Não vai ser fácil convencer o público das grandes cidades brasileiras sobre a viabilidade da bicicleta como meio de transporte. O desafio começa em uma idéia que, de tão arraigada, já parece natural: a supremacia do automóvel no trânsito urbano, suplantando não apenas os veículos de duas rodas, mas também os pedestres e os sistemas de transporte coletivo.
O excelente blog apocalipse motorizado traz uma série de exemplos do que isso significa na prática. Em um post recente, por exemplo, ele mostra como os monitores da CET [Companhia de Engenharia de Tráfego] de São Paulo que parecem estar ajudando os pedestres na travessia da Avenida Paulista na verdade estão lá para discipliná-los. Se o seu objetivo fosse proteger os pedestres, eles deveriam estar em lugares onde não há semáforo, e de preferência nos horários de pico.
O blog destaca outro exemplo rotineiro — ao menos em São Paulo — de inversão de prioridades: as grades e cercas colocadas por “especialistas” nas grandes avenidas da cidade. Estão lá em nome da sua segurança, mas são na verdade dispositivos anti-pedestres, que seriam desnecessários se houvesse mais semáforos nas esquinas e se os motoristas cumprissem o código de trânsito, que dá prioridade aos pedestres.
São apenas exemplos ou sintomas de um conjunto de políticas públicas que privilegiam o automóvel privado sobre todas as outras formas de mobilidade urbana. O carro já sai com uma vantagem muito grande nesta corrida, por fatores que têm muito pouco a ver com a realidade das grandes cidades. Ele ocupa um espaço privilegiadíssimo no nosso imaginário, representando para muitos um ideal de mobilidade e de individualismo. O carro próprio é também um poderoso símbolo de sucesso econômico, e, para muitos, até uma forma de expressão.
O resultado é uma competição extremamente desigual, que acabou criando um círculo vicioso. A infra-estrutura das grandes cidades privilegia o automóvel. Os transportes alternativos sofrem por falta de investimento, e se tornam cada vez menos atraentes para o cidadão. Pela pobreza das opções ele acaba voltando para o automóvel. Os resultados do desafio intermodal, realizado em várias capitais brasileiras durante o Dia Sem Carro, acabaram confirmando esse estado de coisas.
Eric Ferreira, especialista em transportes do IMAE, compilou os resultados do desafio em São Paulo e nos outros centros urbanos onde foi encenado em 2006 e 2007. Recapitulando: escolhe-se um trajeto típico para a cidade, e os participantes do desafio procuram realizá-lo no menor tempo possível, usando as diversas formas de mobilidade disponíveis. Em São Paulo, por exemplo, o trajeto usado em 2007 partia da Avenida Berrini, na zona sul, e terminava no centro da cidade.
Os resultados variam de cidade para cidade e de ano para ano, mas o padrão geral é bastante claro: os melhores tempos são sempre dos veículos de duas rodas, bicicletas e motos, e os piores são sempre dos transportes coletivos, os ônibus, trens e metrôs. Os automóveis particulares ficam no meio, geralmente mais próximos das motocicletas do que dos coletivos. Eric não vê motivos para surpresa na posição dos carros. Afinal, as cidades têm investido em uma vasta infra-estrutura que privilegia descaradamente o modo privado. O que realmente espanta é o baixo desempenho dos ônibus, em alguns casos não foi muito superior ao de um pedestre.
A conseqüência disso é bastante clara. Para o indivíduo, a economia de tempo é mais um argumento a favor da migração do transporte público para o privado, que se soma aos outros argumentos já conhecidos. Esse filme é conhecido e já sabemos como acaba. Se essa desvantagem competitiva do transporte público persistir, teremos nas grandes cidades brasileiras uma transição semelhante àquela vivida nos anos 20 nos Estados Unidos. Com tudo o que isso representa em termos de congestionamentos, poluição do ar, acidentes de trânsito e inversão de prioridades no urbanismo.
Ainda é possível mudar de direção. Por incrível que possa parecer, para quem conhece o trânsito das nossas cidades os autos particulares ainda são responsáveis por uma parcela reduzida do total de viagens. O espaço público, no entanto, é dominado por eles. Precisamos escapar desse círculo vicioso, mostrando que as vantagens do automóvel na corrida urbana são em grande parte função de escolhas que podem ser corrigidas ou revogadas. O trânsito das nossas grandes cidades não é um fenômeno natural, e o fatalismo não é uma atitude razoável frente a ele ou frente aos seus efeitos negativos.
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