O princípio da precaução é um dos temas mais badalados quando se fala em proteção ao meio ambiente. Qualquer discussão de esquina sobre meio ambiente acaba desembocando nele. Fala-sesobre o princípio da precaução como se fala sobre futebol. Não seria exagero afirmar que somos um país com 170 milhões de “técnicos” no princípio da precaução. Os “ambientalistas” defendem-no como uma fortaleza inexpugnável; já a parte desinformada dos empresários trata-o como se ele fora a própria besta do apocalipse travestida de princípio jurídico. Oscilando entre extremos, a sua marca mais característica é o seu desconhecimento por parte dos que o invocam, não com pouca freqüência, em vão. Pretendo, neste artigo, contribuir para a disseminação do conhecimento do princípio da precaução como categoria jurídica.
Em primeiro lugar, é necessário apresentar o princípio ao amigo leitor – pedindo desculpas àqueles que já foram apresentados ao ilustre princípio. Ele é originário da Declaração do Rio, firmada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no ano de 1992 que, assim como 1968 é um ano que não acabou. Ei-lo: “Princípio 15: De modo a proteger o meio-ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental“. Outros documentos internacionais se utilizam da cláusula da precaução, com pequenas variáveis.
A questão se avulta quando suscitada judicialmente, em sede de ação civil pública. Daí a constante do princípio da precaução como um importante instrumento a ser utilizado em prol da proteção ambiental. Aliás, a doutrina jurídica nacional vem buscando um grau de certeza científica que é rejeitado pelos próprios cientistas, pois alguns juristas buscam uma certeza absoluta de que não haverá dano – esquecendo-se que o conhecimento científico é histórico e, portanto, cambiável. O conhecimento jurídico, pelo contrário, busca a certeza de uma decisão imutável.
A aplicação adequada do princípio da precaução nos processos judiciais é fundamental, embora não seja simples, visto que não há um consenso sobre o próprio significado do mencionado princípio. Em linhas gerais podemos identificar três tendências, a saber (a) posição radical, (b) posição minimalista e (c) posição intermediária.
É da própria natureza do principio da precaução que ele busque assegurar condições ambientais, no presente e no futuro, adequadas, ou sustentáveis, para usar uma expressão à la mode, evitando-se hoje danos que poderão repercutir amanhã. Ele está, portanto, ligado ao chamado direito das gerações futuras que, indiscutivelmente, é um conceito intelectual extremamente sedutor e que dá azos aos devaneios mais generosos.
Kiss (1) – justamente considerado um dos maiores autores mundiais do direito ambiental – com o pragmatismo cartesiano que caracteriza a cultura francesa, assim trata do assunto:”O enfoque inicial do direito das gerações futuras levou à conclusão de que o direito buscou proteger as opções que temos atualmente e procurou transmiti-las às gerações futuras. Entretanto, essa abordagem não é necessariamente satisfatória porque coloca excessiva ênfase nos deveres da geração presente. Não considera o fato de que a própria natureza do conceito exige que seja aplicado ao longo dos séculos. Como pode a mesma quantidade de espaço, de regiões naturais, de água limpa, de animais selvagens ser garantia para infinitas gerações com número cada vez maior de indivíduos? Deve o mundo ser transformado em um museu ocupado sempre com maior número de monumentos, de artefatos e locais históricos? Mesmo se a humanidade atual pudesse aceitar essa abordagem, não poderia ser aceitável para as gerações futuras. Como podemos saber as preferências das gerações futuras daqui a, por exemplo, cinqüenta ou cem anos?”
Em geral, o princípio da precaução tem sido invocado como uma forma de determinar que o empreendedor de uma determinada atividade suspeita de causar possível dano ambiental, demonstre de forma cabal que tal atividade não causará danos ao meio ambiente. Em termos jurídicos processuais é o que se chama de inversão do ônus da prova. Diz-se inversão, pois ordinariamente a prova de uma alegação compete a quem a faz. Assim se alego que um empreendimento causará danos ao meio ambiente, a aplicação simplista do princípio, implica em que o empreendedor demonstre que a minha afirmação é falsa, visto que ela, em função do princípio goza de uma quase que presunção de veracidade.
A relação entre princípio da precaução e produção de prova é bastante tensa e não pode ser enquadrada em um modelo geral que implique, necessariamente, na tomada desta ou daquela medida. É na produção da prova que tal tensão encontra o seu ponto culminante. Como a matéria está, basicamente, regulada no Direito Internacional, julgo conveniente lembrar a excelente revisão que Varella (2) fez do tema: “O princípio da precaução é aceito no âmbito da OMC de forma genérica, semelhante às disposições da Convenção sobre Diversidade Biológica, descrito na fórmula “a incerteza científica não pode servir de base para a omissão”, mas a OMC adiciona outras cinco condições específicas e restritivas…que limitam bastante o princípio, a ponto de poder tirar sua importância em um julgamento concreto”; examinado a compreensão da Corte Internacional de Justiça sobre o princípio afirma: ” No único caso em que foram discutidos a proteção ambiental e o princípio da precaução, a Corte Internacional de Justiça não reconheceu e eficácia do princípio e a falta de provas científicas concretas foi uma das causas para a recusa em considerar ilícitos os atos de proteção ambiental efetuados por um país contratante.” A Corte de Justiça das Comunidades Européias aceita o princípio de forma mais alargada.
Em conclusão, o mesmo Varella afirma que: “o reconhecimento do princípio da precaução como um princípio internacional, ou uma regra de direito costumeiro, ainda não está consolidado.” Aliás, um ponto que não pode passar em branco é o fato de que um mesmo país, dependendo do caso concreto, admite ou rejeita o princípio.
Os autores, até aqui, têm dado destaque à aplicabilidade do princípio da precaução, muito embora, como já foi visto acima, tal princípio não tenha encontrado uma ampla aceitação internacional, sendo muito mais um elemento de estudo acadêmico do que instrumento de aplicação tranqüila nos fora internacionais. Quando aceito, limita-se a ser uma fórmula extremamente ampla e cujo conteúdo não pode ser precisado adequadamente.
O princípio da precaução não pode ser considerado como um instrumento de paralisação das atividades e das pesquisas. Em meu ponto de vista, a adequada exegese de seu texto é aquela que determina a adoção de medidas preventivas para a realização de uma determinada atividade, jamais a paralisação, salvo com a existência concreta de danos.É como se, em uma noite de nevoeiro, precisássemos ir ao médico. A precaução recomenda que acendamos os faróis de nosso veículo, que trafeguemos em velocidade compatível e que, periodicamente, façamos uso da buzina para informar aos demais motoristas que estamos nos movimentando. No entanto, permanecer em casa pode significar o agravamento da doença.
[1] KISS, Alexandre. Os direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução, in, VARELLA, Marcelo Dias e PLAUTAU, Ana Flávia Barros.
Princípio da precaução. ESMPU/Del Rey: Belo Horizonte. 2004. p. 7 [2] VER: VARELLA, Marcelo Dias. Variações obre um mesmo tema: o exemplo da implementação do princípio da precaução pela CIJ, OMC, CJCE e EUA., in VARELLA, Marcelo Dias e PLAUTAU, Ana Flávia Barros. Princípio da precaução. ESMPU/Del Rey: Belo Horizonte. 2004, p. 293-4.
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