uma Organização Mundial do Clima; de que o Protocolo de Kyoto precisa ser substituído por um mecanismo mais eficaz, mais compulsório e mais generalizado; de que o braço científico da Convenção do Clima precisa ter autonomia em relação a seu braço político. E, para parafrasear o IPCC: uma mudança nessa direção nos próximos cincos anos é muito provável.
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