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Rachando a conta

A revista The Economist analisa o conceito de responsabilidade social das empresas, que se tornou unânime mas não pode ser implementado sem a ação dos governos.

4 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

A revista britânica The Economist não tem grande identificação com o ambientalismo. Pelo contrário: ao defender ideais liberais, seus editores e redatores muitas vezes parecem subordinar o bem-estar das populações e a preservação do meio ambiente a interesses econômicos. E a revista certamente não fez amigos no movimento ao dar espaço para iconoclastas como Bjorn Lomborg – que se tornou uma celebridade ao questionar, com ou sem razão, alguns dos princípios mais caros aos ambientalistas.

No entanto, seria um grave erro ignorá-la. Apesar do seu tom às vezes um tanto arrogante, a revista se distingue pela qualidade da análise. Em particular, os surveys – dossiês aprofundados sobre assuntos específicos – servem, no mínimo, para estabelecer as bases da discussão sobre o tema. O survey sobre responsabilidade social das empresas, publicado na revista da semana de 22 de janeiro, promete fazer exatamente isso.

O autor constata a vitória praticamente sem oposição do conceito da responsabilidade social das empresas (RSE) no campo das idéias. No que diz respeito às relações públicas, no mínimo, a vitória parece ser total. Na Europa, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil é cada vez mais difícil encontrar empresas que não professem sua devoção aos valores sociais e ambientais. Os relatórios anuais dedicam cada vez mais espaço às iniciativas nessas áreas, deixando os resultados financeiros em segundo plano, como se as empresas tivessem vergonha de dar lucro.

Mas isso não quer dizer que tudo vai bem. Existe uma certa insatisfação, até mesmo entre os defensores do conceito, com relação às práticas de RSE das grandes empresas, em parte devido à dificuldade em definir do que se trata. Empresas diferentes classificam sob esse mesmo rótulo práticas que vão desde exortações inofensivas ao comportamento dos seus dirigentes (não mentir, não subornar, etc.), até atividades economicamente inviáveis, passando por filantropia corporativa. Em quase todos os casos, os defensores dessas políticas argumentam que elas também são boas para os resultados financeiros, em geral dizendo que ajudam a atrair e manter motivados os colaboradores das empresas.

Há uma ressalva costumeira contra programas corporativos de filantropia: não se deve fazer caridade com o dinheiro dos outros. Assim, não é a Microsoft (por exemplo) que faz doações para programas de saúde no terceiro mundo; é a Fundação Bill e Melinda Gates, cujos recursos foram doados pelo dito cujo. Mas para o autor, a filantropia com o dinheiro alheio é um problema relativamente menor, pois os valores envolvidos geralmente são pequenos e os investidores geralmente sabem dessas atividades, e portanto sabem no que estão se metendo. Por outro lado, o uso de recursos das empresas para promover causas como a reciclagem de materiais ou o desenvolvimento sustentável é um tema mais complicado.

O argumento é mais ou menos o seguinte. De maneira geral, os preços de materiais refletem a sua escassez. Assim, a decisão de reciclar ou não reciclar deveria depender exclusivamente dos custos. Ao decidir pela alternativa economicamente ótima (a de custos mais baixos), automaticamente estaremos escolhendo a alternativa socialmente ótima (aquela que traz mais bem-estar para a sociedade como um todo).

Adotar a reciclagem com base em critérios morais tem um custo, mas esse é relativamente pequeno. Já a onda do desenvolvimento sustentável pode ter custos mais altos. A adoção de códigos de conduta muito restritivos pode impedir empresas de atuar em países do terceiro mundo, privando os habitantes desses países da chance de participar da economia mundial – aqui sim, o custo pode ser bastante alto, e tende a atingir exatamente os que têm menos condições de arcar com ele.

O que parece realmente incomodar os editores da Economist é a idéia, implícita no conceito de RSE, de que o capitalismo é intrinsecamente ruim, e que os capitalistas precisam ser domesticados para limitar sua capacidade de fazer estragos. Dentro de condições adequadas, vale o que Adam Smith escreveu em Riqueza das Nações: que o bem comum resultará da ação das pessoas em busca do seu interesse individual. A questão então é saber quais são as condições necessárias para que isso ocorra. Na teoria é simples. Basta que haja competição entre as empresas, e que os preços de mercado reflitam o custo social dos bens e serviços. É preciso, em outras palavras, evitar que se formem monopólios, e que se impeça as empresas de jogar para a sociedade parte do custo de suas atividades – através da poluição ambiental, por exemplo.

É possível entender melhor a questão das externalidades através de um exemplo: o automóvel. O uso do automóvel polui o ar, e a poluição afeta diretamente a saúde e a qualidade de vida das pessoas ao seu redor, assim como prejudica flora e fauna. A adoção de conversores catalíticos e outras técnicas de redução de emissão de poluentes reduziram esse impacto, mas ele ainda existe. Esses efeitos têm um custo, que não é arcado pelo usuário do automóvel. Isso é uma externalidade. Quando esses custos são conhecidos, o que nem sempre é óbvio, é possível, através da tributação, eliminar essa externalidade. Mas isso geralmente implica em deslocamentos sociais e econômicos, com enfrentamento de interesses, dificultando sua implementação.

Essas duas condições – mercados competitivos e eliminação de externalidades – só podem ser cumpridas pelo governo. Nenhuma empresa, por mais esclarecida e responsável que seja, pode fazê-lo. Resta para os empresários e executivos se comportar de maneira ética, e deixar para os governos a tarefa de defender o interesse público. São tarefas difíceis, mas definir mais claramente as responsabilidades de cada um não deixa de ser um começo.

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