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Não tem milagre

Não existe o “milagre chinês”, como não existiu o “milagre brasileiro”. O modelo chinês não é sustentável econômica, política, social, ou ambientalmente. Só não vê quem não quer.

23 de agosto de 2007 · 17 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

“Embora um país possa desaparecer, suas colinas e rios permanecem”, é lembrando esse verso do poeta Du Fu, da dinastia Tang, que Gaoming Jiang e Jixi Gao começam uma análise franca dos “terríveis custos do crescimento chinês” e concluem que “nosso país persiste, mas nossas colinas e nossos rios foram devastados”. Gaoming Jiang é pesquisador-sênior do Instituto de Botânica da Academia de Ciências da China. Jixi Gao é diretor do Instituto de Ecologia da Academia de Ciências Ambientais da China. Em artigo publicado no início deste ano, os dois apresentam uma visão austera e sem retoques – coisa rara por aquelas bandas – do padrão de desenvolvimento chinês. A síntese que fazem desse padrão é curta e grossa: “ao longo dos últimos 27 anos a China aderiu a um modelo econômico caracterizado por altos níveis de poluição, emissões e consumo de energia, combinados a baixos níveis de eficiência”.

Faltou adicionar que esse modelo de crescimento desordenado e ineficiente se assenta em um regime ultra-autoritário e no controle absoluto das transações econômicas pelo estado, o qual é governado por uma facção dominante do Partido Comunista Chinês. A criação de uma economia de mercado se dá sob controle desse aparato político-estatal de governança que impõe a convivência desigual entre a lógica de mercado e a lógica das hierarquias. O modelo chinês tem seu dinamismo em grande parte determinado por duas forças contraditórias, mas no momento convergentes: a primeira, externa, é determinada pelo movimento de globalização dos capitais e das empresas transnacionais; a segunda, interna, pela demanda doméstica em grande escala, levando a uma expansão desordenada e sem controle social, seja de consumidores, seja de cidadãos que se sintam ameaçados por seus “terríveis custos”.

O estímulo da ameaça de colapso
A força da globalização é parte da dinâmica de constituição de uma nova ordem planetária no Século XXI . É um dos elementos da ordem emergente. Está na sua fase “selvagem”, em grande medida dominada pela especulação e por um impulso de expansão quase a qualquer risco. Mas a tendência que se vislumbra, até por causa dos efeitos do aquecimento global que se farão sentir cada vez mais no curto prazo, é de “domesticação” dessa força pela pressão de consumidores e cidadãos com capacidades de ação também cada vez mais globalizadas. Com o tempo, provavelmente, um modelo de governança global sem governo estabelecerá limites regulatórios à ação dessas forças da economia globalizada.

Sob este aspecto, embora se beneficiem largamente do descontrole do crescimento chinês, elas serão inexoravelmente condicionadas pelas limitações que passarão a ser impostas, nas próximas décadas, por conta do aquecimento global, aos padrões de produção e consumo. Certamente, nenhuma das mega-empresas que operam hoje na China e se aproveitam de seu padrão insustentável de crescimento, deixa de considerar em seus cenários de longo a exaustão física e política desse modelo. Muito provavelmente todas elas têm um cenário, cujo prazo de realização vai se encurtando, que aponta o colapso do modelo chinês.

É, na verdade, essa perspectiva de esgotamento que acelera os planos e os investimentos dos agentes globais, que derivam para a China enormes volumes de investimento direto e de investimento em portfólio/equity. A percepção de risco de colapso em prazo não muito longo faz com que haja uma aceleração dos investimentos. Esse aumento de ritmo visa, também, a reduzir o prazo de maturação e de implantação dos empreendimentos, de modo a se beneficiar do ritmo fortíssimo de crescimento e das escalas chinesas, para amortizar esses investimentos e deles retirar lucro significativo, em prazo mais curto do que em outros países emergentes. O prêmio de risco chinês é elevado, mas o custo maior desse forçamento de ritmo é a rápida exaustão dos recursos naturais e a destruição também em escala chinesa do meio-ambiente.

A caça às ilhas entesouradas
A segunda força que leva ao aceleramento do crescimento é o próprio desequilíbrio doméstico produzido pela criação de “ilhas de capitalismo”, numa economia coletivista de controle estatal. São vários os desequilíbrios e as contradições desse modelo: entre mercado e controle hierárquico; desigualdades sociais crescentes, decorrentes da expansão da renda e do consumo nas “ilhas” e da persistência da pobreza e do padrão de “austeridade coletivista” no “continente estatal-coletivista”; exaustão de recursos naturais, num território naturalmente menos provido de riquezas naturais que o de outras nações emergentes.

Esses condicionantes forçam o ritmo porque é preciso atender o máximo de demandas de expansão das “ilhas” sobre o “continente”, por causa do efeito-demonstração que a afluência tem sobre os setores dela excluídos. Em termos sociológicos, os novos padrões de consumo e bem-estar da minoria admitida nas “ilhas de capitalismo” aumenta o sentimento de privação relativa, ou seja a percepção de que há chineses se dando melhor que outros e a demanda por mais renda e consumo.

Como o padrão anterior era de generalizada uniformidade dos padrões, exceto para os privilegiados do topo da hierarquia partidária, desigualdade já absorvida pela maioria, esse “descolamento” entre cidadãos anteriormente “iguais” gera grande insatisfação, aumenta as demandas por inclusão e a intolerância com o status quo. O resultado é enorme pressão social que tem sido controlada com repressão crescente. No longo prazo, é insustentável, ou se reduz essa distância sócio-econômica com aceleração do crescimento, ou se verá uma comoção social que pode destruir o sonho da “grande China” perseguida a ferro e fogo pelo PC chinês.

Os custos terríveis da via chinesa
Mas essa aceleração forçada tem os tais custos terríveis, sob a forma de degradação ambiental e acaba tendo rendimentos socialmente decrescentes. Como dizem em seu artigo Gaoming Jiang e Jixi Gao, “a degradação ambiental causa danos à saúde pública, afeta a estabilidade social e compromete o crescimento econômico sustentado. É um problema de primeira grandeza que ameaça não apenas o desenvolvimento, mas a sobrevivência do povo chinês”.

Para incluir novas parcelas da população nas ilhas de afluência e manter as que já estão incluídas, o modelo produz uma enorme quantidade de chineses que sofrem de doenças causadas pela poluição do ar e da água e a grande parcela dos que morrem delas, os que sofrem pela perda de áreas de agricultura por causa da chuva ácida e da desertificação, os que têm que ser removidos por causa do soterramento de suas vilas por tempestades recorrentes de areia, os que não têm acesso a água potável.

No caso da terra agrícola, não é apenas a degradação ambiental que reduz a capacidade de produção de alimentos. Como mostram os dois especialistas chineses, o avanço das construções urbanas também captura uma parte gigantesca desse espaço. Na última década do século passado, o número de cidades subiu de 315 para 521. Hoje já são 669. Estão sendo construídos 770 mil km2 por ano. Ao mesmo tempo, aumentou em 1,96 vezes a quantidade de terra ocupada pela mineração e 4,71 vezes, a extensão de território destruído pela atividade humana. Para compensar essa perda de espaço, a agricultura avanço desmatando (24% da expansão agrícola recente), destruiu os campos naturais (66%) e aterrou cursos de água (2%). O resultado é que a China se torna gravemente dependente da importação de alimentos.

O país consumiu 557 bilhões de metros cúbicos de água em 2000, 13 bilhões a mais que em 1988. A maior parte do crescimento desse consumo não foi de água renovável de superfície, mas de água exaurível de aqüíferos subterrâneos. As taxas de uso de água das principais bacias estão todas muito acima dos níveis internacionalmente recomendados: para as bacias dos rios Huai, Liao e Yangtze, é de 60%; para o rio Hai, é de 90%; e para a do rio Hei, de 110%, informam os dois.

O pior é que esse superconsumo de água, com exaustão das reservas, enfrenta dois problemas. O primeiro é que a água potável é mais escassa, por causa da poluição de rios e aqüíferos. O segundo – e por causa disso – é que essa superexploração dos recursos hídricos não é suficiente para atender às necessidades básicas, por causa da irracionalidade e do desperdício. De acordo com Gaoming Jiang e Jixi Gao, 60% das cidades da China enfrentam escassez de água e 110 delas (16%) vivem em emergência hídrica. Além disso, 86% dos cursos urbanos de água têm níveis de poluição muito acima do aceitável. No rio Huai, 79% da água não tem potabilidade; 80% já não serve para criação de pesqueiros e 32% não prestam nem para irrigação. Para piorar, outra fonte importante de água para a China, os glaciais, estão derretendo rapidamente com o aquecimento global. Essa perda de gelo provavelmente também se deve ao alto grau de poluição, que “pinta” as geleiras com o preto da fuligem, reduzindo sua capacidade de refletir a luz – e o calor – do sol, como indicou para o Ártico pesquisa recente publicada na revista Science. Essa tragédia ambiental cria um enorme contingente de “desvalidos ecológicos”, que se soma à enorme maioria excluída para gerar insatisfação social e demandas contraditórias, por inclusão, de um lado, e por restauração da qualidade ambiental de vida, por outro.

O reverso do progresso
Haverá um momento em que a força associada à globalização deixará de demandar crescimento e passará a demandar gestão ambiental e de qualidade. O caso recente dos brinquedos produzidos na China para a Mattel, que causaram danos à saúde de crianças, é apenas o primeiro de uma série potencial. O dano causado à imagem e à capacidade competitiva da Mattel em seus mercados “prime” lhe causa tanto prejuízo que ela nada podia fazer se não um recall generalizado de seus produtos de fabricação chinesa, com enorme prejuízo, e demandar da China novos patamares de qualidade e segurança.

Em breve consumidores desses mercados “prime” começarão a rejeitar produtos chineses, a despeito do preço convidativo, por razões sociais e, principalmente, ambientais, ligadas ao aquecimento global. Como fizeram os consumidores da MacDonald’s com a carne e a soja brasileiras associadas ao desmatamento da Amazônia. Nesse momento, a convergência entre essa força externa e a força doméstica de aceleração do crescimento desaparecerá e ficará apenas a contradição entre uma força do século XXI, que pode se mover na direção de um novo padrão econômico de baixo carbono e menor impacto ambiental em geral e a força doméstica associada a um modelo do século XIX e do início do século XX, para a qual não há alternativa boa.

Há outros problemas que os agentes econômicos da globalização ainda não querem ver, embora certamente os incluam em seus cenários e por isso aceleram o tempo de estada rentável no país. O sistema bancário chinês é primitivo. Não oferece as condições mínimas de desempenho requeridas pelo sofisticado capitalismo financeiro global contemporâneo. O enorme espaço econômico ocupado por empresas estatais dramaticamente ineficientes, mais dia menos dia, reduzirá o dinamismo da economia chinesa. Os mecanismos de governança, transparência e responsabilização não funcionam na China e estão por trás, de um lado, do tremendo risco regulatório e, de outro, da desigualdade crescente e da incompatibilidade entre as expectativas sociais em expansão e a capacidade de resposta das políticas públicas. Junte-se fundamentos políticos cada vez mais frágeis e a degradação ambiental avassaladora e se pode ter a visão de um cenário de colapso provável.

O modelo chinês é obsoleto, está historicamente superado e terá um custo de mudança talvez tão grande ou maior que o terrível custo social e ambiental desse crescimento acelerado.

Em muitos sentidos ele se assemelha ao modelo do “milagre brasileiro” dos anos 70, ao qual se pode imputar total responsabilidade pela crise da dívida externa que consumiu toda a energia econômica da década de 80 e parte da década de 90 e, pelo menos parcialmente, pelas origens da hiperinflação indexada que exauriu o país econômica e socialmente entre 1984 e 1994. O suposto “milagre” brasileiro, que iniciou a ocupação predatória da Amazônia e destruiu o remanescente de Mata Atlântica, com seus programas de incentivo ao reflorestamento e o Proálcool, nos custou, depois, duas décadas de agruras.

Ao contrário dos militares brasileiros, os protocapitalistas chineses têm consciência de seus problemas. No “Relatório sobre o trabalho do governo ao Congresso Nacional do Povo”, no ano passado, o primeiro-ministro Wen Jiabao dizia que “os principais problemas são uma estrutura econômica desequilibrada; baixa capacidade de inovação independente; mudança lenta no padrão de crescimento econômico; consumo excessivo de energia e recursos; piora da poluição ambiental; grave desemprego; desequilíbrio entre investimento e consumo; crescente desigualdade no desenvolvimento entre as áreas urbanas e rurais e entre as regiões; crescentes disparidades entre grupos de renda e desenvolvimento inadequado de programas sociais”. O problema, como diria o velho sábio Dadá Maravilha é que não parece ter uma “solucionática” para tamanha “problemática”.

A era das contradições
Começam a surgir divisões importantes na cúpula dirigente – ou na hierarquia – chinesa a respeito desse experimento de “capitalismo de estado”, aparentes nas controvérsias que se ampliam sobre as causas da desigualdade crescente, da falta de educação acessível, da escassez de assistência médica ou do crescimento da corrupção mais forte que da própria economia.

Como alerta o analista político Mixin Pei, “nenhum governo pode esperar extrair legitimidade permanente do desempenho econômico que obteve no passado, por mais impressionante que ele tenha sido”. A necessidade de desempenho econômico recorrente, cada vez mais rápido é auto-destrutiva. Ela explica esse impulso obsessivo dos chineses pelo crescimento e a incapacidade do governo em freá-lo enquanto é tempo, do qual se aproveitam as forças do capitalismo global, enquanto lhes interessa.

Contradições terminam inexoravelmente em rupturas, já ensinava sabiamente o velho Karl Marx, remoto inspirador do modelo chinês inicial. Na China é improvável que não seja assim. As contradições internas, que aumentam demandas incompatíveis por expansão econômica acelerada e serviços ambientais essenciais, como água, ar e terra fértil e contrapõem incluídos e excluídos das ilhas de afluência semi-capitalista, já estão em franca atuação. Elas provocam divisões na hierarquia dominante, o aumento da repressão e do desgoverno – Beijing está perdendo o controle sobre os governos das províncias – a queda do desenvolvimento humano-ambiental nas regiões mais afetadas pela destruição ambiental e pela poluição, a ampliação das desigualdades e da insatisfação social.

A contradição entre as forças da globalização, que hoje beneficiam tremendamente a China, e essas tendências internas em algum momento aparecerá com plena força. Episódios precursores, como o da Mattel, vão aumentar.

O modelo chinês não é sustentável econômica, política, social, ou ambientalmente. Só não vê quem não quer.

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