Veio a calhar para quem não quer avanços na política climática o confronto entre George W. Bush e Vladimir Putin sobre a nova escalada armamentista. Ela começou com a proposta de Bush de criar um sistema de defesa com mísseis do EUA colocados na Europa. O pretexto é o combate ao terrorismo. Qualquer estagiário em estratégia militar sabe que terrorismo se combate com inteligência, em todas as suas acepções, e despolarizando um conflito que está se tornando intratável. Mais truculência alimenta mais terrorismo. Os dois são saudosistas da Guerra Fria e ambos são contra a proposta européia de mitigação da mudança climática. Como se vê, concordam discordando. O mesmo acontecia na guerra fria: EUA e URSS se garantiam reciprocamente a hegemonia em cada bloco, mantendo-se como pólos irredutíveis do confronto.
Vai melar
Agora, o encontro do G-8 que começa nesta quinta-feira na Alemanha, pode se dissolver numa seqüência de reuniões de “deixa disso”, para tentar esfriar a briga dos dois. A agenda da reunião que seria dominada pela mudança climática e, sobretudo, pela proposta alemã, endossada pelo Japão, de cortar pela metade as emissões de gases estufa até 2050. Claro, tudo que Bush não queria era ter que enfrentar a pressão dos outros e aparecer, novamente, isolado na pior posição. A provocação de Putin lhe deu o pretexto para chegar à Europa trocando desaforos com o russo e esquecendo a questão climática. Ele se preparara até para mostrar seu dever de casa aos outros, na forma da proposta de reunir os principais emissores e propor uma nova política para o clima.
Segundo os cientistas,o corte de 50% das emissões até 2050 seria o único caminho para manter o aquecimento global na casa dos 2 C o. Agora, a ameaça de Putin de apontar mísseis para a Europa e a acusação de Bush de que a Rússia desrespeita a democracia pode repor a geopolítica militar e diplomática no centro da agenda da reunião e melar a agenda climática.
O que Bush quer
É tudo que Bush quer. Se melar a discussão do clima na Alemanha, ganha em importância a sua proposta de uma cúpula dos 15 maiores emissores no final do ano no EUA. Para Bush e sua diplomacia retrógrada interessa manter o G-8 prisioneiro de uma pauta geopolítica convencional, dominada por considerações militares, de estratégia de segurança, só que agora não mais determinada pela polarização ideológica da era URSS-EUA, mas pelo terrorismo. Um G-8 dominado pela pauta climática deixa seu final de governo extremamente vulnerável nos Estados Unidos.
Não é só Putin que está reagindo a esse aggiornamento do sistema de mísseis proposto por Regan, que ficou conhecido por Guerra nas Estrelas e acabou sendo abandonado por enfrentar forte oposição, principalmente interna. Há muita rejeição em toda a Europa, inclusive na República Tcheca e na Polônia, locais escolhidos para sediar os mísseis de Bush. É difícil imaginar que Bush seja capaz, nesse final de governo, com a oposição em maioria, resistência doméstica e internacional, de instalar esse sistema e fazê-lo operacional nos próximos dois anos. Mas sua tenacidade é inegável e ele desconhece qualquer argumento contrário a suas convicções. Bush fala em violação da democracia, mas tem uma personalidade autoritária clássica e, sempre que pode, elide as regras democráticas.
Pode errar
Interessante é que essa sua proposta alternativa para o clima pode acabar dando resultado diferente do que ele espera. O climatologista Carlos Nobre costuma lembrar que o conhecimento que temos hoje da física do clima se deve, em grande parte, à maneira pela qual George Bush pai resolveu se opor às iniciativas de mitigação da mudança climática, na Rio 92. Ele se recusou a se comprometer com medidas mais concretas e disse que era necessário estudar mais a questão. Sua expectativa, muito provavelmente, é que investindo em pesquisas sobre o clima, conseguiria desmentir as previsões catastróficas daqueles ambientalistas reunidos no Rio. Ele investiu bilhões de dólares, os governos que o sucederam também, e o resultado foi o contrário: o amadurecimento das pesquisas climáticas mostrou tal volume de evidências e conhecimento sobre a dinâmica complexa do sistema climático, que gerou o consenso científico atual sobre o aquecimento global.
Bush pode também errar na sua expectativa de que um encontro dos 15 grandes emissores, dos quais EUA, Brasil, China e Índia são ostensivamente contra metas compulsórias e sistemas de cota e crédito de carbono, desvie a trajetória das negociações sobre o regime pós-Kyoto para um projeto de pesquisa de energias limpas, programas nacionais de controle de emissões, com metas e mecanismos internos de avaliação, mas sem se tornarem compulsórias mediante tratados internacionais, e metas globais “aspiracionais” de redução das emissões – desculpem o palavrão, mas traduzo o que está sendo repetido por toda a mídia mundial.
O objetivo de Bush é esvaziar o Protocolo de Kyoto, evitando que ele venha a ser renegociado, expandido e revalidado, a partir de 2012. Ele sugere, ao contrário, uma série de reuniões, a primeira seria organizada por ele no último trimestre deste ano, para que, até o final de 2008, cada país tenha seu plano d reduções de emissões pronto, refletindo a aspiração global de redução dos gases estufa. É o que muitos dos grandes emissores de carbono querem. A China, por exemplo, já apresentou seu plano. Seria perfeito se ela fosse do tamanho da Nicarágua. Para a China, não dá para saída.
Mas no plano político-diplomático Bush pode estar repetindo o erro do pai, para benefício do planeta. A frase mágica que pode resultar no contrário do que ele espera é “precisamos nos reunir num comitê menor e decidir entre nós os objetivos de uma política do clima, que cada um de nós, responsavelmente, implementará”. Ao atirar contra Kyoto e a Convenção Quadro do Clima, Bush pode acertar o nó cego que impede avanços significativos.
Rompendo o impasse
Nenhum “tratado ônibus”, do qual todos os países participam em igualdade de condições, deu resultados significativos na história diplomática do mundo. O politólogo Eduardo Viola, lembra que todas as iniciativas bem sucedidas nasceram de uma coalizão restrita de países centrais para os pontos daquela agenda que deveriam negociar. Desse núcleo de países saem as regras para um sistema de governança que se deseja global, o sistema de incentivos que atrairão outros países para o tratado, se for o caso, e as condições para adesão ao tratado.
Se Bush tiver sucesso em criar esse núcleo estratégico para discussão de uma política climática pós-Kyoto, o resultado pode ser muito diferente do que ele deseja. Primeiro, porque seguramente a institucionalização de um pacto desse tipo se dará depois da expiração de seu mandato, segundo porque a pressão interna por ações mais efetivas na maioria desses países provavelmente afetará a dinâmica das decisões e os levará a um sistema mais compulsório de metas de redução de emissões.
Os incentivos à adesão posterior de outros países podem ser variados. Alguns são claros: recursos para pesquisa científica e tecnológica, novos mecanismos de créditos de carbono, condições mais favoráveis de comércio e acesso a fundos de financiamento.
O impasse na Convenção Quadro do Clima parece a essa altura, após tantas tentativas fracassadas, insuperável. Países em situações inteiramente distintas se aliam para bloquear qualquer decisão que fira seus interesses comuns.
Dessa forma, a China deixa o Brasil assumir a liderança da resistência contra metas, embora suas situações sejam inteiramente distintas. No caso do Brasil, metas de emissão não representam sacrifício algum. Zerar o desmatamento da Amazônia não é sacrifício, é obrigação. Outro dia a imprensa noticiou que Thelma Krug, a recém-nomeada secretária de Mudanças Climáticas do Ministério do Meio Ambiente, teria perguntado à ministra Marina Silva até onde a redução do desmatamento da Amazônia poderia ir, sem sacrificar o desenvolvimento econômico. Sua pergunta teria ficado sem resposta. Fiquei espantado que nenhuma das duas saiba a resposta: até zero. Estancar o desmatamento que hoje é quase 100% ilegal, não sacrifica desenvolvimento algum. O desenvolvimento da Amazônia não pode depender de desmatamento ilegal e, na verdade, de desmatamento algum. Não é admissível que essa seja a qualidade de desenvolvimento que aspiramos.
Um sistema de governança em que a Arábia Saudita – um governo sem democracia, que existe para promover o enriquecimento de sua aristocracia com o comércio de petróleo – tenha poderes de veto na redação dos relatórios do IPCC, não vai muito longe.
Bush pode estar acertando por razões 100% erradas. Há uma considerável quantidade de politólogos, ambientalistas e especialistas que considera que o mecanismo da Convenção Quadro que replica as regras inoperantes da ONU não levará a um sistema de governança global do clima compatível com o desafio presente posto pelo ritmo e extensão da mudança climática.
Há aqueles que, legitimamente, se preocupam que uma iniciativa dessas escape das restrições necessárias embutidas nos tratados sob o guarda-chuva da ONU, que consideram a única forma de garantir accountability (responsabilidade e prestação contas) aos acordos. Mas a OMC e a Comissão Internacional da Baleia mostram que é possível mecanismos funcionais e compulsórios, obedecidos pelos signatários, fora do quadro desgastado das Nações Unidas. Além disso, nada impede que um acordo mais limitado seja, depois, adotado pela Convenção do Clima e incorporado a um Protocolo que substitua o Protocolo de Kyoto, que perderá vigência em 2012.
A questão crucial é o tempo. As decisões finais, programadas para 2012 já se darão fora do alcance da influência de Bush. Mesmo que o estágio inicial de sua iniciativa desvie esses países do objetivo de se obter uma solução para o pós-Kyoto, o fato é que em 2009 e 2010, esse grupo poderia redefinir sua trajetória e chegar a um resultado mais rápido e mais eficaz do que os que se têm obtido nas sucessivas COPs (as reuniões das partes signatárias da Convenção do Clima). As últimas COPS todas terminaram em impasse.
Seria preferível que se pudesse romper esse impasse do clima sem a ajuda dos erros de Bush. Mas como os Estados Unidos são o maior emissor e sem seu concurso nenhum acordo funcionará, tudo indica que esse atalho que ele imaginou para escapar de compromissos, pode acabar levando a um acordo que institua uma efetiva governança global do clima. Não é certo que as coisas acontecerão desta forma. Mas também não é certo, que elas caminhem como Bush quer.
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