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Mutação Genética

Em meio à confusão da política nacional, passou despercebido um novo decreto que estabelece o “cancelamento de patente” do patrimônio genético. O que é ilegal.

10 de junho de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

No último artigo tratei do problema da operação Curupira, que redundou na prisão de inúmeros servidores públicos da área ambiental os quais, em tese, estariam praticando crimes contra o meio ambiente e contra a administração pública. Nesta semana, parece que o assunto anterior aconteceu no século passado. A onda agora é discutir a mesada e o mensalão. Confesso que toda esta questão do mensalão teve o dom de fazer com que, magicamente, a mesada que dou aos meus filhos se tornasse ridícula. Ora, desde este último escândalo em diante, não terei mais como reclamar dos constantes pedidos de aumento de mesada por parte da garotada. Cá pra nós, o que são duzentos ou trezentos miréis perto de trintinha? E assim, de escândalo em escândalo nós vamos vivendo, certos de que de tédio não morreremos neste nosso país tropical.

Passou despercebido entre uma e outra viagem presidencial e, com o recheio das emoções que nos são proporcionadas pelo Congresso Nacional, a edição do Decreto nº 5.459, de 07 de junho de 2005 que regulamenta o artigo 30 da Medida Provisória nº 2.186, de 23 de agosto de 2001, que trata do patrimônio genético brasileiro. Em uma primeira leitura, tanto o decreto regulamentador, como o próprio artigo 30 da Medida Provisória necessitam de uma “turbinada” jurídica. Sim, pois o artigo 30 estabelece um tipo administrativo inteiramente aberto (1) e com um grau de subjetivismo que fariam corar qualquer estudante de direito que um dia pretendesse se transformar em advogado.

O artigo 10, IX estabelece uma penalidade absolutamente ilegal que é o “cancelamento de patente”. Patente é um direito subjetivo que não pode ser cancelado pelo Conselho do Patrimônio Genético, pelo simples fato de que não é ele quem concede as patentes no Brasil, não fossem as outras questões legais e constitucionais envolvidas na questão.

O Decreto, em seus artigos 15 e seguintes define os tipos administrativos, isto é as condutas consideradas lesivas ao patrimônio genético brasileiro, sem que a lei as tenha previsto. É uma técnica que vem se repetindo na legislação ambiental brasileira, desde a lei 9.605 / 98. Mediante o estabelecimento de uma cláusula geral, passa-se a estabelecer tipos administrativos por decreto. O leitor menos avisado poderá se perguntar: por que não foi estabelecido na Medida Provisória o conjunto de atos típicos e administrativamente puníveis? Simplesmente em função do fato de que Medidas Provisórias não podem definir condutas puníveis. Ora, se as Medidas Provisórias que, em nosso sistema constitucional têm força de lei, muito menos um decreto poderá fazê-lo.

Existem tipos administrativos que chegam a soar ridículos, como é o caso dos previstos nos artigos 22,23 e 24 (2), devido ao simples fato de que não existe um banco de dados sobre conhecimentos tradicionais que seja capaz de tê-lo arrolado como forma de proteção. O que caracteriza o conhecimento tradicional é exatamente a sua informalidade, oralidade e, por incrível que pareça, a sua dinâmica própria. Não há como se definir precisamente quem é o grupo tradicional detentor de determinado conhecimento, até mesmo porque, não raras vezes, tais conhecimentos são compartilhados por mais de um grupo tradicional.

Uma outra “inovação” jurídica do Decreto foi a contida no artigo 26 (3)que estabeleceu uma hipótese de responsabilidade objetiva que, também, não tem previsão legal. Percebe-se, pela péssima técnica legislativa, que o Decreto vem tentar ser uma espécie de “cala boca” diante dos já longínquos fatos ocorrido na semana passada e que, rapidamente, foram superados por acontecimentos mais palpitantes. É lógico que este não é o procedimento adequado para tratar de problema grave como o do acesso ao patrimônio genético. O decreto tem natureza puramente punitiva e policialesca, sendo apenas mais um elemento complicador na já tão complexa questão do patrimônio genético.

Enfim, vamos torcer para que a mutação genética representada pelo decreto, seja darwinianamente suplantada por uma norma com um DNA compatível com a Constituição Brasileira.

1- Art. 30. Considera-se infração administrativa contra o patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado toda ação ou omissão que viole as normas desta Medida Provisória e demais disposições legais pertinentes.
2-Art. 22. Divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com a autorização obtida, quando exigida:
Multa mínima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e máxima de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$ 1.000,00 (mil reais) e máxima de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), quando se tratar de pessoa física.
Art. 23. Omitir a origem de conhecimento tradicional associado em publicação, registro, inventário, utilização, exploração, transmissão ou qualquer forma de divulgação em que este conhecimento seja direta ou indiretamente mencionado:
Multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) e máxima de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), quando se tratar de pessoa física.
Art. 24. Omitir ao Poder Público informação essencial sobre atividade de acesso a conhecimento tradicional associado, por ocasião de auditoria, fiscalização ou requerimento de autorização de acesso ou remessa:
Multa mínima de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e máxima de R$ 100.000,00 (cem mil reais), quando se tratar de pessoa jurídica, e multa mínima de R$ 200,00 (duzentos reais) e máxima de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), quando se tratar de pessoa física.
3- Art. 26. As sanções estabelecidas neste Decreto serão aplicadas, independentemente da existência de culpa, sem prejuízo das sanções penais previstas na legislação vigente e da responsabilidade civil objetiva pelos danos causados.

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