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Bolha ambiental ou tendência real?

Dinheiro sobrando, medo do aquecimento global, demanda por energias alternativas e muita propaganda do álcool brasileiro, sem exame de seus problemas. Vem aí a bolha ambiental.

16 de fevereiro de 2007 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Eu vi acontecer com as pontocom. De repente, um bravo novo mundo se abria diante de todos. Jovens brilhantes, criando sites interessantíssimos, empresas revolucionárias. Era o mundo da economia virtual. Lembro-me dos erros dos dois lados. Os analistas de mercado, que diziam não ter erro, era a ponta de um iceberg que iria emergindo ao longo da década e reinventaria a economia do planeta. Os analistas céticos diziam que era uma bolha, que aquelas empresas não tinham fundamentos, sequer eram reais. Um dos exemplos era a Amazon.com, que diziam não ter ativos, e um passivo gigantesco, portanto não sobreviveria.

Mas havia os que entendiam essa nova coisa, o espaço ciberal, que pode ser até mais real que o espaço físico. Esses, encastelados em lugares como o MIT Media Lab ou a Global Business Network, empresa de futurólogos, sabiam que os dois lados haviam visto uma parte do problema, mas por causa do viés de cada um, não sabiam separar o que realmente era tendência, do que era “fad” (modismo). Eles sabiam que havia uma bolha e sabiam que nem tudo era bolha.

A bolha explodiu da maneira mais espetacular possível, com direito a fraudes e escândalos. Muita gente ganhou dinheiro. Muita gente perdeu dinheiro. As pontocom não deixaram de existir, mas são, hoje, analisadas com mais técnica e sobriedade, mais conhecimento e menos açodamento. A Amazon.com sobreviveu e vai muito bem. A Google bombou depois da bolha explodir. E os marmanjos do sistema financeiro só o descobriram recentemente, quando ele já era figurinha fácil entre a rapaziada ciberespacial e aí encheram o YouTube de dinheiro. O site vídeociberal acabou comprado pelo Google. Transações nada virtuais, diga-se de passagem, no espaço cibercultural.

Os elementos da bolha

Quais eram os componentes por trás da bolha das pontocom? Um processo real: a expansão da internet, o crescimento do número de internautas, os avanços tecnológicos e não só em IT, a multiplicação de mídias e as mudanças na tecnologia e na economia das comunicações em escala global. Esse processo – e outros que não cabe detalhar aqui – tinha fundamentos concretos, atendia a demandas e necessidades reais, representava uma linha de tendência definidora da economia, da sociedade e da política do século XXI. Esses fundamentos determinavam o crescimento da demanda por profissionais qualificados, nas mais diversas áreas do conhecimento. Coisa sistêmica, que abrange muitas áreas científicas e tecnológicas, entre elas, mas não exaustivamente, a nanotecnologia, a robótica, a gestão de informação e conhecimento, a tecnologia da informação, a ciência da computação, foras as áreas pertinentes da física e tantas outras. Uma grande demanda por qualificação novas categorias científicas, técnicas e profissionais. Como toda fronteira, abre espaço para aventureiros, oportunistas, espertos, que se misturam aos verdadeiros desbravadores, pioneiros, visionários. Até aí, nada demais.

Mas havia um componente explosivo adicional. Um processo financeiro: uma bolha gigante de liquidez, produzida pela expansão mundial pós crise da Ásia e antes do cataclismo do 11 de setembro. A liquidez produziu um surto especulativo, no qual o preço das pontocom em Wall Street atingiram níveis insustentáveis. Eu vi especuladores especularem e vi investidores sérios, preocupados com os efeitos da bolha nas boas pontocom que existiam e que respondiam a necessidades reais ou ofereciam oportunidades inovadoras de uso das novas tecnologias. A crise inevitável deu sinais muito antes da explosão final. Ainda assim, muita gente se manteve na crista de uma onda que já se sabia iria estourar mal. Ao fim da bolha seguiu-se o 9/11 e o cenário piorou muito.

Mas o ataque às torres gêmeas, a aventura malsinada das forças do EUA no Afeganistão, a invasão do Iraque, que faziam prever fortes problemas para a economia global, ao contrário, acabaram levando, por caminhos inesperados a uma inédita expansão continuada e forte da economia mundial, puxada por duas forças contraditórias, porém se movendo na mesma direção por muitos anos: China e EUA. O resultado foi uma bolha ainda maior de liquidez financeira internacional, em busca de um novo ponto de ancoragem.

Entra o aquecimento global

Nos últimos anos, a ciência do aquecimento global se vulgarizou. Tem newsletter circulando de montão no mercado financeiro, cujo capítulo inicial é, justamente, sobre a ciência do clima. O consenso entre os cientistas, derrotou os chamados céticos. Hoje só é cético quem é bobo, ignorante, ou ganha dinheiro com o ceticismo, como Bjorn Lomborg ou aqueles pagos pelas empresas intensivas em carbono para desmentir o que já não é contestável. Essa cristalização do conhecimento sobre o clima, terminou por produzir mudanças importantes na política e no meio empresarial global. O sinal é claro: há uma tendência efetiva de estabelecimento de uma nova mentalidade política e empresarial em relação ao clima.

Onde há controvérsia? Na tecnologia e nos caminhos para lidar com a mudança climática. Primeiro, há dúvida de se já temos as tecnologias disponíveis para promover uma mudança gradual, mas o mais rápido possível – de preferência em uma década – para uma economia de baixo carbono. Segundo, se deve ou não haver uma reabilitação da energia nuclear. James Lovelock, por exemplo, diz que é a única tecnologia disponível para substituir, na escala e no tempo necessário, os combustíveis fósseis. Terceiro, se soluções que combinam regulação e iniciativa privada, como o Protocolo de Kyoto com seu mecanismo de desenvolvimento limpo e os créditos de carbono, serão eficazes nesse processo de conversão da economia global. Quarto, se a bioenergia ou agroenergia terá algum papel relevante, sustentado, nesse processo. Há outras, inúmeras controvérsias desse tipo, todas relevantes, mas não interessam para o argumento presente.

E não podemos deixar de considerar o medo. É a variável social. No caso das pontocom, o dado social vinha dos crescentes encanto e entusiasmo pelas múltiplas possibilidades do ciberespaço, aberto a todas as tribos, resolvedor de problemas e, além disso, avalizado por gurus de calibre que iam de William Gibson a Nicholas Negroponte. Agora é o temor crescente da população, principalmente nos países mais desenvolvidos, com o apocalipse embutido nas versões mais messiânicas do aquecimento global.

Formação de bolha

A soma dessas coisas dá bolha. Se não, vejamos: uma enorme liquidez, que mantém parcelas significativas do capital financeiro mundial rendendo aquém do que precisa para que os fundos – de pensões, de investimento, de riqueza financeira – atinjam suas metas de rentabilidade, mesmo com os juros do EUA subindo. Expansão de consumo de qualquer coisa alternativa que prometa ajudar a evitar o aquecimento global. Um problema real, que demanda tecnologias reais, algumas disponíveis, outras em fase final de desenvolvimento, outras emergentes, outras apenas prometidas. Boas e más empresas vendendo soluções variadas. Uma nova fronteira, cheia de aventureiros, oportunistas, desbravadores e visionários. Só falta começar a especulação.

E há sinais no ar, de que já estamos no comecinho de uma onda especulativa. De repente, o etanol, que o Brasil usa desde os anos 70, virou febre. Fico imaginando o que pode sair de um acordo entre Lula e Bush em torno de bioenergias. Até mesmo o mercado de créditos de carbono, de futuro ainda incerto, anda aquecido, embora os preços na bolsa do clima ainda não estejam respondendo. Mas, de repente, todo mundo quer entender e entrar nesse mercado. O Brasil, que até pouco tempo desprezava o MDL e o mercado de neutralização de carbono, também entrou na febre.

Estamos claramente no início de uma explosão de demanda por profissionais na área ambiental. Especialmente engenheiros ambientais e florestais, para projetos de geração de créditos de carbono, dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, o MDL, e de neutralização de emissões de carbono, como mostrou matéria recente do jornal Valor. Faltam profissionais qualificados, que conheçam esses mecanismos e sejam capazes de fazer os inventários e as certificações requeridas.

Os investidores brasileiros ainda não aproveitam adequadamente as oportunidades nesse campo. Há muitas empresas de consultoria, hoje, operando, com créditos e neutralizações de carbono, mas os projetos de porte ainda são poucos. Até agora foram aprovados 506 projetos no mundo todo. Em número de projetos registrados, a Índia é líder, com 32% do total, seguida do Brasil, com 17%. México é o terceiro, com 14% e a China, quarta, com 7%. O Brasil é o terceiro, mas está perdendo espaço. Quando se conta o volume esperado de reduções anuais de emissões de carbono, a China dispara na frente, com 41%, seguida do Brasil bem de longe, com 14%, empatado com a Índia (13,85%) e o terceiro lugar fica com a Coréia, com 11%. O México entra com modestos 5%.

Depois de certo tempo de crescimento lento, as coisas agora aceleraram. O projeto de número 500 foi registrado no dia 11 de fevereiro, para uma usina de energia eólica na Índia. Dois dias depois, já eram 506 registros. Entraram quatro novos da Índia, um de Israel e outro da África do Sul.

Energia eólica, por exemplo, é uma área na qual o Brasil teria enormes possibilidades, principalmente no Nordeste e em áreas da nossa costa, mas poucas iniciativas relevantes. Aqui a iniciativa privada fica esperando o governo dar a direção e se o governo é atrasado, nada acontece. Nessas áreas de infra-estrutura predomina a mentalidade da empreitada.

Onde está havendo uma febre, é na bioenergeria. Hoje, qualquer um, com uma boa conversa consegue levantar recursos na Europa e no EUA para investir em álcool e biodiesel no Brasil. Tenho ouvido estórias todas impressionantes, de fundos criados sem maiores estruturas, que captam centenas de milhões de dólares em pouco tempo, para investimentos em álcool e biodiesel no Brasil. Com a liquidez internacional persistente, sobra dinheiro e os fundos já não sabem o que fazer para buscar rentabilidade, reduz-se a aversão ao risco, aumenta a complacência do mercado, muitos começam a fazer vista grossa para erros que, em situações normais condenariam muitos projetos à lata de lixo. Está com pinta de que se forma uma bolha de álcool.

Tendência e risco

Nem tudo que está na moda se esfumará no ar, na hora da verdade. Há necessidades e oportunidades reais. Com certeza, a agroenergia será parte – não toda – da solução e o Brasil pode ocupar uma posição de vanguarda nesse campo. Precisa investir no desenvolvimento de tecnologias de produção de etanol celulósica, que permitiriam usar bagaço de cana, rejeitos agrícolas e gramíneas. Precisa integrar mais álcool, biodiesel, energia elétrica. E precisa, sobretudo, de regulação e aplicação da lei, para que essas oportunidades se restrinjam a áreas já convertidas e não avancem sobre o que resta de Amazônia e de Cerrado. Mas, da mesma forma que a energia nuclear será inescapável, pelo menos como solução de transição, até que se desenvolvam outras tecnologias de produção em larga escala, a bioenergia será uma alternativa irrecusável, especialmente em potências agroindustriais como o Brasil. É inacreditável que o Brasil não invista o suficiente em energia eólica e em energia solar, outras duas óbvias possibilidades que podemos explorar com vantagem.

Há riscos reais, também, nesse processo. No caso do Brasil esses riscos são de dupla natureza. De um lado, há o risco de investidores embarcarem em canoas tão furadas quanto aquelas que afundaram no estouro da bolha das pontocom. Podem queimar todos os recursos em projetos óbvios de etanol e não investir em novas energias todas muito promissoras para o caso do Brasil. Quando a bolha estourar – e toda bolha eventualmente explode – o dinheiro some e ficará muito mais difícil levantar recursos para esses desenvolvimentos. Aí todo mundo ficará esperando que o governo faça e ele, mergulhado nessa crise fiscal profunda e estrutural, dificilmente o fará. Falta inteligência na aplicação de incentivos e desincentivos para aproveitar o máximo dessa bolha.

De outro lado estão riscos ambientais significativos. Eles derivam dessa febre, que pode levar à implantação de culturas energéticas e usinas de bioenergia, que põem em perigo a nossa biodiversidades e nossos remanescentes de floresta e cerrado e ameaçam o Pantanal. Esses perigos se somarão aos riscos associados à forte recuperação dos preços e das vendas de soja e carne bovina brasileira. A subida do preço do milho no EUA, para produzir etanol – uma das pontas da bolha que se forma – puxou junto o preço e a demanda por soja. O crescimento do consumo aumentou a demanda por carne.

A hora da verdade

Este ano será a hora da verdade para a política do governo contra o desmatamento. As quedas de desmatamento coincidiram com a estagnação e crise da soja e da pecuária. O governo passou o tempo todo fingindo que a correlação não existe, para dar ênfase às suas ações de repressão e medidas que ainda são muito embrionárias para que se possa atribuir a elas grande papel nessa queda.

Agora é que se verá se o governo tem mesmo nas mãos instrumentos realmente eficazes para enfrentar a fúria dos grileiros e desmatadores, que formam a ala de frente do avanço do agronegócio sobre a floresta amazônica, o Pantanal e o cerrado. A esse forçamento já tradicional, que devasta, em média 20 mil quilômetros quadrados só de floresta amazônica, virá se somar a pressão da expansão da cana para mais álcool, da demanda por soja e outras oleaginosas para biodiesel. Pode ajudar a salvar as cotas de carbono no EUA e na Europa e nos colocar na triste condição de estupradores do que resta de mata e cerrado no Brasil. Por falar nisso, o governador Blairo Maggi, desativou a polícia florestal do Mato Grosso. Ele alega que é por causa da necessidade de mais policiamento por causa da violência urbana. Deve estar com medo do PCC.

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