Sherazade, como todos sabemos, salvou o pescoço contando histórias para o sultão que, após ser traído pela esposa, jurou que a cada noite mataria uma mulher para se vingar da traição. Sherazade conseguiu ir levando o sultão durante 1001 noites e até filhos tiveram. Entre as diferentes histórias contadas por Sherazade, muitas foram incorporadas ao imaginário infantil, tais como a do marujo Sinbad e a de Aladim e o gênio da lâmpada.
Para nós, brasileiros, uma das mais importantes é a história de Ali Babá e os 40 ladrões. Ninguém sabe exatamente por que o número de ladrões escolhido pela tradição popular foi 40. Talvez fosse um número que demonstrasse grandeza, buscando com isto transmitir ao leitor a sensação de que a história envolvia uma gangue enorme e com tentáculos que se espalhavam pela sociedade. O tesouro, como sabemos todos, estava escondido em uma caverna que, ao comando de “Abre-te, Sésamo!”, deixava à mostra um extraordinário mundo de riquezas. A história de Ali Babá é uma das primeiras manifestações concretas da importância prática da espeleologia. Agora o Brasil, com sua indiscutível vocação para a modernidade, nos traz a história “Curupira e os 130”.
Ainda que sem o charme e o encantamento da bela odalisca, que se tornou princesa, a nossa versão cabocla tem ingredientes muito mais interessantes. Comecemos pelo número. Não nos contentamos com meros 40. Fomos muito mais longe. Os nossos personagens são 130, número que pelo simples fato de ser múltiplo de 13 o torna cabalístico e dotado de propriedades esotéricas. A história não foi contada na intimidade de um harém mas na imprensa, com grande destaque, em prosseguimento ao papel do estado como um dos mais importantes agentes do moderno entertainment que deve ser fornecido diariamente ao cidadão, ávido pelos malabarismos do noticiário policial, político e econômico. As performances do ministro Gilberto Gil foram definitivamente superadas. Outrora, bastava os encantadores de serpentes do Oriente ou os rasantes de tapetes voadores para que o público recebesse a sua quota periódica de diversão. Agora, o espetáculo deve se incorporar à vida real, como se vivêssemos todos em um imenso parque temático, ou em um circo no qual, periodicamente, nos é oferecida possibilidade de “jouer le clown”.
A descoberta de corrupção em órgãos administrativos é uma das mais tristes constatações para os cidadãos e deve ser tratada de forma séria e consternada. A descoberta de uma suposta quadrilha envolvendo cerca de 130 pessoas que, de uma forma ou de outra, se utilizam do Estado para a prática de crimes, é muito doloroso para um país e, jamais, motivo de contentamento.
A experiência nos demonstra que mega-operações policiais acompanhadas pela mídia nem sempre servem aos interesses da adequada aplicação da lei e da punição aos realmente culpados por condutas desviantes da determinação legal. O combate à corrupção se faz, principalmente, com normas claras, simples e, portanto, de fácil compreensão. Infelizmente, a nossa realidade é exatamente o contrário. Temos um excesso de normas, papéis, carimbos, estampilhas, selos, guias e outras jóias do mundo burocrático que fazem com que exista uma constante retroalimentação da corrupção. Como é do conhecimento popular, as dificuldades existem para que as facilidades possam ser compradas.
O “Abre-te, Sésamo!” capaz de levar os modernos Ali Babás às mais profundas grutas do Tesouro Nacional é a não-profissionalização do Serviço Público brasileiro, a sua politização e a partidarização que fazem com que, com as exceções de praxe, o servidor público não trabalhe para o Estado mas para o Governo, o que é inteiramente diferente. Causa espanto a disputa por determinados cargos públicos cujos vencimentos são ridículos. Entretanto, em tais cargos se encontra a Lâmpada Mágica que, corretamente esfregada, pode fazer com que o gênio multiplique os vencimentos em pecúnia de origem duvidosa. A moderna Lâmpada Mágica é o carimbo burocrático, capaz de transformar pó em ouro, ou de operar o milagre da multiplicação das guias de autorização de desmatamento.
Há uma questão importante. O sultão era o responsável pela sua corte e qualquer acontecimento que lá ocorresse estava diretamente ligado à sua responsabilidade, tanto para o bem como para o mal. No Estado de Direito nós temos a figura da responsabilidade política. Tanto maior é a responsabilidade política do dirigente, quanto maior é o número de nomeações para cargos comissionados por ele efetivadas. Quem nomeou quem? Dos presos temporariamente, quantos são servidores de carreira e quantos foram nomeados e por quem? São filiados a partidos políticos, quais? Estas questões são extremamente relevantes e merecem ser indagadas. “Ninguém aqui está sendo surpreendido”, disse a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na coletiva que anunciou a Operação Curupira, que desbaratou a quadrilha. Certamente, todo o episódio daria margem às lágrimas, as mais legítimas, pois o que se verificou foi, claramente, um crime de quebra de confiança, lesa pátria.
O Tribunal de Contas de União (Decisão 651/1999 – Plenário) já se pronunciou sobre procedimentos inadequados no IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Aplicação de multas em valores excessivos, falta de controles administrativos e outras questões. A solução para questões estruturais, infelizmente, não se faz com operações policiais, ainda que estas possam ter um efeito “pedagógico” em alguns momentos. Entretanto, elas não podem ser permanentes e é extremamente importante que os órgãos do Estado preservem a legitimidade perante a população. O problema é que, ao se prenderem pessoas do Ibama, é o Ibama, como um todo, que sai maculado. Em conseqüência, perde a proteção do meio ambiente e perde a sociedade. Por outro lado, pessoas mal intencionadas podem se valer de um outro instrumento para a prática de atos ilícitos, que é a pressão sobre terceiros com ameaças de multas e outras penalidades que, se forem de valores expropriatórios, terão lugar assegurado no espetáculo do combate à corrupção.
Nestor amava Nicolau que amava João Carlos, que amava Escóssia, que amava Silverinha, que amava Waldomiro, que amava toda quadrilha, cantou o poeta Kazaque. Recomendo aos que tiverem interesse em música: Sherazade, Rimsky-Korsakov ou Sherazade, Renaissance, ambos muito bons; não esquecendo que uma nova tradução das Mil e uma noites já se encontra disponível em português e é uma leitura maravilhosa.
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